Quando nos referimos à consagração a Nossa Senhora, há quem pergunte se esta forma de devoção não seria um tanto acrônica e pouco adequada para os dias atuais.

Não é o que pensa um dos Papas mais recentes, que exerceu seu longo pontificado sob um lema indubitavelmente mariano: Totus tuus.

Na Encíclica Redemptoris Mater, São João Paulo II ensina:

A espiritualidade mariana, assim como a devoção correspondente, tem uma riquíssima fonte na experiência histórica das pessoas e das diversas comunidades cristãs que vivem no seio dos vários povos e nações sobre toda a face da terra.

A este propósito, é-me grato recordar, dentre as muitas testemunhas e mestres de tal espiritualidade, a figura de São Luís Maria Grignion de Montfort, o qual propõe aos cristãos a consagração a Cristo pelas mãos de Maria, como meio eficaz para viverem fielmente os compromissos batismais.

E registro ainda aqui, de bom grado, que também nos nossos dias não faltam novas manifestações desta espiritualidade e devoção.

Por ocasião de sua visita ao Santuário de Jasna Gora, em 1979, o mesmo Papa São João Paulo II explica melhor em que consiste esta consagração.

Referindo-se ao ato de total servidão à Mãe de Deus promovido pelo Primaz da Polônia em 1966, explicou ele:

O ato fala de “servidão” e esconde em si um paradoxo semelhante às palavras do Evangelho, segundo as quais é necessário perder a própria vida para a encontrar (cf. Mt 10, 39).

O amor constitui, de fato, a consumação da liberdade, mas, ao mesmo tempo, “o pertencer” – isto é, o não ser livre – faz parte da sua essência.

Mas este “não ser livre” no amor não é entendido como escravidão, mas sim como afirmação de liberdade e como consumação dela.

O ato de consagração na escravidão indica, portanto, singular dependência e confiança sem limites.

Neste sentido a escravidão (a não liberdade) exprime a plenitude da liberdade, do mesmo modo que o Evangelho fala da necessidade de perder a vida para a encontrar na sua plenitude.

São João Paulo II nos convida, assim, parafraseando São Paulo (cf. Rm 8, 21), a participar da gloriosa liberdade dos escravos de Maria.

Escravidão que liberta, liberdade que escraviza

Um ano depois da visita do pranteado pontífice a Jasna Gora, num artigo escrito para o jornal Folha de São Paulo, o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira sintetizava tal paradoxo com estas palavras: “Há uma escravidão que liberta, e há uma liberdade que escraviza”.

Denunciava ele a radical inversão de valores na mentalidade do homem moderno “alforriado” da obrigação de cumprir os Mandamentos de Deus e da Igreja:

Para uns é livre quem, com a razão obnubilada e a vontade quebrada, impelido pela loucura dos sentidos, tem a faculdade de deslizar voluptuosamente no tobogã dos maus costumes.

E é “escravo” aquele que serve à própria razão, vence com força de vontade as próprias paixões, obedece às leis divinas e humanas, e põe em prática a ordem.

Ora, prossegue ele, para aqueles que à Santíssima Virgem se consagram livremente como “escravos de amor”,

Ela obtém as graças de Deus que elevem as inteligências deles até a compreensão lucidíssima dos mais altos temas da fé, que deem às vontades deles uma força angélica para subir livremente até esses ideais, e para vencer todos os obstáculos interiores e exteriores que a eles indebitamente se oponham.

[…] Para todos os fiéis, a “escravidão de amor” é, pois, essa angélica e suma liberdade com que Nossa Senhora os espera no umbral do século XXI: sorridente, atraente, convidando-os para o Reino d'Ela, segundo sua promessa em Fátima: “Por fim, o meu Imaculado Coração triunfará”.

A Sagrada Escravidão a Maria: síntese do culto mariano

Além do culto de veneração, de amor, de gratidão, de invocação e de imitação, deve-se à Virgem Santíssima, como Rainha de todo o universo, um culto de escravidão.

Este último ato de culto mariano sintetiza admiravelmente todos os outros dos quais temos tratado.

O escravo fiel à sua Rainha, se realmente o é, antes de tudo A venera, reconhecendo sua excelência única. Em segundo lugar, A ama e faz o que agrade a Ela, evitando tudo o que A moleste.

Está pleno de gratidão em relação a Ela pelos grandes favores que lhe tem concedido. Está pleno de confiança em sua Rainha, pois sabe que Ela conhece, pode e quer socorrê-lo em tudo o que necessite.

O servo fiel à sua Rainha, por último, se de fato o é, trata de imitá-La já que A reconhece como seu modelo ideal.

Eis, portanto, como o ato de escravidão sintetiza todos os outros atos de singular culto que devemos a Maria Santíssima, Mãe de Deus, Mãe dos homens, Corredentora do gênero humano, dispensadora de todas as graças divinas, modelo insuperável de nossa vida.