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Espiritualidade


Dona Lucilia Corrêa de Oliveira: Suave crepúsculo de uma longa e bela vida
 
AUTOR: MONS. JOÃO SCOGNAMIGLIO CLÁ DIAS, EP
 
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Dona Lucilia lançou sobre seu extenso passado um olhar feito de doçura, calma e bondade. Viveu, sofreu e lutou contra as adversidades sem conservar ressentimentos, nem acidez. Sua morte marcou o fim e o ápice de uma serena ascensão em linha reta.
Dona Lucilia Corrêa de Oliveira
na década de 1960

A mais dura prova da existência de Dona Lucilia, a Providência a reservara para seus derradeiros meses de vida. A ancianidade acrisolara sua caridade, e a resignação em sua alma atingira sublime clímax. Encontrava-se ela a cinco meses de seu juízo particular.

Nesta altura, Dona Lucilia teve clara noção, por sua aguda intuição materna, de que algo de grave acontecia a Dr. Plinio, o “filho muito querido de seu coração”, apesar de seus familiares procurarem ocultar dela a terrível crise de diabetes que o acometeu em fins de 1967.

Forçado a passar longo período convalescendo entre as paredes de seu apartamento, logo Dr. Plinio começou a receber inusitado número de visitas de discípulos e amigos. Assim, o abalo físico sofrido por ele deu azo a que Dona Lucilia fosse conhecida mais de perto e, por que não dizê-lo, admirada.

Trato ameno e todo feito de bondade

Quem teve a felicidade de frequentar seu apartamento, convivendo com Dona Lucilia nos últimos meses de sua existência terrena, bem pôde avaliar o alto grau de consideração, gentileza e estima inerentes a seu nobre trato, mesmo em suas mais simples expressões. De índole respeitosa e afetiva, era ela mestra na difícil arte de se dirigir aos outros com afável dignidade, de modo a deixá-los sempre à vontade.

Por um sobrenatural senso de compaixão, causava-lhe profundo sofrimento ver alguém entristecido ou magoado, ainda que se tratasse de um desconhecido. E era admirável o esmero com que logo procurava aplicar o lenitivo da palavra justa, da fórmula adequada, do bom conselho para a difícil situação, do afago para a dor, da esmola para a necessidade.

Para Dona Lucilia, a felicidade do próximo era a dela… Sua alma se movia pelo desejo de causar contentamento a cada um, e daí seu grande pesar quando não podia fazê-lo. Era o afeto de um coração total e essencialmente católico. Sua alegria consistia em querer bem aos outros por amor de Deus, e ser por eles querida. Porém, quando sua benquerença não era correspondida, jamais cedia ao menor sentimento de rancor, pois não visava qualquer benefício pessoal ou vantagem própria nesse relacionamento.

Vista através de um “brise-bise” a desfiar o Rosário

Apesar da avançada idade, Dona Lucilia nunca abandonou o hábito de rezar o Rosário todas as tardes. Realizava esse importante ato sentada em sua cadeira de rodas, na sala de jantar, enquanto contemplava a copa das árvores da Praça Buenos Aires e se beneficiava dos últimos raios de sol que penetravam pela janela. Eram lindos crepúsculos, como dificilmente ocorrem na cinzenta megalópole que é a São Paulo de hoje. Aqueles entardeceres se harmonizavam admiravelmente com a alma tão brasileira de Dona Lucilia.

Quem teve a ventura de observá-la através das frestas do brise-bise existente na porta da sala contígua,1 não podia deixar de nela reconhecer um verdadeiro monumento! Não era possível separar a nobreza da religiosidade naquela senhora de noventa e um anos. Quando se fala de suas virtudes, fala-se necessariamente de nobreza, e vice-versa. Aliás, havia nela algo a mais do que nobreza: Dona Lucilia possuía uma alma augusta.

Ela se punha numa atitude tão ereta, tão composta, e rezava com tanta piedade e devoção que a cena era de comover.

Apesar de indisposta, um trato impregnado de bondade

Até onde lhe chegaram as forças, Dona Lucilia exerceu na perfeição as funções sociais de dona de casa. Pudemos observar isso de modo especial quando ela fazia suas orações vespertinas.

Ao notar a presença de algum amigo de Dr. Plinio no apartamento, preocupava-se em saber de sua empregada quem estaria esperando seu filho.

— Mirene! Quem está aí? – perguntava, já inteiramente disposta a receber o inesperado visitante.

Um belo fato, relacionado com esse seu exímio modo de ser, foi narrado por certo jovem, e é prova da elevada virtude dessa insigne dama paulista:

“Dona Lucilia me fez entrar na sala de jantar, assim que terminou a piedosa recitação do Rosário, e depois de dar-me as explicações costumeiras do porquê da demora de Dr. Plinio em me atender, fez-me sentar para tomar o chá da tarde em sua companhia”.

O Autor na década de 1960

Quase três horas de conversa se passaram como se fossem minutos. Três décadas depois, esse jovem ainda se lembrava com emoção da extrema gentileza e do afeto envolvente de Dona Lucilia para com ele na ocasião.

Contava ele:

“O tempo inteiro ela procurou me entreter, discorrendo sobre os temas que mais me agradavam, sempre num clima de serenidade e benquerença. Recordo-me ter saído tão alegre e feliz daquela conversa que me parecia ter estado mais com um Anjo do que propriamente com uma criatura humana. Recebi uma tal comunicação de bem-estar, que cheguei a pensar ser Dona Lucilia uma senhora que nunca sofrera o menor incômodo na vida, pois em nenhum momento deixou transparecer uma só fímbria de enfado ou de cansaço, disposta a fazer bem à minha alma, até os limites permitidos pelo relógio”.

E continuava sua narração, descrevendo os jogos de fisionomia de Dona Lucilia, os pequenos e elegantes gestos, a voz, o olhar, as mãos.

Naquele mesmo dia, após essa conversa, Dr. Plinio o chamou a seu escritório a fim de providenciar uma ligação telefônica para o médico de Dona Lucilia. Eram vinte e uma horas e trinta minutos de sábado.

O jovem ficou abismado ao ouvir Dr. Plinio dizer ao médico que Dona Lucilia passara o dia todo muito indisposta, e com tal mal-estar que isto certamente a impediria de conciliar o sono. Após relatar ao clínico todos os sintomas, em pormenores, Dr. Plinio pediu a seu auxiliar que anotasse o nome da injeção receitada. Tendo este um certo conhecimento do remédio em questão, deu-se conta de qual era o real estado físico de Dona Lucilia, que com tanta normalidade o entretivera por tão longo tempo. Recorda ele: “Em Dona Lucilia a bondade era uma segunda natureza. Tornava-se ainda mais patente para mim, por este fato, que ela passara a vida fazendo bem aos outros – ‘pertransivit benefaciendo’ (At 10, 38)”.

Não havendo quem fosse comprar a injeção, o mesmo jovem se ofereceu para fazê-lo. Depois, devido à ausência do enfermeiro de plantão, foi ele próprio convidado por Dr. Plinio a aplicá-la em Dona Lucilia, uma vez que tinha prática nisso. Ocorreu então outro episódio que marcou a história desse feliz jovem. Ao ser introduzido no quarto de Dona Lucilia, tomou-se de encanto e de emoção ao vê-la tão dignamente recostada no leito. Narra ele:

“— Dona Lucilia, estou aqui para lhe aplicar uma injeção receitada por seu médico – disse ao cumprimentá-la.

“Era extraordinária a instintiva preocupação de Dona Lucilia com os outros, ainda que estivesse se sentindo indisposta, como naquela circunstância. Além do momentâneo distúrbio pelo qual passava, ela estava a bem poucos meses da morte e, não obstante, sua atenção se voltava para os demais.

“Naquele ambiente de compostura e recato, à luz de um abat-jour, sua primeira atitude foi olhar-me atentamente e dizer:

“— Ora, mas justamente numa noite de sábado, eu estou dando esta amolação ao senhor! Perdão por atrapalhar seu programa.

“Sem demonstrar o menor desagrado ao lhe ser aplicada a injeção, que provocou certa dor, Dona Lucilia disse logo a seguir:

“— Entristeceu-me muito ter causado esse transtorno ao senhor.

“— Em nada, Dona Lucilia. Pelo contrário, eu é que me entristeço por vê-la sofrer com essa injeção.

“— Ora essa! Então eu lhe agradeço muito – concluiu Dona Lucilia, com sua insuperável doçura de trato”.

Esse episódio mais uma vez traz à lembrança seu límpido olhar. E também seu sorriso…

O último dia de vida, passado na calma e na tranquilidade

Apesar da avançada idade, ela dava a impressão, pelo todo de sua fisionomia, de que poderia ainda viver por muito tempo, tanto mais sendo frequente em sua família a longevidade. Ninguém imaginava que, dentro em pouco, ela partiria deste mundo rumo à eternidade.

Cerca de um mês antes de sua morte, constatou-se o súbito agravamento de sua saúde. Tinha chegado a seus últimos dias. Conta Dr. Plinio:

“Eu me lembro que no dia 20 de abril, véspera da morte de mamãe, vi que ela estava muito pior do coração, e passei, literalmente, o dia inteiro no quarto dela. Se tinha de sair, voltava logo a seguir. Ela estava tão opressa pela falta de respiração que não podia conversar, e sentia a agonia, o mal-estar que a falta de respiração naturalmente traz consigo. Mas permanecia calma, tranquila, serena”.

Pedidos de um filho estremecido

Continua Dr. Plinio:

“Pouco antes eu pedira a Nossa Senhora que tivesse a bondade maternal de fazer sobrevir o falecimento de mamãe num momento que fosse menos doloroso para ela e para mim. Parecia-me um pedido razoável, que Nossa Senhora tomaria a bem.

“Perguntei-me quais seriam as condições mais favoráveis para isso. Evidentemente, meu desejo era de que sua morte fosse tranquila, serena, com aquela grandeza que no meio de tanta bondade não a abandonou em nenhum momento; e com todos os sinais de que ela morria inteiramente unida ao Sagrado Coração de Jesus, ao Coração Imaculado de Maria e à Santa Igreja Católica.

“Pedi também que durante a noite eu não fosse sobressaltado com a notícia de seu falecimento, mas que o desenlace ocorresse durante o dia, e assim eu não tivesse o terrível choque de ser acordado em plena madrugada com alguém a me dizer:

Dona Lucilia Corrêa de Oliveira fotografada
por Mons. João Scognamiglio Clá Dias,
poucos dias antes de sua morte

“— Dona Lucilia está morrendo…

“Seria horroroso. Eu gostaria de que isso me fosse poupado.

“Cheguei a expressar a Nossa Senhora mais um desejo: caso mamãe morra de manhã, eu gostaria de que fosse numa hora em que eu já tivesse lido o jornal, porque após sua morte eu não teria forças para isto, e poderia escapar-me alguma notícia importante para a Causa Católica.

“Foi exatamente desse modo que tudo se passou. Quando terminei a leitura do jornal, entrou o enfermeiro no meu quarto e me disse:

“— Dona Lucilia está morrendo, o senhor venha depressa.

“Meticulosamente, tudo o que pedi se realizou, exceto num ponto: eu gostaria de ter assistido aos últimos instantes de sua vida. Mas Nossa Senhora até nisso foi bondosa, poupando-me algo que me seria em extremo doloroso. De mamãe, a Providência pediu uma última prova: a ausência de seu filho naquele momento supremo de sua vida”.

Até na hora extrema, sustentada pela confiança em Deus

Conclui Dr. Plinio:

“Ela conservou, no extremo da debilidade, a segurança da ordem do espírito, da inteligência, da boa consciência. Ela foi caminhando para dentro das sombras da morte com toda a serenidade…

“Até seus derradeiros instantes, foi sustentada pela confiança, que lhe fez não perder a certeza de alcançar aquilo para o que sua vida inteira parecia estar voltada: almas que se abrissem para ela e se deixassem envolver totalmente por sua bondade.

“Um pouco dessa luz se levantou para mamãe já perto do fim, quando ela tomou contato com os tão numerosos jovens que iam à minha casa um tanto para me visitar, e mais ainda para vê-la e falar com ela, especialmente alguns que mais com ela conviveram. Nessa ocasião ela irradiou, mais do que em todo o seu passado, aquela doçura e bondade cristãs de que seu coração transbordava. Foi o ápice.

“Durante aqueles dias, eu tinha uma ideia confusa de que ela conversava com as pessoas que esperavam para falar comigo. Eu não imaginava, porém, ter sido tão grande o entendimento entre ela e eles. Eu a via entrar no escritório ou em meu quarto, com a fisionomia animada e alegre, e eu me perguntava: ‘Por que será?’ Só depois de ela falecer, ao falar com um ou outro, fiquei sabendo que conversavam com ela, interrogavam-na, tiravam fotografias…

“Então dei graças a Nossa Senhora, porque os últimos dias dela foram cercados de especial carinho, marco inicial de um relacionamento que continuou, depois, junto à sua sepultura…”

Glória, luz e alegria

Por certo, naquele 21 de abril de 1968, suave crepúsculo de uma longa e bela vida, Dona Lucilia lançou sobre seu extenso passado um olhar feito de doçura, calma, bondade, senso de observação e uma ponta de tristeza.

Ela enfrentou tudo. Viveu, sofreu, lutou contra as adversidades, sem conservar ressentimentos, nem acidez, nem recriminação a fazer, mas sem transigir nem ceder. Era o fim e o ápice de uma serena ascensão em linha reta.

Quem a observasse em seu leito de morte, teria a impressão de que, num nível próprio à dona de casa que ela era, um pouco de glória celestial já iluminava sua fisionomia tão afável, tão amável e tão pacífica até o fim.

Era a tranquilidade de quem se sentia protegida pela Providência, e sabia que somente lhe restava entregar a alma a Deus, junto ao qual lhe estaria reservada esta tríplice ventura: glória, luz e alegria.

Assim, na manhã do dia 21 de abril, com os olhos bem abertos, dando-se perfeitamente conta do solene momento que se aproximava, levantou-se um pouco, fez um grande sinal da Cruz e, com inteira paz de alma e confiança na misericórdia divina, adormeceu no Senhor…

“Beati mortui qui in Domino moriuntur – Bem-aventurados os mortos que morrem no Senhor” (Ap 14, 13). (Revista Arautos do Evangelho, Abril/2019, n. 208, p. 18-21)

Extraído, com pequenas adaptações, de “Dona Lucilia”. Città del Vaticano-São Paulo: LEV; Lumen Sapientiæ, 2013, p.617-654

1 Com a convalescença de Dr. Plinio após a forte crise de diabetes no ano de 1967, o Autor destas linhas passou a fazer plantão em seu apartamento, a fim de auxiliá-lo nos eventuais problemas que surgissem. Com isso, teve a oportunidade de conhecer de perto Dona Lucilia, bem como sua rotina.

 
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