Situado a oitocentos metros de altura, sobre um imponente promontório que avança em direção ao Mar Adriático, o Santuário de São Miguel Arcanjo do Monte Gargano chama a atenção por sua singular arquitetura e posição geográfica.
Um conjunto de pequenos edifícios pitorescamente sobrepostos na cresta da montanha o compõem, tendo por centro a pequena gruta onde o Custódio da Igreja apareceu no início da Idade Média.
Desde aquela remota época, o local tornou-se um centro de irradiação da devoção ao Santo Arcanjo para toda a Igreja. Ao longo dos tempos milhões de peregrinos, entre os quais muitos Papas, reis e Santos, visitaram o célebre santuário, cuja história, porém, se perde na bruma dos séculos.
A flecha se volta contra o arqueiro
Narram as antigas crônicas que, no ano 490, um nobre de Siponto, hoje parte da comuna italiana de Manfredônia, pôs-se a procurar nos arredores da cidade um de seus touros que havia se segregado dos demais. Passou várias horas buscando-o e só conseguiu encontrá-lo quando, vencido pelo cansaço, já decidira retornar para casa.
O animal achava-se na entrada de uma gruta pedregosa de difícil acesso, situada na parte mais alta do monte que domina a cidade. Seu resgate tornava-se quase impossível. Tomado de impaciência, o nobre disparou-lhe uma flecha com a intenção de matá-lo, mas esta, para surpresa dos que presenciavam a cena, retornou ao ponto do qual fora lançada, ferindo o próprio arqueiro.
Ao tomarem conhecimento do ocorrido, os sipontinos pediram ao seu Bispo, São Lourenço Maiorano, que lhes interpretasse o misterioso fato. Como resposta, o piedoso prelado decretou três dias de jejum, durante os quais todos deviam pedir a Deus que lhes revelasse seus sublimes desígnios em relação ao acontecido.
O atendimento às preces e sacrifícios não se fez esperar. Na aurora do quarto dia, 8 de maio de 490, enquanto São Lourenço rezava na Igreja de Santa Maria Maggiore, antiga catedral de Siponto, apareceu-lhe o glorioso Príncipe da Milícia Celeste, dizendo: “Bem fizeste em procurar descobrir o mistério de Deus escondido aos homens, razão pela qual os golpeei com minha lança. Sabei, porém, que esta é a minha expressa vontade. Eu sou Miguel Arcanjo e estou sempre na presença de Deus. Venho habitar este lugar, guardá-lo e provar por meio de um sinal que serei seu vigia e custódio”.1
O espírito angélico ainda prometeu que concederia qualquer favor que ali lhe rogassem em oração e pediu que se dedicasse a gruta ao culto cristão. E, como prova do seu poder, fez com que o nobre atingido pela flecha ficasse prodigiosamente curado, a ponto de desaparecerem todos os vestígios do ferimento.
São Miguel lhes obtém a vitória
A notícia do acontecido espalhou-se pela Europa e pelo Mediterrâneo, até atingir a longínqua Constantinopla. Enquanto isso, em Siponto, os fiéis tomaram por costume subir o Monte Gargano a fim de pedir a intercessão do Santo Arcanjo, que lhes obtinha graças com grande munificência.
Um dos maiores favores por ele concedidos deu-se dois anos depois da primeira aparição. Tendo sido a cidade cercada por um poderoso exército bárbaro, São Lourenço subiu à celeste gruta para implorar ao Arcanjo a vitória, e aconselhou ao povo pedir uma trégua de três dias, durante os quais deveriam fazer jejuns e preces em honra ao Deus dos exércitos.
Os invasores aceitaram o armistício e, completado o tempo assinalado, São Miguel apareceu novamente ao prelado enquanto rezava na catedral de Siponto. Era a aurora de 29 de setembro de 492. Vinha anunciar-lhe a vitória e o advertia de não atacar os invasores senão depois da hora quarta daquele mesmo dia.
O santo Bispo convocou o povo e transmitiu-lhe as instruções recebidas do Céu. Inundados de alegria, os defensores da cidade passaram as primeiras horas do dia em oração e, no momento determinado pelo Arcanjo, dirigiram-se ao encontro dos seus adversários. Os invasores, conta um cronista, confiavam no próprio orgulho, e os sipontinos, na promessa angélica.2
Iniciada a batalha, uma espessa nuvem cobriu o Gargano. A terra começou a tremer, o mar agitou-se rugindo com furor e desabou uma terrível tempestade, cujos raios atingiam os bárbaros e poupavam os sipontinos. Aterrorizado, o exército inimigo logo se pôs em fuga.
Em agradecimento, o Bispo saiu com o povo em procissão até a gruta do Arcanjo, em frente à qual encontraram gravadas na rocha pegadas semelhantes às de um homem. Imediatamente as atribuíram a São Miguel e, não ousando entrar, puseram-se a venerar os vestígios deixados pelo espírito angélico como sinal inequívoco de sua presença e proteção.
“Eu mesmo consagrei este lugar”
No oitavo dia do mês de maio de 493, o Bispo Lourenço subiu novamente à gruta para comemorar o terceiro aniversário da primeira aparição. Preocupava-lhe a ideia de transformar aquele solitário local em um verdadeiro santuário, onde Deus fosse louvado e a Santa Missa celebrada com frequência, mas não sabia qual seria o melhor modo de fazê-lo.
Para resolver o dilema, decidiu levar o problema ao Papa São Gelásio, que acabava de assumir o Sólio Pontifício. Este acolheu com benevolência os mensageiros do Bispo, mas, em lugar de dar-lhe uma solução para a questão, convidou-o a descobrir a vontade do Arcanjo com estas palavras: “Se competisse a nós determinar o dia da dedicação da igreja escolhida por São Miguel, diríamos que se fizesse no dia da vitória contra os bárbaros; mas, cabendo ao Santo Príncipe defini-lo, esperamos o seu oráculo”.3
Nessa mesma missiva, o Pontífice pedia a São Lourenço que proclamasse em Siponto um jejum de três dias, no qual deveriam acompanhá-lo sete virtuosos prelados de dioceses vizinhas, que enumerava a seguir. O próprio Santo Padre prometia unir-se em Roma às orações assim proferidas.
As preces de um Papa santo, unidas às de tão virtuosos prelados, não podiam deixar de ser atendidas. No dia 26 de setembro de 493, deu-se início ao tríduo solene preceituado por São Gelásio e, na noite do dia 29, São Lourenço recebia o terceiro oráculo do Arcanjo, que apareceu a ele dizendo: “Não compete a vós dedicar esta basílica que eu erigi, mas a mim, que coloquei seus fundamentos. À medida que suas paredes cresçam, os pecados dos homens que a visitem diminuirão, pois no seio desta casa tão especial as más ações desaparecem. Entrai nela, orai assiduamente no seu interior, assistidos por mim, seu padroeiro. E, quando sejam celebradas Missas, que o povo comungue conforme o costume. Eu mesmo me encarregarei de santificar este lugar”.4
Na aurora do dia seguinte, prelados e fiéis dirigiram-se à gruta e os sinais prometidos pelo Arcanjo começaram já no caminho, ao longo do qual o sol era muito forte. Em determinado momento, quatro enormes águias passaram a acompanhá-los: duas faziam sombra para os Bispos e o povo, e as outras duas produziam com suas asas uma agradável brisa.
Ao chegar à gruta, depararam-se com a efígie de São Miguel impressa na parede e, ao penetrar no seu interior, encontraram um altar escavado na rocha e ornado com uma cruz de cristal, como símbolo da prometida consagração.
Séculos de devoção a São Miguel
Quando o Papa Gelásio soube por São Lourenço das maravilhas acontecidas nesse dia, estabeleceu para todo o sempre que o dia 29 de setembro fosse dedicado a São Miguel na Igreja universal. Mais tarde se comemorariam também nessa data São Gabriel e São Rafael, dando origem assim à atual memória litúrgica dos três Arcanjos.
Nos séculos sucessivos, a história do santuário acompanha as vicissitudes da época, marcada pelas lutas entre bizantinos e lombardos. No século XI erige-se a antiga igreja, cujos vestígios ainda hoje contemplamos.
Entre os Papas e Santos medievais que visitaram o santuário, cabe mencionar São Bernardo, São Guilherme de Vercelli, São Tomás de Aquino, Santa Catarina de Siena e São Francisco de Assis. Este último, não se sentindo digno de ingressar na gruta, recolheu-se em oração à entrada do recinto, osculou o chão e gravou numa das pedras o sinal do tau.
Em 1656 haveria de dar-se ainda uma quarta aparição, motivada pela terrível peste que então se alastrava pela Itália, levando consigo inúmeras vítimas. Nessa ocasião Dom Giovanni Alfonso Puccinelli, Arcebispo de Manfredônia, determinou que fossem feitos jejuns e orações, a fim de implorar o auxílio do protetor celeste, e deixou nas mãos da imagem de São Miguel uma súplica por escrito. Enquanto rezava, o Arcanjo se manifestou a ele ordenando que abençoasse fragmentos de pedras da gruta, nos quais deveria esculpir o seu nome e o sinal da cruz. Todo aquele que os utilizasse seria curado da peste, e assim sucedeu.
Unidos a São Miguel, venceremos
Em nossos dias, o Santuário do Monte Gargano continua sendo um concorrido centro de peregrinação, potenciado pela sua proximidade a San Giovanni Rotondo. Entretanto, a mentalidade moderna parece ter relegado sua venerável história e a devoção ao Arcanjo ali praticada à pitoresca lembrança de um passado remoto, sem maior utilidade para os tempos atuais.
Nada de mais errôneo. Hoje a Igreja está envolvida numa terrível guerra espiritual, durante a qual o demônio tem levado consigo um número cada vez maior de almas. Nessa luta, São Miguel possui um importantíssimo papel. Sendo não apenas o escudo da Igreja, como também seu gládio, o Príncipe dos exércitos do Senhor é chamado não só a nos proteger contra as insídias do inimigo, mas a lhe infligir uma de suas mais amargas derrotas.
Cabe-nos, portanto, crescer na devoção a este celeste Arcanjo, certos de que, unidos a tão invicto general, tornar-nos-emos invencíveis e fortes como a milícia celeste o foi, fazendo ecoar por todo o império de satanás o decisivo e triunfante brado: “Quis ut Deus!”
Uma curiosa coincidência?
O Santuário do Monte Gargano faz parte de um conjunto de sete construções relacionadas com o Custódio da Igreja que, embora separadas por grandes distâncias, encontram-se enfileiradas no mapa. Formam assim o que tem sido chamado de Linha Sacra de São Miguel Arcanjo.
O extremo noroeste desta reta situa-se numa despovoada ilha da Irlanda, onde o Príncipe da Milícia Celeste apareceu a São Patrício. Ali foi levantado em fins do século VI o Mosteiro de Skellig Michael, um dos mais antigos e remotos do mundo cristão. Continuando em direção ao sul, deparamo-nos na Cornualha, Inglaterra, com a ilha de Saint Michael’s Mount na qual, segundo uma antiga tradição, o Arcanjo se manifestou no século V a um grupo de pescadores.
Após atravessar o Canal da Mancha, chegamos à famosíssima Abadia do Mont Saint-Michel, local da aparição ao Bispo de Avranches, Santo Autberto. De lá avançamos até uma grande rocha que domina o Piemonte, do outro lado dos Alpes, sobre a qual se ergue a Sacra di San Michele, antiquíssimo mosteiro dedicado ao Custódio da Igreja. E ainda dentro do território italiano, mas já nas margens do Adriático, está o Santuário do Monte Gargano.
Na ilha grega de Symi, próxima à costa da Turquia, encontramos o mosteiro ortodoxo de Panormitis, edificado sobre uma antiga igreja cristã de meados do século V dedicada a São Miguel. E, no extremo sudeste desta linha reta, ergue-se o Monte Carmelo, morada do profeta Elias e também de alguma forma relacionado com o Arcanjo. É digno de nota que as duas construções mais importantes deste conjunto – Mont Saint-Michel e Monte Gargano – estejam à beira-mar, exatamente à mesma distância da Sacra di San Michele, situada bem no coração da Europa.
Cabe perguntar se esta linha de santuários constitui apenas uma curiosa coincidência. Ou corresponderá ela, como certos espíritos imaginativos afirmam, a um terrível golpe de espada dado pelo Arcanjo sobre Lúcifer no decurso do prælio magno ocorrido no Céu? Impossível é para nós conjeturar sobre tão misteriosos arcanos. Deus, porém, nada faz por acaso; grande ou pequeno, tudo para Ele tem seu significado. Algum dia o conheceremos. (Revista Arautos do Evangelho, Setembro/2019, n. 213, p. 34-37)
1 LUCERA, Giuseppe Marinelli di. Ragguaglio del venerabile ed insigne Santuario dello Arcangelo S. Michele nel Monte Gargano. Napoli: Tipografia di Gennaro Fabricatore, 1858, p.8. 2 Cf. Idem, p.17. 3 Idem, p.24. 4 Idem, p.25-26.