Quem poderá ter notícia de tudo o que aconteceu nessas mais de duas mil noites? Quantos milagres, quantas graças recebidas e quantas comunicações do Infante Jesus às almas nesses abençoados dias?
Natais grandiosa ou humildemente celebrados; em templos magníficos ou em pequenas capelas, semelhantes em pobreza à gruta de Belém. Noites Santas comemoradas em meio a uma multidão ou entre os membros de uma pequena família. No entanto, contrariando a nota tônica de alegria de todos os Natais, alguns houve que lembram os sofrimentos que Nosso Senhor Jesus Cristo quis padecer já em sua entrada neste mundo.
Caía copiosa chuva na cidade de Roma, na noite de 24 de dezembro de 1075, um dia antes do Natal. O frio era intenso, a atmosfera, pesada. Enfrentando as intempéries, o Papa Gregório dirigia-se à Basílica de Santa Maria Maior que, já naquela época, albergava as tábuas da manjedoura onde o Menino Jesus foi reclinado, depois de ter sido acolhido pelos braços virginais de sua Santíssima Mãe.
Estava iluminada por uma quantidade considerável de candelabros, criando um ambiente de solenidade e de sacral mistério. O monge cisterciense Hildebrando, que dois anos antes fora eleito sucessor de Pedro e adotara o nome de Gregório VII, começou piedosamente a celebração do Santo Sacrifício e, fazendo eco ao cântico dos Anjos, entoou com firmeza o Gloria in excelsis Deo.
Durante a Celebração, cada vez que o olhar do Papa recaía sobre as tábuas sagradas, sentia ele um frêmito de emoção: há mais de dez séculos, o Verbo feito carne ali repousara! E, após a consagração, repousaria também em suas mãos, em Corpo, Sangue, Alma e Divindade, embora oculto sob as Sagradas Espécies.
Foi decerto com sentimentos como estes no coração que São Gregório VII celebrou a Santa Missa. Mas, quando se dirigia aos fiéis para dar-lhes a Comunhão, ouviu-se um ruído estrondos e uma turba armada penetrou no templo. Muitos fiéis fugiram.
Comandados por um nobre romano chamado Cencia, os invasores avançaram contra o Papa, ferindo-o com punhaladas. Despojaram-no dos paramentos sagrados, manchados com o sangue que lhe fluía do rosto, arrastaram-no para fora e, sob a chuva torrencial, o encerraram numa torre perto do Panteão. Ao raiar da aurora, o povo de Roma, ao saber do local onde estava preso seu Pastor, reuniu-se impaciente junto ao Campidoglio e correu a libertá-lo.
Cencio jogou-se aos pés de São Gregório, implorando-lhe clemência. Este perdoou o atentado cometido contra sua pessoa. Em reparação pela ofensa feita à Igreja, contudo, impôs-lhe como penitência uma peregrinação a Jerusalém. Dirigiu-se em seguida à janela de sua prisão e pediu ao povo romano que não fizesse mal algum ao sacrílego agressor, o qual pôde, assim, escapar livremente.
Liberto o Pontífice, o povo o conduziu em triunfo pelas ruas de Roma, em direção ao Palácio de Latrão, na certeza de que, após aqueles acontecimentos, ele desejaria cuidar das feridas, lavar- -se, trocar suas vestes e descansar. Este, porém, indicou à multidão outro destino: a Basílica de Santa Maria Maior. Sem entender o motivo de tal decisão, os fiéis obedeceram.
Lá chegando, São Gregório subiu ao altar e finalizou a Liturgia da Noite de Natal, interrompida horas antes. Só depois se dirigiu ao Palácio Lateranense.
Para alguns, o Natal de 1075 foi um dos mais tristes da História; para outros, um dos mais conturbados. Mas se tivéssemos oportunidade de ouvir do próprio monge Hildebrando a narração do acontecido nesse dia, por certo ressaltaria ele o quanto, durante aquele episódio, seus sofrimentos estavam unidos aos de Nosso Senhor Jesus Cristo.
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Conta uma piedosa tradição que o Menino Jesus, após dirigir o primeiro sorriso à sua Mãe virginal, abriu os braços em forma de cruz, prenunciando a Paixão. Se assim foi, quis Ele nos ensinar, com esse gesto, que em meio às alegrias natalinas os homens não devem se esquecer do objetivo de sua vinda ao mundo: operar a Redenção do gênero humano, pelo sacrifício de sua própria vida. Convidava, assim, todos os homens a se unirem às suas dores, nos séculos vindouros.
Foi o que fez São Gregório VII, ao longo de todo o seu Pontificado, marcado pela terrível perseguição do mais famoso potentado daquele tempo. (Revista Arautos do Evangelho, Dez/2012, n. 132, p. 50-51)