Outro dia, sentado num sofá da sala de meu apartamento, olhei maquinalmente para a sacada e deparei com um objeto ali. Na certa caíra de algum andar superior. Causou-me desagrado a princípio. Que falta de atenção de quem o deixara cair! Voltei à minha leitura.
Contudo, ao levantar de novo a vista, fixei no intruso a atenção. Era uma bonequinha que representava uma princesa. Ela estava um tanto envelhecida e gasta, mas ainda conservava sua singela beleza. A posição em que ficara era graciosa. E passou-me pela imaginação a figura da menina que devia ser a dona. Que idade teria? Talvez tenha passado despercebida, aos adultos, a minúscula tragédia da perda da boneca. Mas a criança, como teria reagido?
Ah! o universo infantil!…. Meu espírito passou a divagar sobre ele.
Rostos alegres ao encontrar árvores de sonhos, brilhantes de luzes, nas noites de Natal. Mundos fabulosos habitados por fadas, reis e rainhas, onde tudo leva ao encantador, ao belo e ao bom.
Vieram-me então recordações da infância. Lembrei-me de quando há perto de 40 anos, fui a uma matinée – é assim que se dizia na época – assistir a uma superprodução de Walt Disney: “A Bela Adormecida”. No desenho animado, apresentava-se um magnífico palácio real, havia cortesões e cortesãs afáveis, um rei e uma rainha bondosos, três simpáticas fadinhas, e,especialmente a encantadora e delicada princesa, o valente e cavalheiresco príncipe. Isto de um lado. Do outro, a bruxa de olhos avermelhados e chispeantes, maquinando maldades; o dragão, como a própria personificação do mal, animais malvados, um sombrio castelo à beira de abismos,o horizonte tenebroso. A luta final entre o príncipe e o dragão era, no seu gênero, obra-prima. Embora fosse de lamentar o tom inteiramente laico da história, não há dúvida de que tinha um fundo religioso: como não identificar o dragão como o demônio?
Pensava eu nisto quando, por uma correlação de ideias, veio-me à lembrança uma notícia publicada nos jornais, na época: o lançamento de um filme para o público infantil. Fadas? Castelos encantados? Nada disso! Trata-se de uma produção da Pixar (da Disney, portanto), com o título: “Monstros S. A.”.A história desse desenho animado desenrola-se numa fábrica chamada monstros S.A., indústria responsável pela produção de energia da cidade de Monstrópolis. Para produzi-la, necessita de gritos de crianças. No intento de conseguir essa “matéria-prima”, os monstros saem pelo mundo, entrando pelos armários de todas as casas e amedrontando os pequeninos.
O filme é até engraçado, e os monstros são os mais “simpáticos” possíveis: Sulley, um gigante peludo, de cor esverdeada e com manchas roxas pelo corpo. Mostra-se camarada, serviçal e bondoso. Tem um amigo que se chama Mike Wazowski, uma esfera verde com um só olho gigante. Precisam, juntos, mandar de volta ao mundo a pequenina Bu, uma cândida menina, que por distração foi parar em Monstrópolis. Há outros personagens, monstros evidentemente, que pululam na trama toda, todos com um aspecto amável, cortez e até aprazível…
Não é preciso ser nenhum gênio em psicologia para concluir que, assim como a criança que assistia ao filme “A bela adormecida” ficava com a mente povoada de princesas e príncipes, as que assistem a “Monstros S.A.” entulham a imaginação com essas figuras.
Isto revive em meu espírito uma questão que nos últimos anos vem me intrigando.
Muitos estudos de psicologia mostram a tendência infantil em mitificar, no rumo do maravilhoso, aquilo com o que ela entra em contato. A criança é naturalmente indicada para o belo, associando-o com o bom e o verdadeiro. Nós, que somos católicos, sabemos que isto deriva da inocência. É por essa associação de conceitos (ainda não explícitos, é claro, mas nem por isso menos vincados nas mentes infantis) que as mães, quando querem corrigir os pequeninos, muitas vezes não dizem: “Não faça isto, porque é errado!” Dizem com outras palavras: “Não faça isto porque é feio!…” E a criança compreende.
Isto é assim há séculos. Quem já teve oportunidade de percorrer livros muito antigos feitos para crianças, do século XIX e até anteriores, encontrará invariavelmente em oposição ao horrendo. As histórias dos irmãos Grimn e de outros famosos autores vão todas no mesmo rumo.
Ora, de uns tempos para cá isto mudou bastante. Monstros simpáticos ou bruxos bonzinhos começaram a pulular nas tiras, nos desenhos animados, nas telas grandes e pequenas, e entre as bonecas.
Não é meu desejo aqui entrar no julgamento da questão, muito complexa. Mas não posso deixar de lamentar que uma tão grande rotação na história da humanidade não esteja provocando grandes debates, estudos aprofundados, pronunciamentos de psicólogos, pedagogos e outros especialistas.
Qual o significado dessa mudança? Produzirão consequências nas almas infantis? Quais suas influências na formação da mentalidade? Haverá alguma implicação em matéria religiosa? Para melhor ou para pior?
Eis algumas das muitas perguntas que eu gostaria de ver debatidas.
(Revista Arautos do Evangelho, Março/2002, n. 3, p. 26 à 28)