As bem-aventuranças
Embora, como escreve o Cardeal Lépicier, uma só seja a bem-aventurança, isto é, Deus, múltiplas são, contudo, as obras eminentes que a ela conduzem e que produzem em nós a esperança de obtê-la. Estas obras, por metonímia, são chamadas bem-aventuranças, porque são causa e mérito da perfeita bem-aventurança. São atribuídas às virtudes e, especialmente, aos dons do Espírito Santo.
As beatitudes são, portanto, atos perfeitos das virtudes e dos dons, com os quais o homem adquire certa segurança de conseguir a eterna bem-aventurança.
Oito são as beatitudes ou bem-aventuranças, assim enumeradas no Evangelho de São Mateus (V, 3 e SS.): “Bem-
Nossa Senhora de Guadalupe |
aventurados os pobres de espírito, porque deles é o Reino dos céus. Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a Terra. Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados. Bem-aventurados os que tem fome e sede de justiça, porque serão saciados. Bem-aventurados os misericordiosos, porque acharão misericórdia. Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus. Bem-aventurados os pacíficos, porque serão chamados filhos de Deus, Bem-aventurados os que sofrem perseguição pela justiça, porque deles é o Reino dos Céus.”
As beatitudes, em substância, são frutos, mas de uma maturidade tão perfeita que já nos dão um antegozo da eterna bem-aventurança. São, portanto, a última coroa da obra do Espírito Santo.
As beatitudes em Maria
– Pobreza de espírito, mansidão e sofrimento
Em três coisas, principalmente, costumam os homens colocar a própria felicidade: em satisfazer a ambição de honras; satisfazer o apetite irascível, esmagando todos os inimigos de seu egoísmo; em satisfazer o apetite concupiscível, provendo-se de todos os gáudios, todos os deleites do mundo.
Ora, à ambição de honras, Nosso Senhor Jesus Cristo opõe a pobreza do espírito: Bem-aventurados os pobres de espírito! Estes renunciam à glória terrena, mas conquistam a glória celeste, pois deles é o Reino dos Céus.
À satisfação do apetite irascível, Nosso Senhor opõe a mansidão: Bem-aventurados os mansos. Renunciando à posse quieta e pacífica da terra dos mortos, eles se garantem a posse quieta e pacífica da terra dos vivos, pois possuirão a Terra.
À satisfação do apetite concupiscível (ao riso e ao gozo), Nosso Senhor opõe o pranto: Bem-aventurados os que choram. Renunciando ao falso prazer, às falsas delícias e consolações terremas, garantem-se as inefáveis consolações celestes: porque serão consolados.
Ora, quem poderá dizer com que transportes a Virgem Santíssima, durante toda a sua vida terrena, renunciou às honras vãs da terra,às vãs satisfações do apetite irascível e do concupiscível? Quem poderá dizer o exemplo de pobreza de espírito, de mansidão de alma, de sofrimento e de pranto que Ela nos deixou?
– Fome e sede de justiça
N. Senhora das Graças |
A quarta bem-aventurança, tal como se lê no Evangelho, diz assim: Bem-aventurados os que tem fome e sede de justiça, porque serão saciados. Como é sabido, em sentido bíblico a palavra justiça equivale a santidade, cumprimento íntegro da lei de Deus. Fome e sede de justiça, significa, pois, ardente desejo de perfeição e santidade (…) Esta bem-aventurança afeta de cheio a Santíssima Virgem Maria, que a praticou em grau perfeitíssimo. Repleta de graça desde o primeiro instante de sua Conceição Imaculada, foi continuamente crescendo em santidade e perfeição, até alcançar um incrível grau de união com Deus no último instante de sua vida terrestre. Ninguém como Maria teve tanta fome e sede da glória de Deus e da própria perfeição.
– Misericordiosa
A quinta bem-aventurança, proclamada pelo Senhor no Sermão da Montanha, é esta: Bem-aventurados os misericordiosos, porque acharão misericórdia. A misericórdia é uma virtude especial, fruto da caridade, que nos inclina a compadecermo-nos das misérias e desgraças do próximo, e a remediá-las no que dependa de nós. Segundo o Doutor Angélico, é a maior de todas as virtudes que podemos praticar com relação ao próximo.
A Virgem Maria, Rainha e Mãe de Misericórdia, praticou esta formosa virtude num tal grau de perfeição que somente foi superado por Jesus, pois neste a misericórdia é infinita, e em Maria, como mera criatura, não o pode ser.
– Pureza de coração e o “ver a Deus”
Ao proclamar a sexta bem-aventurança evangélica, o Senhor estabelece uma relação de mérito e prêmio entre a pureza de coração e a visão de Deus: Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus.
Alguns Santos Padres e autores espirituais entendem esta pureza de coração como alusão à virtude da castidade. Sem excluir este sentido, se refere mais bem – segundo os melhores exegetas e teólogos – à ausência de toda mancha de pecado. Pouco importaria ter o coração limpo pela prática da castidade ou pureza, se estivesse manchado pelo ódio, o
N. Senhora de Fátima |
orgulho, ou qualquer outro pecado. O puro de coração é, pois, o que o tem limpo de toda casse de pecados.
Em qualquer dos sentidos, mas sobretudo no segundo, compreende-se sem esforço que a pureza de coração de Maria é imensamente superior à dos maiores Santos, posto que é uma pureza imaculada, não alcançada por nenhuma outra pessoa humana. Por isso Maria viu a Deus ainda neste mundo, como nenhuma criatura jamais O viu: não só pela fé, senão também, segundo a sentença quase unânime dos teólogos, através da própria visão beatífica em alguns dos momentos culminantes de sua vida.
1) Pela fé
Diz São Paulo que agora vemos de alguma maneira a Deus (pela fé) “como num espelho obscuramente, mas então (no Céu) O veremos faze a face” (I Cor. XIII, 12)
Os Santos, com efeito, ainda que seja num claro-escuro da fé, vêem a Deus em todas as coisas. Por exemplo, São João da Cruz O via nas montanhas vales solitários, rios sonoros … etc. São Francisco de Assis na irmã árvore, na irmã fonte…. e até no irmão lobo e na irmã morte.
A perfeita pureza de coração é efeito do dom de inteligência, pelo qual o Espírito Santo purifica e eleva a tal ponto a visão espiritual da alma que, de certo modo, lhe permite ver a Deus nesta mesma vida. (Semelhante visão) atingiu seu auge e perfeição na Santíssima Virgem Maria, posto que possuía em grau perfeitíssimo o dom de inteligência, como vimos em seu lugar correspondente.
2) Pela visão beatífica
Alcançou a Santíssima Virgem a ter visão beatífica em alguns momentos culminantes de sua vida terrena, como afirma um grande número de teólogos?
Nossa Senhora do Perpétuo Socorro |
Não se pode demonstrar com certeza, mas parece que deve-se responder afirmativamente. São Tomás nega terminantemente que a visão beatífica possa dar-se inconveniente em admiti-la transitoriamente – por uma comunicação momentânea do lume gloriae, como parece ter ocorrido em Moisés e em São Paulo.
Discorrendo sobre este tema, acrescenta D. Alastruey:
São Bernardino de Siena, fazendo comparação entre São Paulo e a Bem-aventurada Virgem Maria, diz: “E por isso com razão cheia de graça em contemplar a Deus e a todas as coisas criadas, incomparavelmente mais que Paulo, arrebatado ao terceiro Céu; porque, ainda que houvesse tantos Paulos como criaturas há, não alcançariam sua contemplação, pois se Paulo foi vaso de eleição, a Virgem Maria em troca foi vaso da Divindade.”
Da mesma maneira que Deus, nas coisas corpóreas, opera milagrosamente e sobrenaturalmente, assim também sobrenaturalmente e fora da ordem comum levou as mentes de alguns Santos que viviam neste carne até a visão de sua essência, como se crê que por singular privilégio aconteceu a Moisés, o guia dos judeus e a Paulo, o mestre dos gentios. Mas, se foi concedido a Moisés e a Paulo que alguma vez e passageiramente, vissem a essência de Deus, não pode haver razão para negar essa graça à Bem-aventurada Virgem, segundo a regra de São Bernardo: “Certamente não é licito suspeitar que se negou à tão grande Virgem, o que consta haver sido concedido ainda que a poucos mortais.”
3) A visão beatífica transitória na vida de Maria
Não há uma opinião de teólogos a respeito dos tempos ou momentos, da vida mortal de Maria em que Lhe foi concedido ver de modo transitório a essência de Deus. Entretanto, é costume assinalar principalmente cinco tempos ou oportunidades, nos quais se pode considerar a Bem-aventurada Virgem cheia da clara visão de Deus:
A) Na Imaculada Conceição e na Encarnação do Verbo
Em sua Imaculada Conceição e na Encarnação do Verbo, deve ter tido o privilégio da clara visão de Deus, Salazar procura
“N. Senhora da Ressurreição”, Seminário dos Arautos do Evangelho |
demonstrá-lo fundado em que na vida da Mãe de Deus há dois momentos mais felizes e mais dignos, nos quais foi enriquecida por Deus com dons mais preciosos e abundantes, a saber: o de sua Imaculada Conceição e o da Encarnação do Verbo divino. “Ainda que não fossem muitas vezes, diz ele, senão somente uma ou duas em sua vida, nas quais foi escolhida Maria para ver claramente a Deus, sentimo-nos obrigados a dizer isso se Lhe concedeu uma vez em sua concepção e outra na Encarnação, pois sendo a visão de Deus o mais excelente de todos os dons divinos, deve ter correspondido aos tempos mais felizes e dignos de Maria.”
B) Em seu próprio nascimento
Não há quem afirme expressamente que se concedeu à Bem-aventurada Virgem em seu nascimento a clara visão de Deus. “Sem embargo, diz Salazar, mereceria fé quem afirmasse que se lhe havia dado então um claro conhecimento de Deus por uma hora. Porque era decoroso que, ao nascer, fosse iluminada com uma luz mais esplendida e contemplasse amplamente em Deus o mundo e todas as criaturas que Ela presidia”.
C) No nascimento de Cristo
Que a Bem-aventurada Virgem no nascimento de Cristo teve de modo transitório clara visão de Deus, o insinua São Pedro Damião: “Considera que é Ela a que, transportada à doçura da contemplação, fixou mais claros olhares na substância do mesmo Deus.”
Santo Antonino é ainda mais categórico: “Quiçá na mesma concepção, ou no parto, se Lhe deu por breve tempo que visse este mistério, qual se vê na pátria, assim como Paulo viu a Deus em rapto”.
D) Na Ressurreição de Cristo
Sustenta São Tomás de Villanueva que a Bem-aventurada Virgem teve clara visão de Deus nessa ocasião, com este argumento: “Porque era conforme à razão que Aquela que havia sofrido tantas e tão grandes dores na Paixão do Filho, experimentasse, ainda que fosse por uns momentos, em sua Ressurreição, o consolo da bem-aventurança.”
4) Doutrina piedosa, porém não indubitável
Por último, apenas se necessita advertir que a doutrina aqui exposta sobre a clara visão de Deus concedida transitoriamente nesta vida à Bem-aventurada Virgem, não é proposta como certa, mas como piedosa e provável.
A este propósito, escreve Fr. Bernard:
Maria Salus Populi Romani, Museu de Santa Maria Maggiore, Roma |
Em que momentos pode ter havido esses fulgores de visão beatífica em Maria? Não pertence a ninguém dizê-lo. Ter-se-ão repetido, por exemplo, nas horas benditas da Anunciação e do Nascimento de Jesus, no dia da Ressurreição do Salvador, ou às vésperas da própria santa Dormição? Ninguém o saberá dizer. Nem mesmo podemos afirmar que se deram, posto que nossa fé não nos dá a conhecê-los, e talvez tenha eu já dito demais. Neste caso, que minha santa Mãe me perdoe”.
– Pacífica
A paz consigo mesmo e com os outros revela o homem que é imitador dAquele que é um Deus de unidade e de paz, e por isso lhe é dada em prêmio a glória da filiação divina, que consiste numa perfeita união com o Senhor por meio da consumada sabedoria. Bem-aventurados os pacíficos, porque serão chamados filhos de Deus.
A Virgem Santíssima foi eminentemente pacífica; foi uma digna Mãe dAquele que foi anunciado como o Rei Pacífico. Gozou de uma paz inalterada, tanto interna, quanto externa. No interior, pois jamais movimento algum desordenado veio minimamente perturbá-la, isenta como se achava da chama da concupiscência; no exterior, pois esteve sempre na mais doce e perfeita harmonia com todos.
– Perseguida por amor à justiça
A última bem-aventurança diz assim: Bem-aventurados os que sofrem perseguição por amor à justiça, porque deles é o Reino dos Céus.
A justiça ou santidade tem suscitado e seguirá suscitando sempre o ódio e a perseguição por parte dos injustos ou ímpios.
O Evangelho não nos proporciona dados concretos sobre se a Virgem Maria padeceu diretamente perseguição neste mundo por parte dos ímpios ou malvados. É indiscutível, porém, que a padeceu ao menos indiretamente, por parte dos que perseguiram a seu Divino Filho até o extremo de crucificá-Lo. A Virgem Maria não padeceu o martírio no corpo, mas o padeceu na alma como ninguém jamais o sofreu.
E como na oitava bem-aventurança se promete o Reino dos Céus aos que padecem perseguição por sua justiça ou santidade, não se há de estranhar que o título de Rainha dos mártires, conquistado com tanta dor na Terra, se tenha convertido para Ela no de Rainha e Soberana dos Céus e da Terra por toda a eternidade.
(CLÁ DIAS, JOÃO. Pequeno Ofício da Imaculada Conceição Comentado. Artpress. São Paulo, 1997, pp. 484 à 488)