Desde o mais profundo clamei a Ti, Senhor; Senhor, ouve a minha voz. / Estejam atentos os teus ouvidos à voz da minha súplica. / Se examinares, Senhor, as nossas maldades, quem, Senhor, poderá subsistir? / Mas em Ti se acha a clemência, e por causa da tua lei pus em Ti, Senhor, a minha confiança. / A minha alma está confiada a sua palavra; a minha alma esperou no Senhor. / Desde a vigília da manhã até a noite, espere Israel no Senhor. Porque no Senhor está a misericórdia, e há n’Ele copiosa redenção. / E Ele mesmo redimirá Israel de todas as suas iniquidades. (Salmo 129).
Embora pouco extenso, o Salmo 129 se reveste de imensa expressividade. Assim como procedemos em anteriores ocasiões, é interessante analisarmos versículo por versículo esse belo texto sagrado.
Infinita distância entre Deus e o pecador
Do mais profundo clamei a Ti, Senhor; Senhor, ouve a minha voz.
Tem-se a impressão de que entre o Salmista e Deus, a quem ele se dirige, há uma grande distância. De fato, é infinita, pois vai não só do Criador à criatura, mas, no caso concreto, de Deus a um pecador. Este testemunha contra si mesmo, acusa-se de suas faltas graves, e apesar de conhecer a distância que o separa do trono excelso do Altíssimo, volta-se para o Supremo Juiz. Ao longo do Salmo, apresentará a fundamentação da prerrogativa de poder apelar ao Criador.
Esperança na misericórdia divina
Estejam atentos os teus ouvidos à voz da minha súplica.
Trata-se de um modo oriental e bonito de dizer: “Senhor, fazei o que estou pedindo”. Significa uma respeitosa e filial insistência.
De certa forma, o Salmista afirma: “Vós somente realizais o que é perfeito; e se não deitardes atenção à minha súplica — por ser eu um pecador indigno de vossa consideração e até de vosso olhar — agireis conforme a justiça a qual não transgredis jamais. Sei que o mereço, mas estou ciente também de que Vós sois tão justo quanto misericordioso. E aquilo que a justiça não me concede o direito de esperar, a misericórdia me autoriza pedir. Assim, eu Vos suplico, ó Senhor, ouvi a minha voz, prestem os vossos ouvidos atenção ao que digo!”
Muito poético, porém ao mesmo tempo lacrimoso e esperançoso. É o meio empregado pelo Salmista para que, afinal, Deus o ouça.
Se examinares, Senhor, as nossas maldades, quem, Senhor, poderá subsistir?
O pecador faz agora outro raciocínio: “Faltas, tenho as minhas, as lamento, choro, e a magnitude de meu pranto indica a imensidade de minhas culpas. Mas, Senhor, quem
não as tem? Sou homem, conheço o gênero humano e todos são réus de quedas mais graves ou menos, muitos se acham na área negra do pecado mortal, e muitos naquela
menos escura, mas quão fuliginosa, perigosa, do pecado venial”. E o Salmista poderia dizer: “Se prestardes atenção em nossas misérias, se fizerdes contabilidade com os
homens; se a cada falta acrescentardes um castigo, exercendo vossa estrita, admirável e adorável justiça, pergunto-vos: alguém continuará existindo diante de Vós?”
De passagem, vale notar que a atitude do pecador e a sua forma de impetrar a clemência divina teriam sido outras, caso Nossa Senhora, com sua maternal mediação
junto a Deus e a seu Filho, já houvesse nascido…
David, Catedral de Sigüenza (Espanha) |
Como quer que seja, o Salmista insiste na sua confiança: “Se Vós para tantos homens sois misericordioso e os mantendes, então também a mim, criatura humana que sou, perdoai-me. Não mereço vossa indulgência, mas a misericórdia é para os que não a merecem!”
Com essa súplica ele tem esperança de ser afinal atendido e ficar reconciliado com Deus.
Bela articulação racional
Mas em Ti se acha a clemência, e por causa da tua lei pus em Ti, Senhor, a minha confiança.
O Salmista quer dizer: “Todos os atos de clemência, ó Deus, procedem de Vós, porque deles sois a fonte e o modelo. Sois a clemência personificada e essa virtude se difunde como uma gloriosa mancha de azeite pelo universo inteiro. Toda a doçura que se encontra aqui, lá ou acolá vem de Vós, ó Senhor.
“Assim, concedei-me um pouco de vossa misericórdia, da qual tanto necessito. Sou tão culpado, mas também sou vosso filho. Senhor, não rejeiteis este filho pródigo que vem chorar a vossos pés.”
Linda é essa articulação racional presente no Salmo 129.
A minha alma está confiada na sua palavra; a minha alma esperou no Senhor.
Ou seja, o pecador deseja afirmar: “Senhor, não se trata apenas de uma esperança de minha parte, deduzida de vossa própria natureza, mas é também uma cobrança que, genuflexo, vos dirijo. Prometestes misericórdia a todo aquele que recorresse a Vós. ‘Todo’ não excetua ninguém, inclui os piores pecadores desde que se arrependam de suas faltas. Senhor, choro de dor pelo mal que fiz; aceitai minhas lágrimas e cumulai-me com vosso perdão.”
O retorno do filho pródigo Igreja da Misericórdia Viana do Castelo Portugal |
Maldita tendência de não dar importância ao pecado
Essa postura do Salmista é muito bonita, e concorre para quebrar em nós a tendência maldita de não dar importância ao pecado. A palavra “maldita” pode parecer demasiado forte, porém é a apropriada para se compreender quanto é nefasta essa inclinação. Quem se deixa arrastar por ela, procura racionalizar para justificar seu péssimo procedimento: “Pequei, mas Deus perdoa tudo meio automaticamente. Logo me confessarei e — como se diz em francês, à peu près — terei uma tal ou qual contrição, e a absolvição incidirá sobre essa minha disposição de alma, atraindo para mim o perdão do Criador. De maneira que não é tão grave pecar. De vez em quando cometo um pecado mortal, porque depois peço perdão, e posso abusar da misericórdia de Deus. Ele é tão bom e santo! Por que não Lhe desferir umas bofetadas, uns pontapés, escarrar n’Ele, se é tão admirável e divino?”
Desde a vigília da manhã até a noite, espere Israel no Senhor.
Há aqui um conselho para todos os homens: Israel é a nação, o povo abençoado e amado de Deus. Então, quer o Salmista dizer: “Esses raciocínios desenvolvidos para meu próprio efeito e a propósito de minha situação, são aplicáveis igualmente à minha raça, ao meu país, a todos os homens e, sobretudo, à nação eleita.”
Importa assinalar que este Salmo, como os outros chamados Penitenciais, foi composto para ser lido por nós num momento de arrependimento, de compunção e tristeza. Por isso é conveniente levá-los no bolso, tirá-los e rezá-los em certas oportunidades, pois constituem verdadeiro alento para a alma. (Revista Dr. Plinio, Janeiro/2006, n. 94, 10 a 13).