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Espiritualidade


O pincel da sublimidade e da temperança
 
AUTOR: IR. IVÁN DANIEL TEFEL AMADOR
 
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Gótico, vitrais, escolástica... A sonoridade deste conjunto de palavras harmônicas ilustra-nos na mente uma era histórica, que sem ser a ideal, foi em muitas coisas exemplar. Entretanto, esta não surgiu por geração espontânea, pelo contrário, frutificou de um processo soprado pelo Espírito Santo.

Estudando a História da Igreja, comprovamos a importância e providencialidade do Império Romano, pois estendendo-se e dominando uma grande parte do mundo civilizado, favoreceu grandemente a expansão do Cristianismo nascente. Com a decadência deste “Colosso” e a invasão dos bárbaros, as expectativas humanas a respeito da continuidade da civilização, da cultura e do próprio Corpo Místico de Cristo, foram abaladas. Porém, os planos insondáveis de Deus fizeram surgir dentro deste caos – como um lírio puríssimo que nasce do lodo, na noite e sob a tempestade – uma civilização, fruto do preciosíssimo sangue derramado no Calvário.

Desabrocha então, no seio da Igreja, uma noção muito ampla do amor a Deus, fonte de toda beleza e um modo de ver a santidade, donde se entende que a prática dos Mandamentos, sobretudo do primeiro, leva o homem a querer implantar o verum, bonum e pulchrum neste vale de lágrimas, para que tudo se torne semelhante ao Céu. Daí as ordens religiosas, constituídas para praticar a perfeição espiritual e o desapego dos bens materiais, estarem na origem de inúmeras maravilhas que ornaram aquele lírio imaculado de que falávamos.

Na Ordem fundada por São Domingos – no decorrer de sua existência quase milenar – surgiram muitíssimos luminares como São Tomás de Aquino, São Pio V, Santa Catarina de Sena, etc. Dentro dessa constelação, sobressai pelo seu brilho intenso e atraente o bem-aventurado Fra Angélico, citado por Pio XII como “o santo religioso e sumo artista”, e que com toda justiça é considerado o pintor católico por excelência.

Tendo nascido no fim do século XIV, e vivido a maior parte da sua vida no período da Renascença, o Beato Angélico – cujo nome era Guido de Fiésole, e mais tarde, João de Fiésole ao entrar na ordem dominicana – foi um artista caracteristicamente medieval.

Iniciou seu caminho na ordem dos pregadores por volta de 1420 e, pouco tempo depois, recebeu a Ordenação sacerdotal. “Entre 1439 e 1445 fez parte da comunidade dominicana de S. Marcos, em Florença, sendo prior Santo Antonino”.[1] Aí, encheria de seus afrescos todos os ambientes que o circundavam: o claustro, a sala capitular, os corredores e até as celas do convento, pois ele era trocado periodicamente, e assim, todas elas ficaram “angélicas”.

Mais tarde foi chamado a Roma, pelo Papa Eugênio IV, a fim de pintar uma capela em S. Pedro e outra no Palácio Vaticano. Posteriormente, foi proposto como Arcebispo de Florença, mas ele recusou e sugeriu seu queridíssimo prior Antonino, o qual se tornou de fato prelado dessa importante cidade da Itália. Anos depois, o religioso-artista, tornou-se prior em Fiésole. Posteriormente, voltou à Cidade Eterna, para morar no convento de Santa Maria Sopra Minerva, onde, depois de uma vida de perfeição, completou seus dias.

Em 3 de Outubro de 1982, foi beatificado pelo Servo de Deus João Paulo II.

Passados dois anos de sua beatificação, numa reunião do Ano Santo para os artistas, o Santo Padre comentou a respeito dele: “Com toda a sua vida cantou a glória de Deus, que trazia como tesouro na profundidade do seu coração e exprimia nas obras de arte. Fra Angélico permaneceu na memória da Igreja e na história da cultura, como extraordinário religioso- artista”.[2]

Apesar de sua intensa vida de ação, Fra Angélico possuía uma alma contemplativa muito privilegiada. A tradição conta-nos que a Rainha dos Anjos lhe aparecia no momento em que era retratada, fato que explica o inefável sobrenatural de suas numerosas pinturas sobre a Virgem Maria.

Além destes fenômenos místicos extraordinários, o Beato pintor possuía uma vida interior riquíssima. Sobressaiam entre as suas virtudes, a temperança e a admiração pelo sobrenatural, o que se projeta nos celestiais personagens por ele pintados. Seria sensato imaginar nosso bem-aventurado monge meditando horas prolongadas e até dias dentro do mosteiro – estando na capela ou andando no jardim, ou ainda recolhido na sua cela austera – os mistérios da Nossa Fé e as cenas que iria retratar, esquadrinhando não só os detalhes minuciosos que se notam nas suas pinturas, mas, sobretudo o imponderável metafísico e mais alto do episódio.

“Olhar para o Beato Angélico é olhar para um modelo de vida em que a arte se revela como caminho que pode levar à perfeição cristã: ele foi religioso exemplar e grande artista” (Idem). Portanto, um homem muito virtuoso que sempre procurou – através da arte pictórica – píncaros, ideais, pulcritudes, inclusive nas menores coisas.

Rei da pintura, ele é também mestre do feérico, atribuindo esplendor insuperável aos mínimos detalhes de seus quadros, a ponto de deixar o espectador encantado e preste à contemplação de suas pinturas, que por sua vez o levam à contemplação das sublimidades celestes.

Cheio de dons sobrenaturais, as habilidades naturais não lhe eram alheias. Explicam-nos os estudiosos que ele mesmo fabricava as tintas que usava. Triturando pedras semipreciosas e misturando-as com outras substâncias, obtinha as melhores cores de sua extraordinária palheta. No entanto, ciente de ser este mundo um vale de lágrimas, cheio de pormenores desinteressantes, banais, ou mesmo esteticamente desagradáveis, o Beato Angélico soube criar um modo de atenuá-los e de torná-los pitorescos. De onde seus personagens, de certo modo, transcendem às fraquezas de nossa natureza decaída e se nos figuram quase sem marca do pecado original.

As suas pinturas são um fiel reflexo das almas arquetípicas que fizeram da Idade Média uma época impar na Cristandade. São retratados homens para os quais esta vida é antecâmara da celestial; pessoas repletas de luz, de inocência e de leveza, que provavelmente se viam na sua época…

As representações da “Madonna” são reluzentes, dotadas de um fulgor vindo do interior e que ilumina todo o seu ser e dos que a rodeiam, assim como dos que a Ela se dirigem com fervor. Nos anjos estão presentes os contrastes da fortaleza com a suavidade de espírito, harmonizando-se dentro de uma temperança perfeita. Reflete-se neles um movimento de alma para o alto, prontos para elevar-se em suas “cogitações” a Deus. Enfim, os anjos, os santos, as virgens e tudo que Fra Angélico pintou, transbordam do aspecto sacral e místico, caracterizados – dentro da santidade – pela temperança, pela inocência e pela fortaleza.

Ora, só alguém que possuísse as mesmas virtudes, fruto da meditação e da contemplação, ou seja, da oração permanente, poderia representar de maneira tão perfeita tais seres. “Nele, a arte torna-se oração”.[3] Daí, podemos concluir que toda a arte que saía do impecável pincel do Beato Angélico, não era senão um espelho cristalino das maravilhas que possuía dentro da sua alma. E assim: “Cognominado Angélico pela bondade de sua alma e pela beleza de suas pinturas ‘Fra Giovanni da Fiésole’ foi sacerdote-artista, que soube traduzir em cores a eloquência da palavra de Deus”.[4]

[1] SANTOS DE CADA DIA. 2 ed. Braga. Vol. I, p. 205.

[2] in: www.vatican.va

[3] Idem, p.207.

[4] Idem.

 
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