Todos os sonhos são meros sonhos ou, alguns pelo menos, têm um significado qualquer? Deixando de lado o que diz a esse respeito a psicologia - dividida, aliás, em várias opiniões divergentes -, desejamos abordar essa questão de um ângulo bem distinto.
Se voltarmos os olhos para a História da Salvação, veremos que não é raro Deus se comunicar com os homens por meio de sonhos. A Sagrada Escritura traz vários exemplos disso, como aquele misterioso sonho no qual o faraó egípcio viu sete vacas gordas devoradas por sete vacas magras. Ou então - e quão mais sublime! - o que teve São José a respeito da maternidade de Nossa Senhora. Já bem mais recentes são os famosos sonhos de São João Bosco.
Menos comentado, mas também de grande importância em vista da realização das suas previsões, é o sonho profético do rei de Babilônia, Nabucodonosor II
Daniel revela ao rei o conteúdo do sonho
No segundo ano de seu reinado - narra o Livro de Daniel - esse soberano teve, durante a noite, um sonho que o deixou muito perturbado. Mandou então chamar "os escribas, os mágicos, os feiticeiros e os caldeus" de Babilônia e lhes ordenou: "Revelai-me o conteúdo e o significado do sonho que tive". Como eles se declararam incapazes de lhe narrar o conteúdo do sonho, o monarca, encolerizado, exarou na hora sentença de morte contra todos os sábios do reino.
A sentença atingia também o Profeta Daniel e seus campanheiros Ananias, Misael e Azarias, pois os quatro estavam incluídos na categoria dos sábios. Recorreram ao auxílio divino e Deus desvendou a Daniel o conteúdo do sonho, dando-lhe igualmente a verdadeira interpretação. Depois de cantar um expressivo hino de louvor ao Senhor, o jovem Profeta apresentou-se ao soberano, pronto a lhe dar a descrição e o significado do sonho.
Vejamos o que diz o Livro de Daniel, em seu segundo capítulo:
"O rei dirigiu a palavra a Daniel (que tinha o cognome de Baltazar): És realmente capaz de desvendar-me o sonho que tive e fornecer-me a interpretação? "Respondeu Daniel: O mistério cuja revelação o rei pede, nem os sábios, nem os mágicos, nem os feiticeiros, nem os astrólogos são capazes de revelar. Mas no céu existe um Deus que desvenda os mistérios, o qual quis revelar ao rei Nabucodonosor o que deve suceder no decorrer dos tempos. Eis, portanto, teu sonho e as visões que se apresentaram a teu espírito quando estavas em teu leito. (...) Senhor: contemplavas, e eis que uma grande, uma enorme estátua erguia-se diante de ti; era de um magnífico esplendor, mas de aspecto aterrador. Sua cabeça era de fino ouro, seu peito e braços de prata, seu ventre e quadris de bronze, suas pernas de ferro, seus pés metade de ferro e metade de barro. Contemplavas (essa estátua) quando uma pedra se descolou da montanha, sem intervenção de mão alguma, veio bater nos pés, que eram de ferro e barro, e os triturou. Então o ferro, o barro, o bronze, a prata e o ouro foram com a mesma pancada reduzidos a migalhas, e, como a palha que voa da eira durante o verão, foram levados pelo vento sem deixar traço algum, enquanto que a pedra que havia batido na estátua tornou-se uma alta montanha, ocupando toda a região" (Dn 2, 26-28.31- 35).
O que era humanamente impossível, estava feito: o conteúdo do sonho foi descrito ao rei em todos os seus pormenores, e com exatidão. Faltava então dizer o seu significado, coisa realmente difícil, não, porém, para quem havia recebido uma comunicação direta de Deus... Por isso, Daniel não teve a menor hesitação em passar para a segunda parte.
Vejamos como a interpretação dada por ele ao rei é confirmada pelos acontecimentos narrados nas páginas da História.
A cabeça de ouro
"Eis o sonho. Agora vamos dar, ó rei, a interpretação. Senhor, tu és o rei dos reis, a quem o Deus dos céus deu realeza, poder, força e glória; a quem ele deu o domínio, onde quer que habitem, sobre os homens, os animais terrestres e os pássaros do céu: tu és a cabeça de ouro" (Dn 2, 36-38).
Com Nabucodonosor, que reinou entre 605 e 562 a.C., surgiu o chamado período neobabilônico, um dos mais brilhantes da história de Babilônia. Já no primeiro ano de seu reinado conquistou o que restava do Império Assírio, na batalha de Karkemish, quando derrotou o exército do poderoso faraó egípcio Necao II, que viera em socorro de seus aliados.
Babilônia cresceu, foi fortificada com novas muralhas e se converteu na principal metrópole da época. Suas imensas riquezas e seu grande esplendor cultural fizeram dela a rainha da Mesopotâmia. Seus famosos jardins suspensos estavam incluídos entre as sete maravilhas do mundo. O Império Babilônico estendeuse até a Palestina e a Síria. Foi Nabucodonosor quem tomou Jerusalém, destruindo o Templo, no ano 587, e levou cativos cerca de setenta mil judeus.
Os reinos de prata e de bronze
"Depois de ti surgirá um outro reino, inferior ao teu; depois um terceiro reino, o de bronze, que dominará toda a terra" (Dn 2, 39).
Foi o que realmente aconteceu.
Nabucodonosor morreu em 562 a.C. Em 539, Ciro II, soberano da Pérsia, venceu o rei Nabonido em batalha campal e avançou até chegar às portas de Babilônia. Após vários dias, os persas conquistaram a cidade, matando Baltazar, filho de Nabonido, que governava na ausência do pai. Era o fim do Império Babilônico e o início do grande Império Persa, do qual Babilônia passou a ser uma simples província.
No ano seguinte, Ciro devolveu a liberdade aos judeus, que, voltando a Jerusalém, puderam reconstruir o Templo. Uma das características dos persas era a tolerância e respeito em relação aos habitantes dos reinos conquistados. Cada província (satrapia) era governada por um sátrapa que muitas vezes nem era necessariamente persa. Destacaram-se eles também pela arquitetura: os grandes edifícios da cidade de Persépolis - fundada por Dario I - estão entre os mais notáveis da antiguidade asiática.
Esse segundo reino de que falou Daniel, o de prata, durou pouco mais de 200 anos.
O terceiro, o de bronze, é o de Alexandre III o Grande, rei da Macedônia. Após assegurar sua soberania sobre a Grécia, esse jovem general de 22 anos partiu para a conquista da Ásia. Com as sucessivas vitórias contra os persas nas batalhas de Granico (334), Issos (333) e Arbelas (331), Alexandre destronou o último rei persa, Dario III, queimou Persépolis e apoderou-se de Babilônia. Nesse período, submeteu também parte da Síria, conquistou o Egito (332), onde fez-se proclamar faraó e fundou a cidade de Alexandria. Continuando suas conquistas, chegou até o norte da Índia, mas, devido ao estado de exaustão de suas tropas, teve de retornar à cidade de Babilônia. Ali organizou seu império. Nessa cidade passou também seus derradeiros dias. Morreu em 323, antes de completar 33 anos.
Nenhum potentado, até então, tinha conquistado tamanhas vastidões territoriais. Tal foi a fama de Alexandre que, dois séculos e meio mais tarde, o general romano Júlio César - já com mais de quarenta anos - exclamou diante de uma estátua erigida em honra do grande conquistador: "Este, com vinte e sete anos já dominava o mundo... e eu ainda tenho que começar!"
Seu império, porém, foi o mais efêmero: não durou sequer uma década Após sua morte, ele foi dividido entre seus generais, formando vários reinos independentes.
Forte como o ferro, débil como o barro
"O quarto reino será forte como o ferro: do mesmo modo que o ferro esmaga e tritura tudo, da mesma maneira ele esmagará e pulverizará todos os outros" (Dn 2, 40).
Este quarto reino é, sem dúvida, o Império Romano, que a partir de meados do III século a.C. começou uma etapa de expansão e conquistas - de modo férreo - para fora dos limites da Península Itálica: Sicília em 241 a.C., Hispânia a partir de 218, Cartago em 201, Macedônia desde o ano 197, Ilíria em 165, Grécia em 146, Gália desde 125, Síria em 63, Germânia Inferior depois de 53, Egito no ano 30, Britânia a partir do ano 43 da Era Cristã, Dácia e parte da Arábia no ano 106, Armênia em 114... A essa altura, os romanos eram donos absolutos do Mediterrâneo, ao qual haviam batizado de "Mare Nostrum" - "o nosso mar".
Sua "fase de ferro", a mais longa de todas, foi sucedida pela "fase de ferro misturado com barro", como previra Daniel.
"Os pés e os dedos, parte de terra argilosa de modelar, parte de ferro, indicam que esse reino será dividido: haverá nele algo da solidez do ferro, já que viste ferro misturado ao barro. Mas os dedos, metade de ferro e metade de barro, mostram que esse reino será em parte sólido e em parte frágil" (Dn 2, 41-42).
Na época de Trajano (98-117 d.C.) o Império Romano atingiu sua extensão máxima: nove milhões de kilômetros quadrados, com quase cem milhões de habitantes, uma população colossal para aqueles tempos. Mas foi também dentro desse Império que surgiram as grandes perseguições contra os cristãos, as quais se prolongaram por bem mais de dois séculos e ceifaram a vida de milhões de pessoas, conforme calculam muitos historiadores.
No auge da riqueza e do poder, a decadência moral se tornou tão grande que, já na época de César Augusto, o historiador romano Tito Lívio afirmava: "Chegamos a tal ponto que nem conseguimos suportar nossos próprios vícios e nem os remédios que poderiam curá-los".
Com a morte de Teodósio o Grande, em 395, o Império foi dividido para sempre - tal como tinha predito o profeta - entre seus dois filhos: Honório ficou com a parte ocidental, que sucumbiria definitivamente em 476 ante os bárbaros germânicos; e Arcádio com a parte oriental, que duraria até ser conquistada pelos turcos em 1453...
A confirmação do sonho de Nabucodonosor na História
1) À cabeça de ouro corresponde o Império Babilônico;
2) ao peito e braços de prata o Império Persa;
3) ao ventre e quadris de bronze o Império Macedônio;
4) às pernas de ferro e aos pés metade de ferro e metade de barro, o Império Romano.
O reino que subsistirá eternamente
Cada um desses quatro reinos - cinco, se se quiser, já que o último se subdividiu em duas fases bem distintas - surgiu na hora estipulada pelo Senhor do Universo, teve um período fugidio de esplendor, extinguiu-se de maneira inglória e jaz agora nos arquivos da História. Resta analisar a parte final do sonho, relativa ao "reino que jamais será destruído".
"No tempo desses reis, o Deus dos céus suscitará um reino que jamais será destruído e cuja soberania jamais passará a outro povo: destruirá e aniquilará todos os outros, enquanto que ele subsistirá eternamente" (Dn 2, 44).
Que reino é esse? Com razão, a tradição teológica ensina tratar-se do de Nosso Senhor Jesus Cristo. Um reino de justiça e eqüidade, mas também de paz e misericórdia. Um reino que levou o Rei-Salmista a exclamar, quase dez séculos antes da vinda do Messias: "Porque o Senhor é o Altíssimo, o temível, o grande Rei do universo. (...) Porque Deus é o rei do universo; entoai-lhe, pois, um hino! Deus reina sobre as nações, Deus está em seu trono sagrado" (Sl 46, 3.8-9).
É a Santa Igreja Católica Apostólica Romana, a qual, já mesmo durante as perseguições movidas pelos imperadores e seus maus conselheiros, começou a espalhar-se irreversivelmente pelo mundo inteiro, levando a salvação às almas oprimidas pelo paganismo.
Esse reino "subsistirá eternamente", predisse Daniel a Nabucodonosor. O próprio Homem-Deus chancelou essa profecia, dizendo ao primeiro Papa: "Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela" (Mt 16, 18). (Revista Arautos do Evangelho, Março/2006, n. 51, p. 36 à 39)