Declaro que vivi e espero morrer na Santa Fé Católica Apostólica e Romana, à qual adiro com todas as veras de minha alma. Não encontro palavras suficientes para agradecer a Nossa Senhora o favor de haver vivido desde os meus primeiros dias, e de morrer, como espero, na Santa Igreja, à qual votei, voto e espero votar até o último alento, absolutamente todo meu amor.
Agradeço da mesma forma a Nossa Senhora — sem que me seja possível encontrar palavras suficientes para fazê-lo — a graça de haver lido e difundido o Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem, de São Luís Maria Grignion de Montfort, e de me haver consagrado a Ela como escravo perpétuo. Nossa Senhora foi sempre a Luz de minha vida, e de sua clemência espero que seja Ela minha Luz e meu Auxílio até o último momento da existência.
Assim se exprimiu Dr. Plinio em seu testamento, mais de uma vez evocado nas páginas desta Revista, posto traduzir de modo genuíno os princípios que nortearam sua longa vida: o inteiro amor à Igreja e ao Papado, a humilde e intensa devoção a Nossa Senhora, como meio seguro de se conformar ao Sagrado Coração de Jesus.
Ouçamo-lo descrever como considerou o desenvolver de sua vocação, a qual culminaria, na Terra, naquele 3 de outubro de 1995:
Em determinado momento de minha infância, por inspiração da graça, cheguei à convicção de que havia no meu espírito um depósito de energia capaz de ser transformado em força, em energia vitoriosa, desde que eu estivesse disposto a sofrer.
Ora, exatamente não me agradava o sofrimento.
Porém, entendia que, se tomasse essa capacidade, esse potencial de assumir a dor (o qual percebia ser incomum), e levasse até onde fosse me possível com a ajuda do Céu, eu sofreria menos do que se me deixasse arrastar pela moleza e me ver esmagado por todos os brutos do mundo. E pensava: “Se eu aceitar a cruz, posso ter insucessos e toda espécie de reveses; será porque Deus permitiu e quis me provar. Não será por culpa minha, e sim por desígnio d’Ele. Se é a vontade de Deus, faça Ele de mim o que Lhe aprouver. Por falta minha, não será”.
A esse raciocínio aliavam-se as noções do confronto Revolução versus Contra-Revolução, no qual me sentia chamado a atuar de maneira particular. Então compreendi ser aquele sofrimento destinado a alcançar a vitória da Contra-Revolução nesse embate, e que tal padecimento, portanto, iria tão longe quanto o de um homem pode ir. Não apenas físico, mas, sobretudo, moral, pois nessa batalha pela causa católica e contrarevolucionária não me seriam poupados ódios, calúnias, perseguições.
Anos mais tarde, com a leitura do livro de Dom Chautard — A alma de todo apostolado — nasceu em meu espírito a idéia de que eu só poderia realizar a obra para qual era chamado se me empenhasse em me tornar santo. E formei a intenção de me oferecer como vítima expiatória a Nosso Senhor, a Nossa Senhora, pela vitória da Contra-Revolução.
Não cheguei a formalizar o oferecimento naquela época, pois um certo lampejo me era dado para entrever não ser então o que a Providência desejava de mim. Ela queria que eu vivesse. Mas, de fato, minha vontade era pedir que morresse como Santa Teresinha, imaginando nossas missões semelhantes, ou seja, fazer mais depois de morto que durante a vida. Assim, terminaria meus dias ainda moço, consumido por uma doença qualquer. Mas, ao menos teria pago o preço da Contra-Revolução.
Contudo, percebi não ser o momento para isso, embora tenha tomado em face de Maria Santíssima traquerível’! Portanto, almejo estabelecer com Ela uma união na linha
de tudo quanto me seja dado imaginar, um vínculo fora de série”.
Por essas disposições de alma eu compreendia que Nossa Senhora esperava de mim algo a mais do comum. E me vinha a idéia:
“É isso. À falta de outro melhor, Ela chamou este medíocre para desincumbir essa tarefa, e ele aceitou. Percebo que minha inteligência se manifesta com boas rutilâncias, sob o influxo da graça alcançada por Maria. Mas, exatamente porque não tenho o talento de outros, torna-se necessário suprir essa carência com os dons divinos. É a misericórdia para o ‘medíocrão’. Aceite isso dessa maneira e se desempenhe com naturalidade. Eu só fico penalizado pelo fato de que, se eu valesse mais, poderia servi-La melhor. Valho o que tenho; Ela me completa, e vamos para frente. Nossa Senhora há de fazer o que está em mim realizar pela causa d’Ela!”
Na extensa trajetória que se me abria, ao lado de algumas intensas consolações, sobrevieram também grandes provações, interpretadas como punição de Deus por minha falta de generosidade no cumprimento da vocação. Julgava que as adversidades e contrariedades se apresentavam porque eu tinha culpa, eram infidelidades conscientes ou não, pecados ocultos de cuja existência não me dera conta…
Pensamento cruciante: “Tenho cegueira porque não quero ver, e por causa disso estão acontecendo coisas ruins. Mas, talvez seja porque estou disposto a servir de vítima expiatória, e esse oferecimento está me esmagando como eu desejei”. Contudo, eu era triturado entre a resignação — caso devesse ser vítima expiatória — e um brado, um clamor interno de que tal não devia ser. Então, a conclusão: “Não, não é vítima expiatória, mas é castigo. Entenda e abrace de frente essa situação. Bom, mas do que devo me arrepender? Do que você não vê. Se está sendo castigado por uma mão justa e não a vê, a culpa é de não enxergá-la. Ao menos agora não seja cego e siga adiante, pois Nossa Senhora, apesar de suas lacunas, vai lhe concedendo meios de desenvolver sua missão.”
Havia, portanto, de um lado, a ideia do desígnio divino que se realizava dentro da mediocridade, da correspondência insatisfatória; de outro, um tormento: o tempo ia passando, e quando eu estivesse com 60, 70 anos, achar-me-ia tão velho que não serviria para mais nada. A velhice se aproximava de mim como em certos filmes representavam um acidente de automóvel, este indo de encontro a um rochedo. Assim também eu caminhava para a ancianidade, e nada se realizava, nada se movia.
Na verdade, formáramos um movimento minúsculo, sem expressão. Eu dizia: “Pelos cálculos comuns, já devia estar mar alto na realização de minha missão. Por que não acontece? Mediocridade, castigo. É isso. Saiba não formar uma idéia pretensiosa a seu respeito. Aprenda a lição.”
Em contrapartida, percebia desenvolverem-se certas qualidades, uma determinada aura em torno de mim. Logo vinha o crivo da consciência: “Você nota, mas os outros não. O que é claro aos seus olhos, não o é aos deles. Você vê, porque correspondeu um ‘tantinho’, porém, se os demais não percebem, é porque você não correspondeu o bastante. Portanto, o que deve se tornar admirável em você é a sua vergonha, porque não foi fiel o suficiente. Você é o abat-jour opaco que guarda a luz dentro de si, mas não a faz transparecer para os outros. Este é você. “Por outro lado, não consigo melhorar. Faço o que posso, realizo o que realizo. Um grupinho aqui, outro acolá… Leia no Dom Chautard e você encontrará a explicação de tudo: falta vida interior a você!”
Não obstante essas provações — que constituíam um drama psicológico capaz de minar qualquer organismo, como de fato afetou o meu, determinando pouco depois uma crise de diabetes1 — eu sentia que as graças alcançadas por Nossa Senhora iam aumentando, embora o apostolado não crescesse na mesma proporção. Resultado, novas auto-recriminações: “Você está melhorando um pouco, porém de forma morosa. Esfregue seu nariz no chão da vergonha, porque deveria ser muito mais. Quer provas? Nossa Senhora o ajuda a formar esses grupinhos, mas… que dificuldade! Pense um pouco, reflita, observe que Ela não lhe concede nada de extraordinário. Qual é a grande dádiva a favorecer o seu apostolado? Nenhuma…”
Eu me sentia tentado a dizer que tudo aquilo em que minhas mãos tocavam, esboroava-se. Eram, na verdade, os sofrimentos e as provações próprias à via de expiação na qual trilhávamos, tendo Maria Santíssima considerado aquela minha primeira disposição. Desejo de oferecimento esse reiterado pouco antes do meu desastre de automóvel em fevereiro de 1975, e também aceito por Nossa Senhora, como já tive anterior ocasião de narrar2.
A partir de então, começo a notar nos meus seguidores mais jovens uma atitude invulgar em relação ao ideal e à minha própria missão. E pensei: “Afinal, me vem de algum lado uma repercussão por onde, junto a alguém, estou produzindo o efeito que, se fosse fiel à graça, estaria produzindo. Embora devesse sê-lo mais universalmente, ao menos isso nos é dado!”
Esse fato me alentou sobremaneira, e com profunda gratidão a Nossa Senhora eu passei a ver o espraiar-se da aura de minha obra pelos mais diversos recantos do mundo.
Incansável paladino dos direitos de Deus e da Igreja, Dr. Plinio olhou para o seu futuro e para o momento da sua morte com a confiança que sempre o caracterizou. Antevendo seu caminho, afirmou ele certa vez:
Imaginemos um de nós, muito chamado, muito eleito, sobre quem se abate a provação de uma grave enfermidade a qual, na aparência, o impede de cumprir a vocação. Pois tudo quanto sua alma desejaria para satisfazer a missão que lhe foi concedida, mil anseios bons, mil anelos de combater e vencer os adversários da Igreja, ficam tolhidos dessa maneira. O que era a respiração de seu espírito não lhe é mais permitida.
A esse pode vir a perplexidade: “Será que o esperado nas melhores horas de minha vida espiritual, os combates decisivos e supremos em que ouviria o cântico de vitória dos filhos de Maria Santíssima, não eram para mim? E que me estava destinado um quarto de doente, o isolamento, e ainda sentindo que, pela minhas circunstâncias, estou pesando como elemento negativo sobre aquela força em marcha, na qual quisera ser de todos os modos um elemento positivo?”
Noutras palavras, ele poderia pensar: “Nos melhores momentos de meu fervor espiritual, parecia-me chegada a hora do Reino de Maria, que eu o estava tocando com as mãos. Alegrava-me a esperança de ter concorrido de modo significativo e triunfal, eu, pessoalmente, com os braços e as pernas que Deus me deu, para essa vitória. Mas, não. Não é esse o meu caso. Fiquei de lado. E algo parece agora desmentir os mais admiráveis impulsos que me levaram até o extremo da generosidade.
Eu cometi algum pecado, uma infidelidade por onde Ele me deixou? E eu devo sofrer na Terra a penitência deste abandono, até que Deus tenha pena de mim e me leve para o Purgatório? Ou há uma saída para essa situação, e preciso crer nessa solução, manter o mesmo espírito aceso, a mesma certeza de que na hora ‘H’ serei um homem ‘H’, para cumprir a minha vocação, ainda que eu deva esperar as maiores maravilhas?”
Sim, essa saída existe. E cumpre que ele se convença desta verdade: “Aquilo que eu considerei uma palavra de Deus na minha alma, a qual me levou para toda espécie de bem, nessa palavra confiei e continuo a confiar, a super-confiar, e quanto mais os fatores existentes forem contrários, tanto mais é certo que, confiando, na hora ‘H’ eu serei o homem ‘H’.”
Alguém poderia me perguntar: por que razão devemos confiar contra toda a confiança, com serenidade e tranqüilidade numa situação que parece perdida?
Esta é uma questão fundamental em nossa vocação, pois circunstância análoga pode suceder a qualquer um de nós.
A resposta se cifra no fato de que a Providência não pode nos pedir nem alimentar em nossa alma algo de ilógico. Se, ao longo de nossa vida espiritual, dos anos dedicados ao serviço de Nossa Senhora e da Igreja, mantivemos acesos aqueles desejos primeiros, o primeiro impulso, a primeira verdade, aquele primeiro ato de vontade e aquelas deliberações daí decorrentes, jamais desmentidas, jamais diminuídas, jamais derrotadas, tal atitude só pode ter sido por uma ação da graça sobre nós. A graça agiu? Foi Deus nos chamou. Se Ele nos chamou, pode dispor de nossa entrega como for da sua maior glória.
Ele não quis de mim o combate direto e final contra os seus adversários, mas eu obterei um jeito de lutar melhor do que se o fizesse em campo aberto. Eu ofereço a Deus o martírio da minha inutilidade. Tornei-me inútil: ó bem-aventurada inutilidade! Eu sofro com isto mais do que se fosse um missionário obrigado a atravessar o Tibet a pé, evangelizando os povos montanheses.
Alguém ainda dirá: “Mas, então, por que Ele me concedeu esses desejos extraordinários e me fez progredir na vida espiritual? Para, no fim, não me proporcionar a realização de tudo o que esperei?”
É precisamente isso. Em sua insondável sabedoria, Deus determinou que tudo aquilo para o qual me chamava, eu como que queimasse sobre uma pira em louvor a Ele. Dessa forma, o desejo de fazer um bem que eu não pude concretizar haveria de valer mais aos olhos de Deus do que esse mesmo bem que eu poderia ter feito.
Portanto, a alma deve ter isso em vista e se conformar com os desígnios divinos. Nela, a virtude da confiança consiste em ter a certeza de que ascenderá por esse caminho, amparada pela misericórdia de Maria Santíssima. E todos nós temos de estar dispostos a aceitar essa condição. Se assim procedermos, despertaremos em nosso coração sentimentos virtuosos, pois essa é a maneira de considerar a situação em função dos dados da fé católica.
Então, nunca nos deixemos abater pelo desânimo, pela revolta, jamais abandonemos o verdadeiro caminho, que é o da confiança.
A trajetória de nossa própria vocação é um dos grandes exemplos dessa forma de confiança inteira.
Com efeito, nossa vida foi uma longa espera com quase nada que a confirmasse e com quase tudo que a desmentisse. Tratava-se de esperar contra toda a esperança, crer apesar de quase todas as razões que levavam a não crer; andar pelos rochedos, pelos abismos, pelos precipícios, pelas grutas, até que raiasse o dia no qual Nossa Senhora nos diria:
“Filhos meus diletos, filhos meus caríssimos. Vós esperastes muito, vós recebereis muito. O vosso bilhete de loteria é o de acreditar, o bilhete de confiar. Por vossa confiança, esperastes tudo e agora ganhareis a vitória. Saindo de uma gruta, de repente percebeis o mar magnífico a se desdobrar à vossa frente, formando um panorama esplêndido, o oceano azulado onde as gotas douradas do sol deitam reflexos magníficos. Ide até lá, tomai as embarcações nas quais podeis navegar em direção ao triunfo. As grutas, os morcegos, as cobras, toda a vegetação da derrota, da umidade, da pantanosidade, das trevas, ficaram para trás.
“Para vós, agora, o destino é outro: vencei!” (Revista Dr. Plinio, Outubro/2005, n. 91, p. 24 a 31)
1) Cfr. “Dr. Plinio” número 21.
2) Cfr. “Dr. Plinio” número 83