Passados os dias de apreensão que vivera o País no início dos 60, momentos nos quais a confiança na proteção divina foi seu principal consolo, Dª Lucilia tomou aquela pena tantas vezes utilizada para transmitir palavras de afeto, que faziam os encantos do filho distante, para escrever uma missiva à sua cunhada, a madrinha de Dr. Plinio.
A última carta
Dona Lucilia não via Dª Teresa desde a viagem a Pernambuco, havia sessenta anos. No entanto, com ela mantivera sempre afetuosa correspondência.
Comovedoras são as linhas desta carta, a última escrita por Dª Lucilia antes de partir para a eternidade.
São Paulo, [abril de 1964]
Querida Tetê!
Penso que ainda não recebeste a carta que te escrevi dando notícias nossas. (…) Estava sofrendo muito com reumatismo nos pés, e nas pernas, e o fígado péssimo!… Só ando de braço com uma empregada, e uma bengala na outra [mão], e com dificuldade!…
Sinto bem que não possas vir ver como o teu afilhado trabalha pela nossa religião… Tem escrito diversos livros católicos, fala em toda parte, a convite de uns e outros, para falar nas recepções, etc., e não chega para tudo!!
Sinto-me tão enfraquecida, que penso que já não te escreverei mais!! Recomenda-me com afeto a todos que ainda se lembrem de mim!
Com um afetuoso abraço, beija-te a cunhada que muito te quer, Lucilia
A rejeição de Dª Lucilia ao horrendo
O Brasil não estava imune ao contágio da 4ª Revolução 1, que em breve iria eclodir e difundir-se com virulência pelo mundo inteiro. Um dos aspectos mais salientes desta nova fase do processo revolucionário era a exaltação do horrendo.
Não houve civilização na História, por mais decadente que fosse, que não conservasse aceso um certo amor ao belo, refletido na arte e nos demais aspectos da vida, como por exemplo no vestuário ou nos utensílios de uso doméstico.
O homem do século XX, porém, não só sistematicamente sacrificou o pulchrum 2 em aras da modernidade ou do utilitarismo, como perdeu o senso da harmonia, passando a exaltar o feio e o desproporcionado. A arte moderna, em qualquer de seus ramos, é bastante elucidativa desse fato.
Sendo o homem criado à imagem e semelhança de Deus, que é a Beleza, e estando sua alma bem ordenada, não pode deixar de admirar profundamente tudo quanto é maravilhoso. Razão pela qual têm as crianças inocentes esse senso tão vivo.
Em nossos dias operou-se uma silenciosa revolução no mundo infantil, com a substituição dos belos brinquedos de outrora, evocativos de uma era ideal, por figuras que representam seres disformes e repelentes. Não é difícil conjecturar qual a reação da temperante alma de Dª Lucilia ante as primeiras manifestações dessa nova mentalidade.
Episódio significativo deu-se por ocasião da visita de alguns conhecidos ao apartamento da Rua Alagoas. Vinham estes acompanhados de suas filhas, duas menininhas encantadoras. Dir-se-ia anjos de uma iluminura medieval.
Aproximando-se de Dª Lucilia, atraídas por sua bondade e por seus modos afáveis, tiraram do bolso um pequeno pacote contendo bonequinhos de plástico, e puseram-nos nas mãos dela, exclamando alegremente: “Os monstros, os monstros!…”
Estava longe o tempo das bonecas de porcelana, vestidas de rendas, e dos vistosos soldadinhos de chumbo…
Dª Lucilia deitou especial atenção sobre um deles e, ao dar-se conta do que se tratava, ficou horrorizada e o afastou de si. Por certo terá interiormente lamentado não poder ela mesma velar pela educação das pequenas, introduzindo-as no universo das histórias maravilhosas que tão encantadoramente sabia narrar.
“Como ela é boazinha”
A saúde de Dª Lucilia, com o correr do tempo, ia cada vez mais inspirando preocupações. Tendo sofrido, em determinado momento, um agravamento súbito, foi necessário tirar uma radiografia. Por estar ela já com as forças debilitadas, seu filho contratou um técnico que realizasse esse exame no próprio apartamento.
Dr. Plinio ficou à espera dele, a fim de conduzi-lo ao quarto materno. Quando ele chegou, carregando todos os apetrechos radiológicos, entraram ambos no aposento. Era um homem de meia-idade, avantajada compleição, moreno, pele escurecida pelo sol, habituado a trabalhos pesados, e com uma certa insensibilidade às dores alheias. Este último aspecto não é de estranhar, pois sua profissão o punha em constante contato com as mais variadas formas de sofrimento humano causado pela enfermidade ou até pela iminência da morte.
Sem sequer olhar Dª Lucilia, o técnico a saudou com um banal “boa-noite”, e começou a preparar os aparelhos para efetuar “mais um serviço”, quiçá o último daquele dia. Porém, tais eram a ternura e o carinho com que Dr. Plinio tratava sua mãe, que o homem talvez se tenha surpreendido. Parou, então, de lidar com seus instrumentos, e quis ver quem era objeto de tanto afeto. Olhou detidamente para Dª Lucilia. Visivelmente comoveram-se as fibras mais sensíveis de sua alma. Aproximou-se da cama e, num gesto de carinho, passou seu enorme dedo por debaixo do queixo dela, dizendo ao mesmo tempo, enlevado:
— Como ela é boazinha!
Era a afetividade brasileira que falava no fundo da alma daquele robusto homem… Dona Lucilia permaneceu em silêncio, sem se mover, como se nada tivesse notado, apesar de tão inopinado gesto constituir involuntária falta de respeito para com a veneranda enferma.
Seu filho, percebendo como a benquerença de Dª Lucilia tocara aquele coração, por sua vez nada disse. Apenas guardou do fato terna e saudosa recordação.
Zelo pela conversão de um cunhado
Com certa freqüência, eram convidados a almoçar ou jantar em casa de Dª Lucilia alguns dos mais antigos companheiros de ação e de luta de Dr. Plinio, aos quais ela concedia maior intimidade.
Durante a refeição, a conversa atingia freqüentemente elevados temas religiosos, políticos e outros. Dona Lucilia se mantinha em atitude de discreta atenção, a tal ponto que um amigo particularmente íntimo de Dr. Plinio lhe dizia por vezes num tom de voz imperceptível para ela:
— Preste atenção. Repare como ela está te olhando…
Dr. Plinio, sem deixar de conversar, observava discretamente Dª Lucilia, comprovando como ela sorvia enlevada cada uma de suas palavras.
Noutras ocasiões, em que estava presente algum eclesiástico, e a conversa enveredava por temas doutrinários ou teológicos, Dª Lucilia interrompia amavelmente e perguntava:
— Por que não contam isso para meu cunhado?
Dona Lucilia estimava muito esse parente, e acreditava que despertar o interesse dele para tais assuntos lhe faria bem à alma. Por seu turno, ele também gostava de visitá-la e de manter com ela longas prosas, atraído precisamente por certos reflexos de alma que nela notava e que nunca deixou de admirar. Conforme comentou em certa ocasião, impressionavam-no sobretudo a atitude dela perante o sofrimento, e a distância que ela sempre soube manter em relação aos dissabores da vida, sem deixar que seus nervos fossem abalados por eles.
A última caixa de gravatas oferecida a seu filho
Passando um dia pelo corredor do apartamento, Dr. Plinio notou que sua mãe estava no escritório redigindo algo, sentada à escrivaninha. Tratava-se da “surpresa” que ela preparava para mais um aniversário do “filho querido de seu coração”.
Vencendo as dificuldades naturais da avançada idade, Dª Lucilia escreveu uma última dedicatória para Dr. Plinio, no papel de seda da caixa de gravatas que ela lhe daria de presente. Linhas traçadas com muito esforço, no qual entrava um enorme afeto, e o desejo de uma alma delicada de fazer tudo bem feito e com senso do dever.
Mais. Aquele gesto traduzia sua admiração por Dr. Plinio, a ilimitada confiança que nele depositava, seu incansável desejo de lhe agradar e o reconhecimento do quanto seu filho lhe era dedicado.
Enlevado com tal cena, Dr. Plinio não deixou sua mãe perceber que ele a observara e, após receber o presente, conservou a dedicatória como preciosa lembrança daquele incomparável amor materno. Eram estes os dizeres: Lembrança de Mamãe ao filho querido!! ((Transcrito, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de Mons. João Clá Dias).(Revista Dr. Plinio, Dezembro/2004, n. 81, p. 6 a 9).
última foto: Dr. Plinio em meados da década de 1960
Penúltima imagem: última caixa de gravatas, o presente sobre a escrivaninha do escritório do “1º Andar”