Se o demônio tivesse perfeita noção de que Jesus era o Filho de Deus feito homem, procuraria um meio de evitar sua morte na cruz, para o gênero humano não ser redimido.
Ora, ele tinha elementos concretos para concluir ser Jesus o Redentor prometido. Por que, então, instigou os pontífices e fariseus a condená-Lo e exigir a sua crucifixão? A questão foi tratada de forma magistral pela renomada revista francesa "L'Ami du Clergé" do ano 1923 (pp. 285-86).
O episódio da tentação no deserto, o demônio parecia reconhecer em Jesus o Filho de Deus humanado, pois Lhe disse: “Se és Filho de Deus, ordena que estas pedras se tornem pães” (Mt 4, 3). E pouco depois: “Se és Filho de Deus, lança-Te abaixo, pois está escrito…” (Mt 4, 6).
Em outras passagens da Sagrada Escritura, ele faz, pela boca dos possessos, afirmações categóricas: “Por que te ocupas de mim, Jesus, Filho do Deus Altíssimo?” (Lc 8, 28). “Tu és o Filho de Deus!” (Mc 3, 11). “Sei quem és: o Santo de Deus!” (Mc 1, 24).
Qual é, porém, o significado exato do título de “Filho de Deus”, dado a Jesus pelo demônio?
Segundo explicam alguns exegetas, não é possível saber com certeza se satanás, chamando Jesus de “Filho de Deus”, tinha perfeito conhecimento de sua natureza divina, ou se tinha apenas a intuição de uma natureza mais ou menos sobre-humana cuja relação com a Divindade permanecia ainda bastante obscura.
Uma vez, pois, que não encontramos na Exegese a solução precisa do problema, procuremos na Teologia.
O demônio não conhece naturalmente os segredos dos corações, nem os contingentes futuros, nem os mistérios da graça no que estes têm de sobrenatural e divino. O mistério da Encarnação não está, pois, ao seu alcance.
Os fatos externos, porém, estão. E ele pode, a partir dos fatos exteriores que conhece por meio das luzes naturais, deduzir com grande probabilidade a verdade dos mistérios da graça. Desse modo, o demônio tem uma qualquer coisa de “fé”.
A penetração de sua inteligência fá-lo descobrir os indícios manifestos da verdade. Contudo – como ensina São Tomás – essa “fé”, porque é forçada pela evidência dos sinais, não é obra da graça nem fé propriamente dita.
Por outro lado, seu espírito orgulhoso se inclina sempre a recusar adesão aos mistérios da graça. São Tomás acrescenta que a “fé” dos demônios é contrária à sua disposição de espírito: “Desagrada aos demônios o fato de os sinais da fé serem tão evidentes que os obriguem a crer” (1).
Donde é forçoso concluir que eles estão em revolta até mesmo contra essa evidência e são levados a se apegar a tudo que possa obscurecê-la.
Apliquemos agora esses princípios ao caso proposto.
Quando Nosso Senhor foi concebido pelo Espírito Santo no seio puríssimo da Bem-Aventurada Virgem Maria, o casamento desta com São José podia ainda esconder ao espírito perspicaz do demônio a realidade da Encarnação. Só mais tarde lhe foram fornecidos os indícios para descobrir esse mistério.
No momento da tentação no deserto, podia ele já suspeitar que Cristo era o Filho de Deus. Com efeito, a voz do Pai já se fizera ouvir no Batismo de Jesus, no Jordão: “Este é o meu Filho bem-amado” (Mt 3, 17; Lc 3, 22; 1Pd 1, 17).
Porém, essa não é uma prova peremptória da Encarnação. Para começar, essas palavras vinham mesmo de Deus? Depois, tinha ela o sentido da filiação divina natural, e não adotiva? Assim, a fórmula da qual se serve satanás durante a tentação do Salvador, revelava uma hesitação: “Se és o Filho de Deus…”
O demônio tinha, sem dúvida, razões para supor que Jesus era o Cristo, o Messias, o Filho de Deus. Contudo, ele podia ter algumas incertezas, e a disposição natural devia levá-lo a formulá-las para si mesmo: “Ele O tentou para averiguar se era o Cristo” (2), afirma Santo Agostinho.
Entretanto, à medida que Jesus avançava em sua vida pública, os sinais se multiplicavam, testemunhando o caráter transcendental do Filho de Deus. Esses sinais não poderiam escapar à perspicácia do demônio. Assim, nas diferentes ocasiões em que este é obrigado a publicar uma verdade imposta a seu espírito, ele o faz com mais convicção do que no momento da tentação no deserto.
Diz a Jesus: “Sei quem és: o Santo de Deus!” (Mc 1, 24). Mais ainda, chama-O, sem hesitação aparente, de “Filho de Deus”, “Filho do Deus Altíssimo”.
“Tertuliano e outros exegetas pensavam que o demônio dava- Lhe este título por lisonja. Entretanto, é preferível crer que ele o fazia com toda sinceridade, se bem que a contragosto, pois Deus permitira que até mesmo o inferno rendesse testemunho a Cristo” (3).
Contudo, não há plena persuasão nesse testemunho. Pois, segundo São Tomás, eco da Tradição Católica, se os demônios “tivessem conhecido perfeitamente e com certeza que Jesus era o Filho de Deus e quais seriam os frutos de sua Paixão, jamais buscariam a crucifixão do Senhor da Glória” (4).
Com efeito, é grande a perspicácia dos demônios para compreender a força dos argumentos a favor da divindade do Salvador; mas é grande também sua perspicácia para descobrir as objeções, e – dada sua disposição de não crer, isto é, de não se deixar convencer senão à força e em último extremo – concebe- se que eles tenham duvidado até o fim.
Escreve São Tomás: “À vista dos milagres, o demônio conjeturou que Ele era o Filho de Deus. (…) E se ele O chamava de Filho de Deus, fazia-o movido mais por desconfiança que por certeza” (5).
Satanás tinha, pois, a intuição, diríamos quase a convicção, de que Jesus era Filho natural de Deus. Entretanto, julgando a verdade apenas por sinais exteriores e com espírito preconcebido, ele conservava dúvidas sobre o mistério da Encarnação. Apesar de não ter podido deixar de reconhecer em Jesus Cristo a transcendência sobre-humana que as locuções “o Santo de Deus” e “o Filho de Deus” exprimiam energicamente.
1) Suma Teológica, II-II, q. 5, a. 2, ad. 3.
2) De Civitate Dei, 1, XI, c. 21.
3) Fillion, Evangile selon S. Marc, Paris, 1895, p. 34.
4) Suma Teológica, I, q. 64. a. 1, ad. 4.
5) Ibid, III, q. 44, a. 1, ad 2.
(Revista Arautos do Evangelho, Março/2006, n. 51, p. 20-21)