Os escritos sagrados contidos na Bíblia, sobretudo os que compõem o Novo Testamento, raramente possuem uma linguagem rebuscada ou de difícil compreensão. Entretanto, costumam ser muito sintéticos e parcos em detalhes, deixando o leitor curioso sobre os pormenores dos fatos ali narrados.
Além do mais, o Evangelho mantém na escuridão e no silêncio muitas passagens da vida do Homem-Deus, obrigando-nos a reconstruí-las com base em dados históricos, antigas tradições, revelações privadas ou deduções lógicas baseadas no que já conhecemos.
Assim acontece com tudo o que se refere à infância do Menino Jesus e, mais especialmente, com a fuga ao Egito, episódio sobre o qual tentaremos deitar alguma luz nestas linhas, começando por fazer um breve apanhado dos fatos que a precederam.
Herodes se tomou de insegurança e receio
Oito dias depois de ter nascido o Divino Infante, conforme preceituava a Lei de Moisés, deu-se a cerimônia da circuncisão, estando ainda a Sagrada Família na Gruta de Belém.
Algum tempo mais tarde, transcorrido o período da purificação que toda mãe era obrigada a observar, a Sagrada Família partiu para Jerusalém. Ali Jesus foi apresentado por seus pais no Templo, dando ensejo à profecia de Simeão: “Este Menino está destinado a ser uma causa de queda e de soerguimento para muitos homens em Israel, e a
ser um sinal que provocará contradições, a fim de serem revelados os pensamentos de muitos corações” (Lc 2, 34-35).
Logo que o fato se tornou conhecido, começou a espalhar-se rapidamente entre o povo a notícia de que o Messias há tanto tempo esperado já estava entre eles. E o aparecimento dos Magos do Oriente buscando o Rei que acabava de nascer, a fim de adorá-Lo (cf. Mt 2, 2), não fez senão confirmar a alvissareira notícia…
Todo esse burburinho deixou Herodes agitado. Quis, então, conhecer o tempo e o local em que, segundo os profetas, nasceria o Rei dos judeus, e vendo que todas as averiguações pareciam coadunar-se com o que se passava naqueles dias, o perverso rei tomou-se de insegurança e receio. Temendo perder o trono, ordenou que os meninos menores de dois anos fossem assassinados em toda a Judeia.
Solicitude de Maria e José à voz do Anjo
Nessa altura dos acontecimentos a Sagrada Família já havia partido de Jerusalém, pois “após terem observado tudo segundo a Lei do Senhor, voltaram para a Galileia” (Lc 2, 39). Foi, portanto, na Santa Casa de Nazaré, hoje venerada em Loreto, que “um Anjo do Senhor apareceu em sonhos a José e disse: ‘Levanta-te, toma o Menino e sua Mãe e foge para o Egito; fica lá até que eu te avise, porque Herodes vai procurar o Menino para O matar’” (Mt 2, 13).
Fiel ao aviso recebido, o Santo Patriarca ergue-se sem demora e parte com Maria e o Divino Infante para a longínqua região em que haveriam de ficar até a morte de Herodes, a fim de cumprir o que fora predito pelo profeta: “Do Egito, chamei o meu Filho” (Os 11, 1).
Pela descrição feita no Evangelho, fica claro não ter havido resistência à ordem divina por parte dos santos esposos. Pelo contrário, levantaram-se “durante a noite” (Mt 2, 14) para atender com solicitude ao chamado do Anjo, sem queixarem-se daquele contratempo.
Desta forma, segundo comenta São João Crisóstomo, serviam-nos de exemplo para que, “ao começarmos alguma obra espiritual e sentindo-nos afligidos pela tribulação, não nos perturbemos, nem nos deixemos levar pelo abatimento, mas suportemos com valor e heroísmo todas as contradições”.2
Longa e penosíssima viagem
O Egito era uma região longínqua sobre a qual Herodes não tinha nenhum poder. Lá o Menino-Deus estaria salvo de seus perseguidores.
Acredita-se que esta jornada se realizou em princípios de fevereiro, época em que o penetrante frio do inverno ainda se fazia sentir,3 e estima-se que a Sagrada Família tenha demorado cerca de dois meses em seguir o percurso a pé, acompanhados apenas por um burrico que transportava a bagagem e os mantimentos.
Para se precaver contra a ameaça de Herodes, foi preciso escolher o caminho menos movimentado e, sob esse aspecto, mais seguro. Mas isso os obrigou a percorrer mais de cento e trinta léguas expostos à fome, à sede e à ameaça dos salteadores.
Em seu livro sobre São José, Mons. João Scognamiglio Clá Dias, EP, faz notar o quanto “a viagem foi penosíssima, e certos demônios aproveitaram para tornar os diversos contratempos ainda mais árduos… Surgiram tantas dificuldades e problemas no trajeto que São José pensou em mudar de destino; só não o fez por causa do mandato celeste e das profecias que anunciavam a passagem do Redentor pelo Egito”.4
Durante o acidentado percurso, o Santo Patriarca fazia todo o possível para aliviar os sofrimentos de Jesus e sua Mãe Santíssima. Agia, segundo um dos seus biógrafos, como um verdadeiro Arcanjo: “Não teve certamente o Anjo Rafael tanto cuidado em defender a Tobias da ferocidade do peixe que o queria devorar nas ribeiras do Tigres como São José teve em guardar o Menino dos seus inimigos nesta fuga para o Egito”.5
Tendo sido obrigado a escapar como um foragido da rejeição e ingratidão dos homens, o Deus Encarnado via-Se submetido, já na sua mais tenra idade, a passar pelas inúmeras dificuldades de uma longa e penosíssima viagem, durante a qual não tinha mais abrigo e comodidade do que os braços da Virgem e de seu santíssimo esposo.6
Sete anos de exílio no Egito
Completados os dois longos meses de trajeto, a Sagrada Família chegou, por fim, às terras do Egito.
Conforme narra uma piedosa tradição, à medida em que iam entrando nos povoados daquele país idólatra, as imagens dos falsos deuses, verdadeiras representações do demônio, caíam por terra e desfaziam-se em pó. Assim se cumpria a finalidade para a qual, segundo Orígenes, foram enviados ao Egito pelo Pai Eterno: “Vai, lhe diz o Anjo, com o Salvador à terra do Egito, seminário de idolatrias, para que seus ídolos sejam destruídos, os demônios conturbados e postos em fuga, e em lugar da multidão dos templos de suas abominações se levantem multidões de Igrejas, comutando-se os vícios em santidade e os erros em verdadeira religião”.7
Não se conhece com certeza o lugar em que eles ficaram. Segundo certa tradição, a Sagrada Família teria se estabelecido numa casinha simples, no local hoje ocupado por uma igreja copta ortodoxa do Cairo. Mais provável é, entretanto, que tenham ido morar nas proximidades de Alexandria, onde havia florescentes comunidades judaicas.8
Durante o tempo que lá ficaram, quanto desejo não teriam Jesus, Maria e José de sair daquela nação estrangeira e idólatra! Mas, para que se cumprisse a escritura “Do Egito, chamei o meu Filho” (Os 11, 1), quis a Divina Providência submeter aqueles a quem mais amava a esta terrível provação, por longos meses.
Acredita-se que nos três primeiros dias não tinham nem como alimentar-se a não ser através das esmolas que, com muita dificuldade, conseguia o pai nutrício do Redentor. Somente depois de certo tempo São José começou a granjear-lhes o sustento com seu trabalho.
No início, viviam numa tal penúria que o leito em que dormiam não era mais do que a terra dura. Até a Rainha dos Anjos procurava auxiliar seu esposo com o labor de suas preciosas mãos, realizando trabalhos de tecelagem e costura.
“Será chamado nazareno”
Havendo passado nessa distante região entre um e sete anos – as opiniões divergem entre os autores9 – eis que “o Anjo do Senhor apareceu em sonhos a José, no Egito, e disse: ‘Levanta-te, toma o Menino e sua Mãe e retorna à terra de Israel, porque morreram os que atentavam contra a vida do Menino’” (Mt 2, 19-20). Imediatamente, com o espírito de prontidão e flexibilidade que lhe era característico, “levantou-se, tomou o Menino e sua Mãe e foi para a terra de Israel” (Mt 2, 21).
Antes de partir, o Santo Patriarca preparou o jumentinho que serviria de condução para sua Esposa e seu Filho. Sem dúvida deixariam muitas saudades nas pessoas da região que, influenciadas pelas virtudes que emanavam da Sagrada Família, acabaram abrindo suas almas para aderir à verdadeira Religião.
Contudo, o tempo designado pela Providência já se havia completado. Novos sofrimentos estavam reservados para a penosa viagem de volta que teriam de realizar. Quantas vezes não terá o Menino Jesus padecido fome e sede em meio aos áridos desertos…
Ao chegar na Judeia, São José tomou conhecimento de que Arquelau, filho de Herodes, havia assumido o trono em lugar de seu pai. Por isso, em vez de dirigir-se para Belém, como teria sido sua intenção num primeiro momento, rumou para Galileia, onde estariam mais a salvo de uma perseguição.
A mandato do Anjo, instalaram-se novamente em Nazaré, cidade situada na jurisdição do tetrarca Herodes Antipas, muito menos cruel e despótico que seu irmão. Deste modo, mais uma vez se cumpriria o que foi dito pelos profetas: “Será chamado Nazareno” (Mt 2, 23).
Ali se estabeleceram, levando uma vida simples e silenciosa até o momento em que o Filho de Deus deveria manifestar-Se ao mundo. (Revista Arautos do Evangelho, Janeiro/2020, n. 217, p. 20 a 22).
1 Cf. CLÁ DIAS, EP, João Scognamiglio. São José: quem o conhece?… São Paulo: Lumen Sapientiæ, 2017, p.244-249.
2 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, apud SÃO TOMÁS DE AQUINO. Catena Aurea. In Matthæum, c.II, v.13-15.
3 Cf. LAMY, apud CASTRO, João Batista de. Vida do Glorioso Patriarca São José. Lisboa: Santo Ofício, 1761, p.165.
4 CLÁ DIAS, op. cit., p.281.
5 CASTRO, op. cit., p.166-167.
6 Cf. Idem, p.168.
7 ORÍGENES, apud CASTRO, op. cit., p.169-170.
8 Cf. TUYA, OP, Manuel de. Biblia Comentada. Evangelios. Madrid: BAC, 1964, v.V, p.42.
9 O exegeta jesuíta Andrés Fernádez Truyols argumenta a favor de que “o desterro no Egito não durou mais de um ano e talvez apenas alguns meses” (FERNÁNDEZ
TRUYOLS, SJ, Andrés. Vida de Nuestro Senhor Jesucristo. 2.ed. Madrid: BAC, 1954, p.73). Mons. João, porém, defende com base em Suárez e outros autores que a
Sagrada Família permaneceu ali por sete anos (cf. CLÁ DIAS, op. cit., p.294).
Reparando as infidelidades do povo eleito
Havia uma razão de sabedoria divina nas duras vicissitudes dessa viagem. Como aponta Dr. Plinio, “na fuga para o Egito era a Santa Igreja que, sozinha, peregrinava pelo
deserto”.
Estando ali as primícias do Cristianismo, Deus desejava que a Sagrada Família reparasse todas as infidelidades cometidas pelos hebreus ao saírem daquela nação. Tais pecados, de fato, foram os que mais O ofenderam na História da salvação anterior ao deicídio, pois a luz primordial dos filhos de Abraão, ou seja, o aspecto do Criador que eram mais chamados a representar, consistia na fé no impossível e no irrealizável, em acreditar quando tudo parecesse perdido. Os feitos de Abraão (cf. Gn 22, 10-12), Jacó (cf. Gn 27, 22-23), Ester (cf. Est 14, 1-19) ou dos três jovens na fornalha ardente (cf. Dn 3, 14-93), entre tantos outros, mostram bem que a virtude dos grandes Santos deste povo se alçava ao angélico quando eles se encontravam num quadro sem solução humana.
No caminho para a Terra Prometida o povo eleito pecou exatamente contra esse chamado, desgostando muito o Senhor. Não obstante, movido pelo entranhado amor por sua herança, quis Ele operar a reparação através de suas três criaturas mais diletas. Assim, limpo dessa culpa diante da justiça divina, Israel poderia receber dignamente o Messias e a Redenção.
Com esse objetivo, ao longo de todo o percurso a Sagrada Família parou nos locais mais simbólicos da revolta do povo contra Deus, fazendo atos de desagravo. Estiveram, por exemplo, junto à pedra de Meriba, onde houve a rebelião pela escassez de água (cf. Ex 17, 1-7; Nm 20, 1-13). Ali rezaram, muito recolhidos, com o intuito de reparar aquele pecado contra a fé. E Nossa Senhora, Mãe de Misericórdia, pediu especialmente por Moisés, para que, por ocasião de sua morte, tivesse sua falta apagada, e esta não lhe fosse imputada no momento de entrar no Céu. (Por Mons. João Scognamiglio Clá Dias, EP)
Extraído, com pequenas adaptações, de: São José: quem o conhece?… São Paulo: Lumen Sapientiæ, 2017, p.281-283