Um príncipe passava por Milão: para homenageá-lo, celebraram-se divertimentos públicos. De repente, uma notícia sinistra se espalhou celeremente: manifestara-se a peste em dois lugares da cidade.
O príncipe, imediatamente, e com precipitação retirou-se, seguido do governador e de grande parte da nobreza e dos magistrados.
Ficaram na cidade apenas o povo e os pobres com um pequeno número de magistrados e alguns bons padres ou religiosos, num terror e desolação inenarráveis.
O santo arcebispo Carlos fora administrar os últimos sacramentos a um bispo da província. Quando regressou, toda a agente se lhe reuniu ao redor, a gritar, consternada, e a chorar:
- Misericórdia, Senhor, misericórdia! A peste aqui ficará por seis meses!
Carlos foi o salvador do povo. Secundado por padres e religiosos, que animava à caridade, proveu as necessidades corporais e espirituais dos doentes, visitando-os e administrando-lhes, ele mesmo, os sacramentos. Para alimentá-los ou vesti-los, vendia tudo aquilo que tinha, até a cama, resignando-se a dormir sobre tábuas. E jejuando e orando, sofrendo pela saúde de todos, procurou afastar a ira de Deus. Orava e jejuava, sem cessar.
Nascido duma ilustre família, sobrinho do Papa Pio IV, cardeal e arcebispo, empregou toda a superioridade para melhor servir a Igreja, secundar os sábios regulamentos do santo concílio de Trento, que vinha de concluir-se por seu desvelo, reprimir as heresias, reformar os costumes do clero e do povo, reanimar o fervor dos claustros, renovar, numa palavra, a face da terra.
Por si mesmo, viveria com mais austeridade, que um trapista. Muitos anos antes de sua morte, que se deu em 1584, propôs a si mesmo uma lei: jejuar todos os dias, passar a pão e água, excetuando os domingos e dias de festas, nos quais comia um pouco deste ou daquele legume ou fruta. Continuamente fazia uso do cilício, dormia muito pouco, passando em orações as vigílias das grandes festas.
Quem quer que rogasse a São Carlos lhe traçasse as regras a seguir, para progredir na virtude, dava-lhe o santo, invariavelmente, esta resposta:
- Aquele que deseja progredir no serviço de Deus, deve começar cada dia da vida com um novo ardor, ater-se na presença de Deus o mais possível e tudo fazer para que as ações que praticar sejam para a glória do Senhor.
E o que São Carlos Borromeu dizia, cumpria-o. Quanto a nós, façamos o que nos diz.
De resto, o que São Carlos fez durante a peste de Milão, fê-lo durante toda a vida, nada aspirando, senão à glória de Deus e à salvação do próximo. Na diocese toda, vêem-se monumentos vários que lhe exaltam a caridade.
Em Milão, fundou um convento de capuchinhos, onde a filha de João Batista Borromeu, seu tio, professou e morreu com reputação de santidade. Um mosteiro de Ursulinas, para instrução de órfãs, um hospital para pobres, onde eram recebidos todos os que estavam necessitados, outro para convalescentes, etc.
Os oblatos tiveram a direção dos colégios e seminários diocesanos. Quanto ao colégio que fundou em Pavia, entregou-o São Carlos à direção dos cleros regulares de Somasque.
Além do governo-geral da província e da diocese, ocupava-se ainda com a direção particular das almas. Gostava imensamente de assistir aos moribundos. Ao ter conhecimento de que, isso em 1583. O duque de Sabóia, adoecera em Vercelli, e os médicos estavam desesperançados, para lá partiu, chegando ainda com tempo para o encontrar vivo.
O duque, ao pressentir o santo arcebispo no quarto, exclamou:
- Estou curado!
São Carlos, administrou-lhe a comunhão, no dia seguinte e ordenou orações para que se restabelecesse. O duque viveu persuadido de que, depois de Deus, devia a cura aos méritos do santo. Quando, afinal, veio a falecer, deixou ordenado lhe acendessem uma lâmpada de prata no túmulo, em, sinal de agradecimentos por aquele benefício.
Ia São Carlos, de quando em quando, fazer retiros em Camaldules e noutros lugares solitários. Apreciava, especialmente, fazê-lo em Monte-Varalli, na diocese de Novara, nas fronteiras da Suíça. Ali os mistérios da paixão eram representados nas diferentes capelas. Em 1584, reuniu-se com seu confessor, para preparar-se para a morte, que dizia, já estava próxima. E passou, então, a redobrar as austeridades.
Neste último retiro, parecia mais embevecido em Deus do que nunca, livre de todas as coisas terrenas, bem longe de tudo o que formigava cá embaixo. A abundância de lágrimas, tanto chorava, obrigava-o a interromper, constantemente, a celebração as santa missa. Passava a maior parte do tempo na capela chamada Súplica do Jardim, e naquela Do Sepulcro. Dir-se-ia um morto, tão engolfado vivia no Salvador, para reconhecer a si mesmo.
Aos 24 de outubro, terça-feira, foi tomado por uma grande febre. Aos 29, tendo terminado o retiro, partiu para Arona. A febre aumentava, e o que era pior, era contínua. No dia dos mortos, foi levado para Milão, em liteira. A doença que o acometera foi julgada gravíssima. Havia momentos de melhora, mas em breve, o recrudescimento da febre anunciou-se por sintomas tão incômodos, que os médicos que a ele assistiam perderam toda a esperança que, havia bem pouco, ainda nutriam de o salvar.
Carlos, que não interrompera os exercícios de devoção, recebeu o julgamento dos médicos com uma serenidade sobrenatural, com uma tranqüilidade difícil de se acreditar, e pediu os sacramentos da Igreja, sacramentos que recebeu com o maior fervor e unção.
De tarde, principiava docemente a noite de 4 de novembro, morria, pronunciando estas palavras:
- Ecce venio - Eis que eu venho.
Por testamento, deixou para a catedral uma baixela, a biblioteca para o cabido, os manuscritos para o bispo de Vercelli, instituindo o hospital geral, seu herdeiro. Quanto aos funerais, deixou ordens explícitas para que se fizessem com a maior simplicidade. Escolhera como sepultura um recanto existente perto do coro, e não queria outra inscrição senão aquela que ainda hoje se lê numa pequena placa de mármore, que diz assim:
"Carlos, Cardeal com o título de São Praxédes, arcebispo de Milão, que implora o socorrro das orações do clero, do povo e dos devotos em geral, escolheu esta tumba, quando em vida."
E fez-se esta edição:
"Viveu 46 anos, um mês e um dia, governou esta igreja por 24 anos, 8 meses, 24 dias, tendo falecido aos 4 de novembro de 1584.
(Vida dos Santos, Padre Rohrbacher, Volume XIX, p. 174 à 179)