JESUS REZA PELA TERCEIRA VEZ; OS DISCÍPULOS PELA TERCEIRA VEZ DORMEM; O TRAIDOR SE APROXIMA

Os Meus inimigos Me observam e conspiram contra MIM dizendo: Persegui-O e prendei-O, porque não há ninguém para O livrar... (Sal 70, 11) Veio a hora. O FILHO do Homem vai ser entregue às mãos dos pecadores (Mc 14, 41) Deixou-os e foi orar pela terceira vez, dizendo as mesmas palavras. Voltou então para os seus discípulos e disse-lhes: Dormi agora e repousai! Chegou a hora: o Filho do Homem vai ser entregue nas mãos dos pecadores... Levantai-vos, vamos! Aquele que me trai está perto daqui. (Mt 26, 44-46)

JESUS É TRAÍDO POR JUDAS

Até o próprio amigo em que EU confiava levantou contra MIM o Calcanhar. (Sal 40, 10) Judas, com um beijo trais o FILHO do Homem? (Lc 22, 48) Jesus ainda falava, quando veio Judas, um dos Doze, e com ele uma multidão de gente armada de espadas e cacetes, enviada pelos príncipes dos sacerdotes e pelos anciãos do povo. O traidor combinara com eles este sinal: Aquele que eu beijar, é ele. Prendei-o! Aproximou-se imediatamente de Jesus e disse: Salve, Mestre. E beijou-o. Disse-lhe Jesus: É, então, para isso que vens aqui? (Mt 26, 47-50)

Pai Nosso..., Ave Maria..., Glória ao Pai...
Pela sua dolorosa Paixão; tende Misericórdia de nós e do mundo inteiro.
Meu Jesus, perdão e Misericórdia, pelos méritos de Vossas santas Chagas.

Segundo as Visões de Anna Catharina Emmerich:

Foi depois da última visão, na qual os exércitos inimigos O despedaçaram, que saiu da caverna, quase fugindo e voltou para junto dos discípulos. Mas não tinha o andar firme; andava como um homem coberto de feridas e curvado sob um fardo pesado, como quem tropeça a cada passo. Chegando junto dos três Apóstolos, viu que não se tinham deitado para dormir, como da primeira vez; estavam sentados, as cabeças veladas e apoiadas sobre os joelhos, posição em que vejo muitas vezes o povo daquele país, quando estão de luto ou querem rezar.

Adormeceram vencidos pela tristeza, medo e fadiga. Quando Jesus se aproximou, tremendo e gemendo, acordaram, mas ao vê-lo diante de si, na claridade do luar, com o peito encolhido, o semblante pálido e ensangüentado, o cabelo desgrenhado, fitando-os com olhar triste, não O reconheceram por alguns momentos, com a vista fatigada, pois estava indizivelmente desfigurado.

Jesus, porém, estendeu os braços; então se levantaram depressa e, segurando-O sob os braços, ampararam-nO carinhosamente. Disse-lhes que no dia seguinte os inimigos O matariam; dai a uma hora O prenderiam, conduziriam ao tribunal, seria maltratado, insultado, açoitado e finalmente entregue à morte mais cruel.

Com grande tristeza lhes disse tudo o que teria de sofrer até a tarde do dia seguinte e pediu que consolassem sua Mãe e Madalena. Esteve assim diante deles por alguns minutos, falando-lhes; mas não responderam, porque não sabiam o que dizer, de tal modo as palavras e o aspecto do Mestre os tinha assustado; pensavam até que estivesse em delírio.

Quando, porém, quis voltar à gruta, não tinha mais força para andar; vi que João e Tiago O conduziram e, depois de ter entrado na gruta, voltaram. Eram cerca de onze horas e um quarto.

Durante essas angústias de Jesus, vi a SS. Virgem também cheia de tristeza e angústia, em casa de Maria, mãe de Marcos. Estava com Madalena e a mãe de Marcos, num jardim ao lado da casa; prostrara-se de joelhos, sobre uma pedra. Diversas vezes perdeu os sentidos exteriormente, pois viu grande parte dos tormentos de Jesus. Já enviara mensageiros a Jesus, para ter noticias, mas não podendo, na sua ânsia, esperar-lhe a volta, saiu com Madalena e Salomé para o vale de Josafá.

Ela andava velada e estendia muitas vezes as mãos para o monte das Oliveiras, porque via em espírito, Jesus banhado em suor de sangue e ela parecia, com as mãos estendidas, querer enxugar-lhe o rosto. Vi Jesus, comovido por esses caridosos impulsos da alma de sua Mãe, olhar para a direção em que Maria se achava, como para pedir socorro. Vi esses movimentos de compaixão em forma de raios luminosos, que emanavam de um para o outro.

O Senhor pensou também em Madalena, percebeu-lhe comovido a dor e olhou também para ela; por isso mandou também os discípulos que a consolassem, pois sabia que, depois do amor de sua Mãe, o de Madalena era o mais forte e tinha também visto o que ela teria de sofrer por Ele e que nunca mais O ofenderia pelo pecado.

Neste momento, cerca de 11 horas e 15 minutos, voltaram os oito Apóstolos à cabana de folhagem, no horto de Getsêmani; ali conversaram ainda e finalmente adormeceram. Estavam muito assustados e desanimados, em veementes tentações. Cada um tinha procurado um lugar para esconder-se e perguntaram uns aos outros inquietamente: “Que faremos, se o matarem? Abandonamos tudo quanto tínhamos e ficamos pobres e expostos ao escárnio do mundo. Fiamo-nos inteiramente nEle e ei-Lo agora tão impotente e abatido, que não podemos mais procurar nEle consolação”.

Os outros discípulos, porém, erraram no princípio de um lado para outro e depois terem ouvidos várias notícias das últimas palavras assustadoras de Jesus, retiraram-se, pela maior parte, para Betfagé.

Visões consoladoras; Anjos confortam Jesus

Vi Jesus rezando ainda na gruta e lutando contra a repugnância da natureza humana ao sofrimento. Estava exausto de fadiga e abatido e disse: “Meu Pai, se é a vossa vontade, afastai de mim este cálice. Mas faça-se a vossa vontade e não a minha". Então se abriu o abismo diante dEle e apareceram-Lhe os primeiros degraus, do Limbo, como na extremidade de uma vista luminosa. Viu Adão e Eva, os patriarcas, os profetas, os justos, os parentes de sua Mãe e João Batista, esperando-Lhe a vinda, no mundo inferior, como um desejo tão violento, que essa visa Lhe fortificou e reanimou o coração amoroso. Pela sua morte devia abrir o Céu a esses cativos; devia tira-los da cadeia onde languesciam à espera. Tendo visto, com profunda emoção, esses Santos dos tempos antigos, apresentaram-Lhe os Anjos, todas as multidões de bem-aventurados do futuro que, juntando seus combates aos méritos da Paixão do Cristo, deviam unir-se por Ele ao Pai Celeste. Era uma visão indizivelmente bela e consoladora. Todos agrupados, segundo a época, classe e dignidade, passaram diante do Senhor, vestidos dos seus sofrimentos e obras.

Viu a salvação e santificação sair, em ondas inesgotáveis, da fonte da Redenção, aberta pela sua morte. Os Apóstolos, os discípulos, as virgens e santas mulheres, todos os mártires, confessores e eremitas, papas e bispos, grupos numerosos de religiosos, em uma palavra: um exército inteiro de bem-aventurados apresentou-se-Lhe à vista. Todos traziam na cabeça coroas triunfais e as coroas variavam de forma, de cor, de perfume e de virtude, conforme a diferença dos respectivos sofrimentos, combates e vitórias que lhes tinham proporcionado a glória eterna. Toda a vida e todos os atos, todos os méritos e toda força, assim como toda glória e todo o triunfo dos Santos provinham unicamente de sua união aos méritos de Jesus Cristo.

A ação e influência recíproca que todos estes Santos exerciam uns sobre os outros, a maneira por que hauriam a graça de uma única fonte, do santo Sacramento e da Paixão do Senhor, apresentava um espetáculo singularmente tocante e maravilhoso. Nada parecia casual neles; as obras, o martírio, as vitórias, a aparência e os vestuários: tudo, apesar de bem diferente, se fundia numa harmonia e unidade infinitas; e essa unidade na variedade era produzida pelos raios de um único sol, pela Paixão de Nosso Senhor, do Verbo feito carne, o qual era a vida, a luz dos homens, que ilumina as trevas, as quais não o compreenderam.

Foi a comunidade dos futuros Santos que passou diante da alma do Salvador, que se achava colocado entre o desejo dos patriarcas e o cortejo triunfal dos bem-aventurados futuros; esses dois grupos unindo-se e completando-se de certo modo, cercavam o coração do Redentor, cheio de amor, como uma coroa de vitória. Essa visão, inexprimivelmente tocante, deu à alma de Jesus um pouco de consolação e força.

Ah! Ele amava tanto seus irmãos e suas criaturas, que teria aceito de boa vontade todos os sofrimentos, aos quais se entregaria pela redenção até de uma só alma. Como essas visões se referissem ao futuro, pairavam em certa altura.

Mas essas imagens consoladoras desapareceram e os Anjos mostraram-lhe a Paixão, mais perto da terra, porque já estava próximo. Estes Anjos eram muito numerosos.

Vi todas as cenas apresentadas muito distintamente diante dele, desde o beijo de Judas, até à última palavra na Cruz; vi lá tudo o que vejo nas minhas meditações da Paixão, a traição de Judas, a fuga dos discípulos, os insultos perante Anás e Caifás, a negação de Pero, o tribunal de Pilatos, a decisão diante de Herodes, a flagelação, a coroação de espinhos, a condenação à morte, o transporte da cruz, o encontro com a Virgem SS. no caminho do Calvário, o desmaio, os insultos de que os carrascos O cobriram, o véu de Verônica, a crucifixão, o escárnio dos fariseus, as dores de Maria, de Madalena e João, a lançada no lado, em uma palavra, tudo passou diante da alma de Jesus, com as menores circunstâncias.

Vi como o Senhor, na sua angústia, percebia todos os gestos, entendia todas as palavras, percebia tudo que se passava nas almas. Aceitou tudo voluntariamente, sujeitou-se a tudo por amor dos homens. O que mais O entristecia era ver-se pregado na Cruz num estado de nudez completa, para explicar a impudicícia dos homens: implorava com instância a graça de livrar-se daquele opróbrio e que pelo menos Lhe fosse concedido um pano para cingir os rins; e vi ser atendido, não pelos carrascos, mas por um homem compassivo. Jesus viu e sentiu profundamente a dor da Virgem SS., que pela união interior aos sofrimentos do seu Divino Filho, caíra sem sentidos nos braços das amigas, no Vale de Josafá.

No fim das visões da Paixão, Jesus caiu na Terra, como um moribundo; os Anjos e as visões da Paixão desapareceram; o suor do sangue brotava mais abundante; vi-O escoar-se através da veste amarela encostado ao corpo. A mais profunda escuridão reinava na caverna. Vi então um Anjo descendo para junto de Jesus: era maior, mais distinto e mais semelhante ao homem do que os eu vira antes.

Estava vestido como um sacerdote, de uma longa veste flutuante, ornada de franjas e trazia na mão, diante de si, um pequeno vaso, da forma do cálice da última Ceia. Na abertura deste cálice se via um pequeno corpo oval, do tamanho de uma fava, que espargia uma luz avermelhada. O Anjo estendeu-Lhe a mão direita e pairando diante de Jesus, levantou-se; pôs-lhe na boca aquele alimento misterioso e fê-Lo beber do pequeno cálice luminoso. Depois desapareceu.

Tendo aceitado o cálice dos sofrimentos e recebido nova força. Jesus ficou ainda alguns minutos na gruta, mergulhado em meditação tranqüila e dando graças ao Pai Celeste. Estava ainda aflito, mas confortado de modo sobrenatural, a ponto de poder andar para junto dos discípulos sem cambalear e sem se curvar sob o peso da dor. Estava ainda pálido e desfigurado, mas o passo era firme e decidido. Enxugara o rosto com um sudário e pusera em ordem os cabelos, que lhe pendiam sobre os ombros, úmidos de suor e conglutinados de sangue.

Quando saiu da gruta, vi a lua como dantes, com a mancha singular que formava o centro e a esfera que a cercava, mas a claridade dela e das estrelas era diferente da que tinham dantes, por ocasião das grandes angústias do Senhor. A luz era agora mais natural.

Quando Jesus chegou junto aos discípulos, estavam estes deitados, como na primeira vez, encostados ao muro do aterro, com a cabeça velada e dormiam. O Senhor disse-lhes que não era tempo de dormir, mas que deviam velar e orar. “Esta é a hora em que o Filho do homem será entregue nas mãos dos pecadores, disse, levantai-vos e vamos: o traidor está perto; melhor lhe seria que não tivesse nascido”.

Os Apóstolos levantaram-se assustados e olharam em roda de si inquietos. Depois de um pouco tranqüilo, Pedro disse calorosamente: “Mestre, vou chamar os outros, para vos defendermos”. Mas Jesus mostrou-lhes a alguma distância, no vale, do outro lado da torrente de Cedron, uma tropa de homens armados que se aproximavam com archotes e disse-lhes que um deles O tinha traído. Os Apóstolos julgavam-no impossível.

O Mestre falou-lhes ainda com calma, recomendando-lhes de novo que consolassem a Virgem SS. e disse: “Vamos ao encontro deles. Vou entregar-me sem resistência nas mãos dos meus inimigos”. Então saiu do horto das Oliveiras, com os três Apóstolos e foi ao encontro dos soldados, no caminho que ficava entre o jardim e o horto de Getsêmani.

Quando a SS. Virgem voltou a si, nos braços de Madalena e Salomé, alguns discípulos, que viram aproximar-se os soldados, vieram a ela e reconduziram-na à casa de Maria, mãe de Marcos. Os soldados tornaram um caminho mais curto do que o que Jesus tinha seguido, vindo do Cenáculo.

A gruta onde Jesus tinha rezado nessa noite, não era aquela na qual estava acostumado a rezar, no monte das Oliveiras, ia geralmente a uma caverna mais afastada, onde, depois de ter maldito a figueira infrutífera, rezara numa grande aflição, com os braços estendidos e apoiados sobre um rochedo.

Os traços do corpo e das mãos ficaram-Lhe impressos na pedra e foram mais tarde venerados; mas não se sabia então em que ocasião o prodígio fora feito. Vi diversas vezes semelhantes impressões feitas em pedras, seja por profetas do Velho Testamento, seja por Jesus, Maria ou algum dos Apóstolos; vi também as do corpo de Santa Catarina de Alexandria, no monte Sinai.

Essas impressões não parecem profundas, mas semelhantes às que ficam, pondo-se a mão sobre uma massa consistente.

Judas e sua tropa

Judas não esperava que a traição tivesse as conseqüências que se lhe seguiram. Queria ganhar a recompensa prometida e mostrar-se agradável aos fariseus, entregando-lhes Jesus, mas não pensara no resultado, na condenação e crucifixão do Mestre; não ia tão longe em seus desígnios.

Era só o dinheiro que lhe preocupava o espírito e já havia muito tempo travara relações com alguns fariseus e Saduceus astutos que, com lisonjas, o incitavam à traição. Estava aborrecido da vida fatigante, errante e perseguida, que levavam os Apóstolos.

Nos últimos meses furtara continuamente as esmolas, de que, era depositário e a cobiça, irritada pela liberalidade de Madalena quando derramou perfumes sobre Jesus, impeliu-o finalmente ao crime. Tinha sempre esperado um reino temporal de Jesus e uma posição brilhante e lucrativa nesse reino; como, porém, não o visse aparecer, procurava amontoar fortuna.

Via crescerem as fadigas e perseguições e pretendia manter boas relações com os poderosos inimigos de Jesus, antes de chegar o fim; pois via que Jesus não se tornaria rei, enquanto que a dignidade do Sumo Sacerdote e a importância dos seus confidentes lhe produziam viva impressão no espírito.

Aproximava-se cada vez mais dos agentes fariseus, que o lisonjeavam incessantemente, dizendo-lhe, num tom de grande certeza, que dentro de pouco tempo dariam cabo de Jesus. Ainda recentemente tinham vindo procurá-lo diversas vezes em Betânia. O infeliz entregava-se cada vez mais a esses pensamentos criminosos e multiplicava nos últimos dias as diligências para que os príncipes dos sacerdotes se decidissem a agir.

Estes ainda não queriam começar e tratavam-se com visível desprezo. Diziam que não havia tempo suficiente antes da festa e que qualquer tentativa causaria apenas desordem e tumulto durante a festa. Somente o sinédrio deu atenção ás propostas do traidor.

Depois da recepção sacrílega do SS. Sacramento, Satanás apoderou-se totalmente de Judas, que saiu decidido a praticar o crime. Primeiro procurou os negociadores, que sempre o tinham lisonjeado até ali e que receberam ainda com amizade fingida. Foi ter com outros, entre os quais Caifás e Anás; este último, porém, usou para com ele de um tom altivo e sarcástico. Estavam hesitantes, não contavam com o êxito, porque não tinham confiança em Judas.

Vi o império infernal dividido: Satanás queria o crime dos Judeus, desejava a morte de Jesus, do santo Mestre que fizeram tantas conversões, do Justo a quem tanto odiava; mas sentia também não sei que medo interno da morte dessa inocente vítima, que não queria subtrair-se aos perseguidores; invejava-O por sofrer inocentemente. Vi-O assim excitar de um lado o ódio e furor dos inimigos de Jesus e de outro lado insinuar a alguns destes que Judas era um patife, um miserável, que não se podia fazer o julgamento antes da festa, nem reunir número suficiente de testemunhas contra Jesus.

No sinédrio houve longa discussão sobre o que se devia fazer e, entre outras coisas, perguntaram a Judas: “Podemos prendê-Lo? Não terá homens armados consigo?” E o traidor respondeu: “Não, está só com os onze discípulos; está desanimado e os onze são homens medrosos”.

Também lhes disse que era preciso apoderar-se de Jesus nessa ocasião ou nunca, que não podia esperar mais tempo para entregá-Lo, porque não voltaria esperar mais tempo para entregá-Lo, porque não voltaria para junto do Mestre, pois, alguns dias antes, os outros discípulos e Jesus mesmo haviam evidentemente suspeitado dele; pareciam pressentir-lhe os ardis e sem dúvida o matariam, se voltasse para o meio deles. Disse-lhes ainda que, se não O prendessem agora, escaparia, voltando com um exército de partidários, para fazer proclamar-se rei.

Essas ameaças de Judas fizeram efeito. Deram-lhe ouvido ao conselho maldoso e ele recebeu o preço da traição, os trinta dinheiros. Essas moedas tinham a forma de uma língua, estavam furadas na parte arredondada e enfiadas, por meio de argolas, numa espécie de corrente; traziam certos cunhos.

Judas, ofendido pelo contínuo desprezo e a desconfiança que lhe manifestavam, sentiu-se impelido pelo orgulho a restituir-lhes esse dinheiro ou oferecê-lo ao Templo, para que o tomassem por um homem justo e desinteressado.

Mas recusaram-no, porque era preço de sangue, que não se podia oferecer ao Templo.

Judas viu quanto o desprezavam e sentiu-o profundamente. Não tinha esperado provar os frutos amargos da traição já antes de ter cometido; mas de tal modo que se havia comprometido com aqueles homens, que estava nas suas mãos e não podia mais se livrar deles. Observavam-no de muito perto e não o deixariam sair antes de ter explicado o caminho a seguir, para apoderar-se de Jesus.

Três fariseus acompanhavam-no, quando desceu a uma sala, onde se achavam os guardas do Templo, que não eram todos judeus, mas gente de todas as nações. Quando tudo estava combinado e reunido o número de soldados necessários, Judas correu primeiro ao Cenáculo, acompanhado de um servo dos fariseus, para lhes dar notícia, se Jesus ainda estava ali, por causa da facilidade de prendê-lo lá, ocupando as portas; devia mandar avisar-lhe por um mensageiro.

Um pouco antes de Judas receber o prêmio da traição, um dos fariseus saíra, para mandar sete escravos buscar madeira, para preparar a Cruz de Cristo, no caso que fosse condenado, porque no dia seguinte não teriam mais tempo, pois começava a festa da Páscoa.

Andaram cerca de um quarto de hora, para chegar ao lugar onde queriam buscar o madeiro da cruz; estava ali ao longo de um muro alto e comprido, junto com muitas outras madeiras, destinadas a construções do Templo; carregaram-no para um lugar atrás do tribunal de Caifás, afim de prepará-lo. A árvore da cruz crescera antigamente perto da torrente Cedron, no valo, de Josafá; mais tarde caíra através do ribeiro e servia de ponte.

Quando Neemias escondeu o fogo santo e os vasos sagrados na piscina Betesda, empregou também este tronco para cobri-los, junto com outra madeira; tirando-o depois de novo, jogaram-no para o lado, com outra madeira de construção.

Em parte foi para zombar de Jesus, em parte aparentemente por acaso, mas em verdade unicamente por disposição da Divina Providência, que a Cruz foi construída de uma forma especial. Sem contar a tábua do título, a cruz foi feita de cinco diferentes espécies de madeiras. Tenho visto muitas coisas a respeito da cruz, diversos acontecimentos e significações, mas tenho esquecido tudo, fora o que acabo de contar.

Judas, no entanto, voltou e disse que Jesus não estava mais no Cenáculo, mas havia de estar certamente no monte das Oliveiras, num lugar onde costumava rezar. Insistiu então que mandassem com eles somente uma pequena tropa, para que os discípulos, que espiavam por toda a parte, não suspeitassem e provocassem uma insurreição.

Trezentos soldados deviam ocupar as portas e ruas de Ofel, bairro ao sul do Templo e o vale Milo, até a casa de Anás, no monte de Sião, para poder mandar reforço à tropa na volta, caso o pedisse; pois em Ophel todo o povo baixo aderia a Jesus.

O indigno traidor disse-lhes ainda que tomassem muito cuidado, para Jesus não lhes escapar, mencionando que este já muitas vezes se tinha tornado invisível, por meio de artifícios misteriosos, fugindo assim aos companheiros na montanha. Fez-lhes também a proposta de amarrá-lo com uma corrente e servir-se de certas práticas mágicas, para que Jesus não rompesse as correntes. Os Judeus, porém, recusaram desdenhosamente esse conselho, dizendo: “Não nos podemos impor nada; uma vez que esteja em nossas mãos, está seguro”.

Judas combinou com a tropa entrar ele primeiro no horto, para beijar e saudar Jesus, como se voltasse do negócio, como amigo e discípulo; depois deviam entrar os soldados, para prender o Mestre. Procederia como se os soldados tivessem chegado na mesma hora, só por acaso; fugiria depois, como os outros discípulos, fingindo não saber de nada.

Talvez pensasse também que houvesse um tumulto, no qual os Apóstolos se defenderiam e Jesus fugiria, como fizera já diversas vezes. Assim pensava nos momentos de raiva, sentindo-se ofendido pelo desprezo e desconfiança dos inimigos de Jesus, mas não porque se arrependesse da negra ação ou por ter compaixão de Jesus; pois tinha-se entregue inteiramente a Satanás.

Também não queria consentir que os soldados, entrando depois, trouxessem algemas e cordas, nem que o acompanhassem, homens de má reputação. Satisfizeram-lhe aparentemente os desejos, mas procederam como julgavam dever proceder com um traidor em quem não se pode fiar e que se joga fora, depois de ter feito o serviço.

Foram dadas ordens expressas aos soldados de vigiar bem Judas e não o deixar afastar-se antes de ter prendido e amarrado Jesus; pois, como já tivesse recebido a remuneração, era de recear-se que o patife fugisse com o dinheiro e assim não poderiam prender Jesus de noite ou prenderiam outro em seu lugar, de modo que resultariam desta empresa apenas tumultos e desordens, no dia da Páscoa.

A tropa escolhida para prender Jesus compunha-se de vinte soldados, alguns da guarda do Templo, os outros soldados de Anás e Caifás. Estavam vestidos quase da mesma forma que os soldados romanos; usavam capacetes e do gibão lhes pendiam correias em redor da cintura, como tinham também os soldados romanos.

Distinguiam-se desses principalmente pela barba, pois os romanos em Jerusalém usavam só suíças, os lábios e queixo tinham imberbes. Todos os vinte soldados estavam armados de espadas, alguns tinham apenas lanças. Levavam consigo tochas e braseiras que, fixas sobre paus, serviam de lanternas; mas ao chegar, traziam acesa só uma das lanternas.

Os judeus queriam mandar antes uma tropa mais numerosa com Judas, mas abandonaram esse plano, concordando com ele, objeção do traidor, de que do monte das Oliveiras se podia ver todo o vale e desse modo uma tropa maior não poderia deixar de ser vista. Ficou, portanto, a maior parte em Ophel; mandaram também sentinelas a vários atalhos e diversos lugares da cidade, para impedir tumultos ou tentativas de salvar Jesus.

Judas marchou á frente dos vinte soldados; mandaram, porém, segui-lo a certa distancia quatro soldados de má reputação, gente ordinária, que levavam cordas e algemas. Alguns passos atrás desses, seguiam aqueles seis agentes, com os quais Judas travara relações há muito tempo. Havia entre eles um sacerdote de alta posição e confidente de Anás, outro de Caifás; além desses havia dois agentes fariseus e dois saduceus,que eram também herodianos. Todos, porém, eram espiões, hipócritas, aduladores interesseiros de Anás e Caifás e inimigos ocultos de Jesus, dos mais maliciosos.

Os vinte soldados seguiram ao lado de Judas, até chegarem ao lugar onde o caminho passa entre Getsêmani e o horto das Oliveiras; aí não quiseram deixá-lo avançar sozinho e começaram a discutir com ele, num tom grosseiro e impertinente.

O beijo de Judas

Quando Jesus saiu do horto, no caminho entre Getsêmani e o horto das Oliveiras, apareceu na entrada desse caminho, à distância de vinte passos, Judas com os soldados, que ainda estavam discutindo. Pois Judas queria, separado dos soldados, aproximar-se de Jesus, como amigo; eles deviam entrar como por acaso, aparentemente sem Ele saber; mas os soldados seguraram-no, dizendo: “Assim não camarada, não nos fugirás antes de termos preso a Galileu”.

Avistando depois os oito Apóstolos, que ao ouvir, o barulho se aproximaram, chamaram os quatro soldados para reforçar-se. Judas, porém, não consentiu que esses o acompanhassem e discutiu veementemente com eles. Quando Jesus e os três Apóstolos viram, à luz da lanterna, esse tropel ruidoso, com as armas nas mãos, Pedro quis atacá-los à força e disse: “Senhor, os oito de Getsêmani estão também ali adiante: Vamos atacar esses soldados”. Jesus, porém, mandou-o ficar quieto e retirou-se alguns passos para além do caminho, onde havia um lugar coberto de relva. Judas, vendo o seu plano transtornado, enraiveceu-se.

Quatro dos discípulos saíram do horto Getsêmani, perguntando o que havia acontecido. Judas começou a conversar, querendo sair do embaraço por meio de mentiras, mas os soldados não o deixaram afastar-se. Aqueles quatro eram Tiago, o Menor, Filipe, Tomé e Natanael; este e um dos filhos do velho Simeão e alguns outros tinham vindo para junto dos oito Apóstolos, em Getsêmani, uns enviados pelos amigos de Jesus, para ter notícias dEle, outros impelidos pela inquietação e curiosidade. Além desses quatro, andavam também os outros discípulos pelas vizinhanças, espiando de longe e sempre prontos a fugir.

Jesus, porém, aproximou-se alguns passos da tropa e disse em voz alta e clara: “A quem estais procurando?” Os chefes dos soldados responderam: “Jesus de Nazaré”. E Jesus disse: “Sou eu”. Apenas tinha dito estas palavras, caíram os soldados uns sobre os outros, como que atacados de convulsões.

Judas, que estava perto, ficou ainda mais desconcertado no seu plano; e pareceu querer aproximar-se de Jesus, mas o Senhor levantou a mão, dizendo: “Amigo, para que vieste?” Judas disse, cheio de confusão, alguma coisa sobre negócio realizado. Jesus, porém, disse-lhe mais ou menos as seguintes palavras: “Oh! Melhor te fora não ter nascido”. Mas não me lembro mais das palavras exatas.

No entretanto tinham-se levantado os soldados e aproximaram-se de Jesus e dos seus, esperando o sinal do traidor: que beijasse a Jesus. Pedro, porém, e os outros discípulos, cercaram Judas com ameaças, chamando-o de ladrão e traidor. O infeliz quis livrar-se deles por meio de mentiras, mas não conseguiu justificar-se, pois os soldados defenderam-no contra os discípulos, dando assim testemunho contra ele.

Jesus, porém, disse mais uma vez: “A quem procurais?” Virando-se para Ele, responderam de novo: “Jesus de Nazaré”. Então disse?: “Sou Eu; já vos tenho dito que sou Eu; se, pois, procurais a Mim, deixai aqueles.” A palavra “Sou Eu”, caíram os soldados de novo com convulsões e contorções, como as têm os epiléticos e Judas foi de novo cercado pelos Apóstolos, que estavam extremamente furiosos contra ele. Jesus disse aos soldados: “Levantai-vos.”

Levantaram-se assustados e como os Apóstolos ainda discutissem com Judas e também se dirigissem contra os soldados, estes atacaram os Apóstolos, livrando-lhes Judas das mãos e impelindo-o com ameaças a dar o sinal combinado, pois tinham ordem de prender só aquele a quem beijasse.

Judas aproximou-se então de Jesus, abraçou e beijou-O, dizendo, “Deus te salve, Mestre.” E Jesus disse: “Judas é com um beijo que atraiçoas o Filho do Homem?”