No ser humano, o instinto de sociabilidade e amizade é muito sensível e mais profundo ainda que o de conservação, a ponto de Aristóteles chegar a afirmar que “quem foge do
convívio com os outros ou é um animal selvagem, ou é um deus”.1
Precisando a rude afirmação do filósofo, São Tomás de Aquino explica haver apenas dois tipos de pessoas capazes de viver em solidão: os anacoretas e aqueles que, pela “crueldade do seu ânimo”,2 tornaram-se semelhantes aos animais. Os primeiros retiram-se ao deserto para melhor se entregar a Deus; os segundos, por não suportar o convívio com os homens.
Na vida em sociedade, todo homem sente o natural desejo de encontrar alguém que o apoie em suas dificuldades, comparta suas ideias e sonhos e seja, ao mesmo tempo, objeto de sua benevolência.
Dois homens juntos, afirma o Eclesiastes, são mais felizes que um só, porque “se um vem a cair, o outro o levanta. Mas ai do homem só: se ele cair, não há ninguém para levantá-lo” (4, 9-10). E São Tomás de Aquino acrescenta que o homem feliz necessita de amigos “para lhes fazer o bem e para alegrar-se ao vê-los fazendo o bem, e também para ser por eles auxiliado na prática do bem”.3
São Francisco de Sales insiste na imva”.5 Todavia, quem encontrará o grande tesouro de uma autêntica amizade, na qual poderá confiar cegamente, certo de que nunca será defraudado?
A verdadeira amizade é identificada por Aristóteles com o amor de benevolência, que faz desejar o bem para aquele por quem se sente afeto.6 E sendo a bem-aventurança eterna o supremo benefício a que todo homem deve aspirar, conclui-se só ser possível uma forma de amizade genuína: a que leva a querer bem ao outro por amor a Deus, almejando para ele a santidade.
Santo Agostinho7 ensina só haver no mundo dois amores: o amor a Deus levado até o esquecimento de si mesmo, e o amor a si mesmo levado até o esquecimento de Deus. Não há uma terceira opção.
Na amizade verdadeira não cabe sentimentalismo, que não é amor, mas mero desejo de sentir emoções que nos agradem. Quem procura se relacionar com os outros para satisfazer a própria sensibilidade, sem procurar o bem do próximo, ama-se a si mesmo e não a Deus. Deseja ser querido, admirado e compreendido por si mesmo, por suas próprias qualidades, sem remontar-se a Deus.
Humanamente falando, a amizade verdadeira é impossível nesta terra. Tendo sido concebidos em pecado original, somos passíveis de quedas enquanto vivemos neste vale de lágrimas.
Imbuído desse princípio de sabedoria, aconselha o Eclesiástico: “Se queres ter um amigo, toma-o depois de o teres provado, e não te fies facilmente nele. Há amigo que somente o é quando nisso acha a sua conveniência e deixará de o ser no dia da tribulação” (6, 7-8).
Se pusermos a nossa confiança nas qualidades naturais dos outros, cedo ou tarde acabaremos por nos decepcionar. Por isso adverte o profeta Jeremias: “Maldito o homem que confia no homem, que faz da carne o seu braço, e cujo coração se retira do Senhor” (Jr 17, 5). É em Deus, em Nossa Senhora e nos Santos que devemos depositar todas as nossas esperanças.
Na hora de escolher um verdadeiro amigo há, portanto, um critério sempre infalível: quanto mais uma pessoa está unida a Deus, tanto mais ela é digna de confiança.
Em sua Introdução à vida devota, o grande São Francisco de Sales adverte: “Não traves amizade senão com aquelas pessoas cujo convívio te pode ser proveitoso; e quanto mais perfeitas forem estas relações, tanto mais perfeita será a tua amizade. Se for a Religião, a devoção e o amor a Deus e o desejo da perfeição o objeto duma comunicação mútua e doce entre ti e as pessoas que amas, ah!, então tua amizade é preciosíssima. É excelente, porque vem de Deus; excelente, porque Deus é o laço que a une, excelente, enfim, porque durará eternamente em Deus”.8
A benquerença e o amor mútuo são, segundo os ensinamentos do Salvador, o sinal distintivo entre os filhos da luz e os filhos das trevas: “Nisto todos conhecerão que vós sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros” (Jo 13, 35).
Contudo, agir com caridade em relação ao próximo exige, neste vale de lágrimas, estar disposto a um verdadeiro holocausto. Por isso, imediatamente depois de repetir o mandamento novo, o Divino Mestre ensina aos seus discípulos: “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a sua vida por seus amigos” (Jo 15, 13).
É preciso estar disposto a dar a vida pelo outro a cada instante, sabendo sacrificar-se pelo benefício de sua alma ainda que isso suponha suportar um martírio diário, oferecido por amor a Deus.
O amor ao próximo, ensina Cornélio a Lápide,9 se demonstra por cinco meios: ter humildade, renunciar à vontade própria, preferir acima de tudo a caridade, ser paciente com os outros, e esforçar-se em acalmar e suportar suas impaciências e iras. Se soubermos seguir estes ensinamentos do célebre exegeta jesuíta, dir-se-á também de nós aquilo que se afirmava dos primeiros cristãos: “A multidão dos fiéis era um só coração e uma só alma” (At 4, 32).
Para que todos tenhamos “um mesmo amor, uma só alma e os mesmos pensamentos” (Fl 2, 2), é preciso nada fazermos por espírito de partido ou vanglória. Cada um de
nós, pelo contrário, deve ter em vista os interesses dos outros antes do que os próprios.
Deus “não nos trata segundo os nossos pecados, nem nos castiga em proporção de nossas faltas” (Sl 102, 10). Ao convivermos com outros, não podemos, portanto, analisá-los em função dos seus pecados, mas sim em função do amor que Nosso Salvador tem por cada um.
Ele “deseja que todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade” (I Tim 2, 4), e isso nos convida, como tantas vezes faz o próprio Deus, a passar por cima das mil misérias que há atualmente em cada um de nós, olhando para o que somos chamados a ser na vida eterna.
O Prof. Plinio Corrêa de Oliveira,10 para figurar esta questão, comparava a alma humana a uma acácia: vista de longe é lindíssima, cheia de flores coloridas; no entanto, quando olhada bem de perto, logo se percebem grosseiros espinhos, insetos, sujeiras e muitas outras imperfeições.
Ao considerar os outros, devemos procurar admirar as qualidades postas neles por Deus. E se a proximidade no convívio nos evidencia seus defeitos, procuremos ter sempre na mente a visão nobre e transcendente que tivemos ao contemplá-los em função de sua vocação.
Só assim teremos forças para manter um relacionamento repleto de respeito, consideração e afeto, até com aqueles que não nos tratam bem.
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Evitar olhar para os defeitos dos outros não significa, entretanto, aprovação ou conivência com eles.
Ao se relacionar com outra pessoa é quase impossível não se influenciar pelas qualidades e defeitos dela. Isso nos leva, segundo São Francisco de Sales, a ser vigilantes, pois “cada um já tem vícios de sobra e não precisa dos defeitos dos outros; e a amizade não exige nada disso, mas quer que nos auxiliemos mutuamente a corrigir os nossos defeitos”.11
Convida-nos, em consequência, o Santo Doutor a “suportar com brandura as imperfeições do amigo, sem o reforçar ainda mais nelas, pelas adulações, e sem permitir que nossa alma fique contagiada por complacência”.12
No momento em que o outro se afasta de Deus pelo pecado, só nos restam duas atitudes: enquanto ainda haja esperança de ele se corrigir, devo auxiliá-lo, pois “é uma amizade muito fraca ou má ver o amigo perecer e não o socorrer ou não ousar admoestá-lo um pouco sensivelmente para o salvar”;13 contudo, se estiver obstinado no mal de maneira que não seja mais passível de emenda, devemos nos afastar dele, pois “a verdadeira amizade não se pode conciliar com o pecado, porque este a arruína inteiramente”.14
“Sinal certo de uma amizade falsa é o apego a uma pessoa viciosa”,15 conclui São Francisco de Sales. Por isso, o Eclesiástico nos adverte: “Afasta-te dos teus inimigos, e toma cuidado com os teus amigos” (6, 13).
No Antigo Testamento encontramos exemplos de amizades paradigmáticas, fundadas no amor a Deus, entre as quais a florescida entre Rute, a moabita, e sua sogra Noemi.
Após a morte do marido e dos seus dois filhos, Noemi decidiu voltar para Judá e aconselhou as duas noras a retornarem para a casa materna. Rute, entretanto, quis permanecer junto dela: “Aonde fores, eu irei; onde habitares, eu habitarei. O teu povo é meu povo e o teu Deus, meu Deus” (Rt 1, 16).
Por cima da simpatia natural que sentia por Noemi e dos laços terrenos que as uniam, pairava no espírito de Rute a admiração pela religião judaica. Preferia cultuar o único e verdadeiro Deus ao lado de sua piedosa sogra, a voltar para o paganismo em que nascera.
Também Davi e Jônatas deram-nos um luminar exemplo de amizade. Sendo este último filho do Rei Saul, cabia-lhe herdar o trono de Israel. Entretanto, ao ver Davi pela primeira vez, após a derrota que este infligiu ao gigante filisteu, passou “a amá-lo como a si mesmo” (I Sm 18, 1). Longe de invejar aquele pobre pastor de ovelhas que o povo aclamava como herói, encheu-se de admiração.
Tendo discernido o altíssimo desígnio de Deus que pairava sobre a pessoa de Davi, o filho de Saul renunciou à sua própria condição: “Tu reinarás sobre Israel, e eu serei o teu segundo” (I Sm 23, 17).
Muito mais numerosos são os exemplos de genuína amizade na História da Cristandade, era fundada no mandamento do amor e fecundada pelo Preciosíssimo Sangue
de Cristo.
Um deles se encontra nos doze pares de Carlos Magno, nobres guerreiros honrados com a maior confiança pelo grande patriarca da Europa medieval. Eles lutavam sempre ao lado do imperador, e sua união era tal que os tornou modelo de fidelidade para todos os tempos.
Narra-se, por exemplo, que quando Roland agonizava mortalmente ferido em pleno campo de batalha sentiu alguém se aproximando e, como já não enxergava mais, julgou ser um inimigo. Desferiu-lhe então uma espadagada na cabeça, com tal força que quase a abriu!
Tratava-se, entretanto, de seu amigo Olivier, que se aproximava a socorrê-lo… Ao escutar o grito de dor, Roland logo reconheceu a voz de seu companheiro e, aflito, perguntou: “Eu lhe feri?” Contudo, a amizade entre eles era tão forte que Olivier respondeu, sem um pingo de ressentimento ou pena de si mesmo: “Não, meu irmão! Não aconteceu nada comigo, eu estou aqui para o ajudar!”
Da. Lucilia Ribeiro Corrêa de Oliveira, nobre dama paulista nascida em finais do século XIX, gostava de relembrar um fato ocorrido com seu pai, que bem ilustra como era o relacionamento humano no Brasil naquela época.
Sendo ela muito jovem, o Barão de Araraquara visitou a fazenda que seus pais, Dr. Antônio e Da. Gabriela, possuíam em Pirassununga. Vendo como estava mal organizada, ofereceu-se para ajudar o amigo, pedindo-lhe que a deixasse inteiramente em suas mãos por um período de cinco anos.
Dr. Antônio assentiu, sem problema algum. Tinha dotes incomuns para exercer a advocacia, e muito poucas qualidades para governar uma fazenda. Durante esse tempo limitou-se a fornecer o dinheiro solicitado pelo amigo sem pedir-lhe explicações.
Transcorrido o prazo estipulado, o barão encontrou-se com Dr. Antônio e lhe disse: “Você ainda não me perguntou nada sobre sua fazenda. Quer visitá-la amanhã?”
No dia seguinte os dois viajaram até Pirassununga e encontraram a fazenda renovada, completamente em ordem e produtiva.
Por muito tocantes que possam nos parecer esses episódios históricos, eles não são nada, entretanto, em comparação com o supremo exemplo dado por Nosso Senhor.
Não foi por acaso que Ele disse: “Já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que faz seu senhor. Mas chamei-vos amigos, pois vos dei a conhecer tudo quanto ouvi de meu Pai” (Jo 15, 15).
Tão sublime afirmação não se aplica somente aos Apóstolos, mas a todos os batizados. Cristo tomou sobre Si as nossas enfermidades e carregou os nossos sofrimentos (cf. Is 53, 4), abrindo-nos assim o caminho da salvação. Ele, que nos ensinou a dar a vida por nossos amigos, deu disto incomparável, perfeito e infinito exemplo. Saibamos ser recíprocos, amando com todas as nossas forças ao Deus que Se fez pequeno por amor a nós. (Revista Arautos do Evangelho, Janeiro/2020, n. 217, p. 30 a 33).