São Vicente pertencia a uma ilustre família. O avô paterno fôra cônsul. Jovem e bem proporcionado, fizera excelentes estudos, e o bispo de Saragoça, após o instruir na ciência divina, o ordenara seu arquidiácono, com a incumbência de instruir os outros, no seu lugar, por não lhe ser possível falar com facilidade. O bispo chamado Valério, pertencia igualmente a uma família distinta, que já dera vários bispos.
O governador Daciano mandou que tanto um como o outro fossem presos. Torturaram-nos a princípio em Saragoça; depois, transferiram-nos para Valência, onde foram lançados a uma horrível prisão. Daciano lá os conservou longo tempo, carregados de grilhões e privados do necessário alimento. Esperava o tirano que o peso das correntes e os padecimentos da fome lhes abatesse o corpo e a alma. Mandando-os chamar, surpreendeu-se ao vê-los de corpo vigoroso e espírito inquebrantável. Repreendeu os guardas, como se não tivessem executado as ordens no tocante aos prisioneiros; e em seguida, tratou de a estes conquistar com promessas e ameaças.
Visto que Valério, em virtude da sua dificuldade de falar, nada respondia, disse-lhe Vicente: Meu pai, se me ordenares, falarei. – Meu caro filho, retrucou Valério, assim como vos confiei a palavra de Deus, assim também vos encarrego de responder pela fé que aqui sustentamos. Vicente, então, declarou que eram ambos cristãos e prontos a tudo padecer pelo único e verdadeiro Deus, e por Cristo. Daciano, encolerizado, condenou o bispo ao exílio, e submeteu Vicente à tortura.
Em primeiro lugar, mandou que o pusessem no cavalete, e ordenou aos verdugos lhe puxassem os pés e as mãos com cordas, o que eles fizeram com tal violência, que lhe deslocaram os ossos. A tal tortura, acrescentaram-lhe unhas de ferro. Entretanto, São Vicente ria-se dos verdugos, e lhes censurava a falta de força e coragem. Contudo, teve o santo alguns momentos de descanso, enquanto os verdugos eram esbordoados por ordem de Daciano que deles desconfiava. Não tardaram, porém, em voltar, resolvidos plenamente satisfazer a barbaridade do amo, que os instigava por todos os meios possíveis. Ademais, por duas vezes interromperam as torturas, a fim de descansar e de tornarem mais vivas as dores do mártir, deixando que as chagas se esfriassem.
Em seguida, animados de nova fúria, recomeçaram, rasgaram-lhe todas as partes do corpo com tal desumanidade que, em vários pontos, se viam os ossos e as entranhas. Daciano manifestava a ira pelos violentos tremores do corpo, pelos olhos brilhantes, pela voz entrecortada.
O mártir, sorrindo, disse-lhe: “Eis aqui o que se lê alhures: os que vêem não verão, os que ouvem não ouvirão, pois eu confesso a Cristo, Senhor, Filho do Altíssimo, do Pai, Filho único de um Pai único; e confesso que é um só e o mesmo Deus com o Pai e o Espírito Santo. Confesso a verdade, e tu asseguras que a nego. Sem dúvida, deverias atormentar-me se mentisse, se chamasse deuses os teus príncipes.
Atormenta-me ainda mais, não cesses, para que possas ao menos, dessa maneira, com o teu espírito, por mais sacrílego que seja, respirar a verdade assim experimentada, e reconhecer em mim o seu invencível confessor. Quanto aos deuses que queres que eu reconheça, são ídolos de pedra e de madeira. Torna-te tu, se assim o desejas, mártir deles, torna-te o pontífice morte de mortas divindades; quanto a mim, sacrifico ao único Deus vivo, abençoado em todos os séculos.”
Confessou-se Daciano vencido, e foi como se a raiva lhe desaparecesse um pouco. Mandou cessar a tortura na esperança de que pelos caminhos da doçura obtivesse, talvez, o fim almejado. “Apiada-te de ti próprio, disse a Vicente; sacrifica aos deuses ou pelo menos dá-me as Escrituras dos cristãos, segundo os últimos éditos que ordenam sejam queimadas.” A única resposta do mártir foi que temia muito menos a tortura que a falsa compaixão.
Daciano, mais furioso do que nunca, condenou-o ao suplício do fogo, o mais cruel. Vicente, insaciável de sofrimento, montou sem hesitar no instrumento do suplício. Tratava-se de um leito de ferro, cujas barras, feitas em forma de foice e guarnecidas de pontas agudíssimas, ficavam por cima de um braseiro ardente. Estenderam e amarraram o santo no leito. Todas as partes do seu corpo que não se encontravam voltadas para o lado do fogo, foram dilaceradas a chicotadas e queimadas com lâminas incandescentes.
Lançaram-lhe sal nas chagas. Torturaram-lhe, em seguida, da mesma maneira as diversas partes do corpo, e por repetidas vezes. A gordura, que se derretia de todos os lados, servia de alimentos às chamas.
O juiz, confuso e arrebatado de cólera, já se não dominava. Perguntava sempre aos ministros da sua crueldade o que fazia, o que dizia Vicente: “Continua o mesmo, respondiam-lhe; persiste na primeira resolução; dir-se-ia que os tormentos só lhe aumentam e firmam a constância.” Com efeito o invencível mártir nada perdia da soberana tranqüilidade. Limitava-se a erguer os olhos para o céu e a conversar, interiormente, com Deus, por meio de constante oração.
Sabedor do que se havia passado, Daciano, querendo tirar-lhe a glória de morrer no tormento, mandou que o colocassem num fofo leito, para deixá-lo repousar e, depois, atormentá-lo de novo. Acudiram os fiéis da cidade; beijaram-lhe as chagas e enxugaram-nas com panos, para conservar aquele sangue, benção da família deles. O mártir, mal se viu no leito, morreu.
Daciano ordenou fosse o corpo atirado a um campo, para que os animais o comessem; mas um corvo o defendeu das demais aves, e até expulsou um lobo que pretendia aproximar-se. Daciano, então mandou que lançassem aquele corpo em alto mar, metido num saco e preso numa pedra. Mais uma vez malogrou o intento governador; o saco foi repelido para a praia. O mártir, aparecendo, a um santo varão, declarou-lhe que chegara à terra, e mostrou-lhe o lugar. Hesitando o santo varão, duvidoso da verdade da visão, uma santa viúva foi também avisada, em sonho, do lugar em que o corpo se achava coberto pela areia; contou aquilo a vários cristãos, e guiando-os, descobriram o santo corpo e levaram-no a uma igrejinha, em que o sepultaram. (1) (Livro Vida dos Santos, Padre Rohrbacher, Volume II, p. 100 à 104)