São Gaudêncio, bispo de Bréscia e sucessor de São Filastro, era contemporâneo de Santo Ambrósio, de São Jerônimo, de Santo Agostinho e de São Crisóstomo. Contudo, não se conhece ao certo a data do seu nascimento, nem o ano em que morreu. Só em seus discursos e sermões, em número de vinte e um, é que são encontradas algumas informações sobre a sua vida. No elogio que teceu sobre São Filastro, chama-o de pai, o que nos leva acreditar que também nascera em Bréscia, ou pelo menos, fora nessa cidade elevado ao clericato.
Era sacerdote, mas ainda muito jovem, quando empreendeu a peregrinação a Jerusalém. Percorrendo as cidades da Capadócia, chegou a Cesaréia, metrópole de que São Basílio fora arcebispo. Lá encontrou um grande mosteiro de virgens, cujas superioras eram as sobrinhas de São Basílio, irmãs pela natureza, pela fé, pela pureza e pelo fervor. Tinham recebido de seu tio as relíquias dos quarenta mártires de Sebaste, cuja memória a Igreja cultua nos dias 9 e 10 de março. Havia muito tempo que pediam a Deus que lhes permitisse entregar aquele precioso tesouro a uma pessoa de confiança, que soubesse dar-lhes o devido valor, pois eram muito idosas, e esperavam morrer de um dia para outro. Tendo entrado em contato com São Gaudêncio e, informadas de que viera da província de Santo Ambrósio, de boa vontade lhe cederam as santas relíquias, convencidas de que seriam veneradas na Itália com a mesma piedade, ou ainda maior, do que o eram no Oriente. São Gaudêncio teve, pois, quarenta mártires como companheiros de peregrinação; de regresso, depositou-os numa nova igreja de Bréscia.
Ainda não retornara de Jerusalém, quando faleceu São Filastro, bispo de Bréscia. Imediatamente o clero e o povo da cidade elegeram para substituí-lo o padre Gaudêncio, embora ausente. Protestaram, mesmo, sob juramente, que não aceitariam outro. Os bispos da província, encabeçados por Santo Ambrósio, escreveram a Gaudêncio, por emissários enviados pelo povo, pedindo-lhe que voltasse para a sua pátria. Ele regressou a Bréscia e malgrado todas as suas tentativas para subtrair-se à escolha, recebeu a consagração episcopal das mãos de Santo Ambrósio. Isso se deu no ano de 287. Chegou até nós o discurso que pronunciou na ocasião, e no qual fala de si mesmo com muita humildade:
"Convencido da minha incapacidade, e esquivando-se por causa da minha idade, imatura para a dignidade do sacerdócio, supliquei aos soberanos sacerdotes que me permitissem permanecer em silêncio; pois temo em primeiro lugar que a virtude das palavras celestes perca a força através da linguagem da minha insuficiência. Em seguida, envergonho-me por não poder oferecer a tão grande espera o desejado fruto da doutrina. Assim, sentindo-me completamente incapaz de corresponder à vossa expectativa, esforcei-me para declinar este fardo. Mas o bem-aventurado padre Ambrósio e outros veneráveis pontífices, sujeitos ao juramento ao qual também vós temerariamente vos ligastes, escreveram-me, por intermédio de vossos emissários, cartas tais, que não me permitiram mais resistir. Sem perigo para a minha alma. Além disso, os bispos orientais recusar-me-iam a santa comunhão, se eu não prometesse voltar para vós. Cercado de todas as partes e subjugado pela autoridade dos santos aqui presentes, recebi o encargo do soberano sacerdócio, sem dele me julgar digno, nem pelos méritos, nem pela idade, nem pela doutrina. Considerai, pois, quanto sofro, eu que não sei falar, por não poder calar-me. Pela imposição dos mais antigos, sou obrigado a obedecer além de minhas forças, pois impossibilitado de guardar silêncio, e incapaz de proferir o que devo dizer. Porém ciente pela autoridade da lei divina de que as ordens de nossos pais espirituais são salutares, atrevo-me a falar, e a levar até os vossos ouvidos um insignificante sermão; talvez o acolhereis pacientemente, pela razão de que é útil ao povo de Cristo aprender, através do exemplo daquele que vos prega, a obediência, que é preferida ao sacrifício divino, e anteposta a todos os mandamentos de Deus". São Gaudêncio assim termina a sua alocução: "Rogo a Ambrósio, nosso pai comum, que, após o insignificante orvalho do meu discurso, se digne regar vossos corações com os mistérios das Sagradas Escrituras; pois ele vos falará pelo Espírito Santo, que nele habita; rios de águas vivas irromperão de suas entranhas, e tal como um sucessor do apóstolo Pedro, ele será a boca de todos os pontífices aqui presentes; pois tendo o Senhor Jesus interpelado os apóstolos: "E vós, quem dizeis que eu seja? Unicamente Pedro respondeu, como órgão de todos: "Sois Cristo, Filho do Deus vivo".
Temos outro pequeno sermão que São Gaudêncio pronunciou mais tarde diante de Santo Ambrósio, em Milão, sobre a natividade ou nascimento de São Pedro e São Paulo, festejados àquele dia, isto é a natividade ou o nascimento para o céu pelo martírio.
São Gaudêncio fazia todos os anos o panegírico de seu predecessor São Filastro que, como Abraão, deixara a pátria e a família para obedecer à vocação de Deus, percorrendo como apóstolo grande parte do universo, conquistando com seus ensinamentos os pagãos, os judeus, os heréticos, em particular os arianos de Milão. Tendo chegado a Bréscia, e eleito bispo, arroteou aquela terra, até então inculta, e transformou-a num campo abençoado. De todos os panegíricos que São Gaudêncio pronunciou todos os anos no dia 18 de julho, só nos ficou um, décimo-quarto.
Os sermões de São Gaudêncio eram tão apreciados que havia quem os anotasse na própria igreja. Entre seus editores mais fiéis, encontrava-se Benévolo, um dos homens mais importantes de Bréscia, e até mesmo do império. Era chanceler do jovem imperador Valenciano, quando a mãe deste último, a Imperatriz Justina, começou a perseguir Santo Ambrósio e os católicos, para favorecer os arianos. Como o chanceler tinha a seu cargo escrever e selar as leis, ela tentou obrigá-lo a redigir uma em favor dos arianos, e contrária aos católicos. Ele se recusou. A Imperatriz prometeu-lhe ainda maiores honrarias. Benévolo ainda não fora batizado, era apenas catecúmeno. Insensível a todas as promessas, despojou-se dos símbolos da dignidade e retirou-se, como simples indivíduo, para Bréscia, sua terra natal, onde se tornou amigo de São Filastro e do sucessor do mesmo bispo. Certa ocasião quando, retido por uma grave moléstia, Benévolo não pode ouvir as lições que São Gaudêncio deu aos neófitos durante os oito dias da Páscoa, pediu ao santo Bispo que as enviasse por escrito, a fim que delas pudesse tomar conhecimento. Levado pela amizade o Bispo satisfez-lhe o pedido, embora com certa repulsa, e juntou àqueles ensinamentos mais alguns sermões, dezessete ao todo; pois não respondia pelas cópias quase sempre defeituosas dos notários ou estenógrafos.
No seu primeiro sermão pascal, São Gaudêncio observa que Deus criou o mundo na primavera, que livrou Israel da servidão do Egito na primavera, que resgatou o mundo inteiro na primavera. Criou o céu e a terra no primeiro dia da semana; nesse mesmo dia, ao ressuscitar do túmulo, criou novos céus e uma nova terra. É no sexto dia da semana que cria o primeiro homem, e é no sexto que resgata morrendo na cruz; morte e ressurreição conferidas ao novo cristão pelas águas do batismo. Costumava ler para os neófitos os capítulos do Êxodo que se referem à imolação do Cordeiro pascal, de seus preparativos e de suas conseqüências, assim como o Evangelho de São João, no qual Jesus Cristo assiste às bodas de Caná, na Galiléia, e transforma a água em vinho para mostrar que é o mesmo Deus, que no princípio, criou o primeiro homem e a primeira mulher, instituiu e abençoou a união conjugal. "Outrora, no Egito, imolaram muitos cordeiros; agora, um único cordeiro, o Cordeiro de Deus, basta para todos; pois criador e senhor da natureza, ele que da terra faz o pão, faz do pão seu próprio corpo; e que da água faz o vinho, faz do vinho seu sangue.
Tendo São Gaudêncio construído uma nova igreja, consagrou-a solenemente, na presença de vários bispos, e nela depositou as relíquias de grande número de mártires, cuja enumeração faz. Em primeiro lugar João Batista, o último, e também o maior dos profetas; em segundo, Santo André, a princípio discípulo de João, depois do Salvador; em terceiro, Tomás, o único que, depois da ressurreição de Cristo, desejou e conseguiu tocas seus membros; em quarto, São Lucas, que redigiu com maravilhosa exatidão o Evangelho e os Atos dos Apóstolos. Depois desses quatro, temos os mártires, Protásio, Gervásio e Nazário que, anos atrás, se tinham dignado revelar-se, em Milão, ao bem-aventurado pontífice Ambrósio. Dele conservamos as sagradas cinzas de Sisínio, Martírio e Alexandre, que uma nação sacrílega acaba de supliciar pelas chamas por ódio à verdadeira fé. Enfim, além desses dez, temos os quarenta mártires de Sabaste." Temos uma parte delas, e, nem por isso acreditamos ter menos, pois veneramos os mártires inteiros nas suas cinzas, como a mulher mencionada pelo Evangelho que, apenas tocando a fímbria do vestido do Salvador, atraiu a virtude da divindade e foi curada.
São Gaudêncio de Bréscia mostrou-se digno dos grandes bispos do seu tempo, Santo Ambrósio, Santo Agostinho, São João Crisóstomo. Este último, perseguido e condenado ao exílio pelos bispos da corte, apelou para o Papa Inocêncio, que escreveu muitas cartas a seu favor.
Em 405, o soberano Pontífice reuniu em Roma um concílio para examinar o caso; foram enviados emissários ao Imperador de Constantinopla, incumbidos de defender a causa de São João Crisóstomo. São Gaudêncio foi o chefe dessa deputação; pois temos uma carta na qual São João Crisóstomo o felicita e agradece. Os próprios emissários foram perseguidos; maltratados e encarcerados, depois embarcados num navio em precário estado. Mas Deus, por cuja causa tinham arriscado a vida, preservou-os do perigo, São Gaudêncio morreu cerca do ano de 420; não se conhece bem a data exata.
(Vida dos Santos, Padre Rohrbacher, Volume XVIII, p. 9 à 14)