Há mister confessar que nestes últimos tempos cresceu sobremaneira o número dos inimigos da Cruz de Cristo, os quais, com artifícios de todo ardilosos, se esforçam por baldar a virtude vivificante da Igreja e solapar pelos alicerces, se dado lhes fosse, o mesmo Reino de Jesus Cristo. Por isto já não nos é lícito calar para não parecer faltarmos ao nosso santíssimo dever […].
E visto que os modernistas (tal é o nome com que vulgarmente e com razão são chamados) com astuciosíssimo engano costumam apresentar suas doutrinas não coordenadas e juntas como um todo, mas dispersas e como separadas umas das outras, a fim de serem tidos por duvidosos e incertos, ao passo que de fato estão firmes e constantes, convém, Veneráveis Irmãos, primeiro exibirmos aqui as mesmas doutrinas em um só quadro, e mostrar- -lhes o nexo com que formam entre si um só corpo, para depois indagarmos as causas dos erros e prescrevermos os remédios para debelar-lhes os efeitos perniciosos. […],
Os dogmas seriam expressões inadequadas da fé
Assim pois, na doutrina dos modernistas, chegamos a um dos pontos mais importantes, que é a origem e mesmo a natureza do dogma. A origem do dogma, põem-na eles, pois, naquelas primitivas fórmulas simples que, debaixo de certo aspecto, devem considerar-se como essenciais à fé, já que a revelação, para ser verdadeiramente tal, requer uma clara aparição de Deus na consciência. O mesmo dogma, porém, ao que parece, é propriamente constituído pelas fórmulas secundárias. Mas, para bem se conhecer a natureza do dogma, é preciso primeiro indagar que relações há entre as fórmulas religiosas e o sentimento religioso.
Não haverá dificuldade em o compreender, para quem já tiver como certo que estas fórmulas não têm outro fim senão o de facilitarem ao crente um modo de dar razão da própria fé. De sorte que essas fórmulas são como que umas intermediárias entre o crente e a sua fé; com relação à fé, são expressões inadequadas do seu objeto e pelos modernistas se denominam símbolos; com relação ao crente, reduzem- se a meros instrumentos. […]
Novo sistema baseado em doutrinas ocas, fúteis e incertas
Assim, pois, temos o caminho aberto à íntima evolução do dogma. Eis aí um acervo de sofismas que subvertem e destroem toda a Religião! Ousadamente afirmam os modernistas, e isto mesmo se conclui das suas doutrinas, que os dogmas não somente podem, mas positivamente devem evoluir e mudar-se. […]
Ora, sendo assim mutável o valor e a sorte das fórmulas dogmáticas, não é de admirar que os modernistas tanto as escarneçam e desprezem, e que, por conseguinte, só reconheçam e exaltem o sentimento e a vida religiosa. Por isto, com o maior atrevimento criticam a Igreja, acusando-a de caminhar fora da estrada e de não saber distinguir entre o sentido material das fórmulas e sua significação religiosa e moral, e ainda mais, agarrando- se obstinadamente, mas em vão, a fórmulas falhas de sentido, de deixar a própria Religião rolar no abismo.
Cegos, na verdade, a conduzirem outros cegos, são esses homens que, inchados de orgulhosa ciência, deliram a ponto de perverter o conceito de verdade e o genuíno conceito religioso, divulgando um novo sistema, com o qual, arrastados por desenfreada mania de novidades, não procuram a verdade onde certamente se acha; e, desprezando as santas e apostólicas tradições, apegam-se a doutrinas ocas, fúteis, incertas, reprovadas pela Igreja, com as quais homens estultíssimos julgam fortalecer e sustentar a verdade.
Uma “doutrina da experiência” que abre caminho para o ateísmo
Assim pensa o modernista como filósofo. Agora, passando a considerá-lo como crente, se quisermos conhecer de que modo, no modernismo, o crente difere do filósofo, convém observar que, embora o filósofo reconheça por objeto da fé a realidade divina, contudo esta realidade não se acha noutra parte senão na alma do crente, como objeto de sentimento e afirmação; porém, se ela em si mesma existe ou não fora daquele sentimento e daquela afirmação, isto não importa ao filósofo. Se, porém, procurarmos saber que fundamento tem esta asserção do crente, respondem os modernistas: é a experiência individual. Com esta afirmação, enquanto na verdade discordam dos racionalistas, caem na opinião dos protestantes e dos pseudomísticos.
Eis como eles o declaram: no sentimento religioso deve reconhecer- -se uma espécie de intuição do coração, que pôs o homem em contato imediato com a própria realidade de Deus e lhe infunde tal persuasão da existência d’Ele e da sua ação, tanto dentro como fora do homem, que excede a força de qualquer persuasão que a ciência possa adquirir. Afirmam, portanto, uma verdadeira experiência, capaz de vencer qualquer experiência racional; e se esta for negada por alguém, como pelos racionalistas, dizem que isto sucede porque estes não querem pôr-se nas condições morais que são necessárias para consegui-la.
Ora, tal experiência é a que faz própria e verdadeiramente crente a todo aquele que a conseguir. Quanto vai dessa à doutrina católica! Já vimos essas ideias condenadas pelo Concílio Vaticano I. Veremos ainda como, com semelhantes teorias, unidas a outros erros já mencionados, se abre caminho para o ateísmo. Cumpre, entretanto, notar desde já que, posta esta doutrina da experiência unida à outra do simbolismo, toda religião, não excetuada sequer a dos idólatras, deve ser tida por verdadeira. […]
Fica aberta a estrada para contradizer os Concílios
Estas coisas tornar-se-ão ainda mais claras, tendo-se em vista o procedimento dos modernistas, de todo conforme com o que ensinam. Nos seus escritos e discursos parecem, não raro, sustentar ora uma ora outra doutrina, de modo a facilmente parecerem vagos e incertos. Fazem-no, porém, de caso pensado; isto é, baseados na opinião que sustentam, da mútua separação entre a Fé e a ciência.
É por isto que nos seus livros muitas coisas se encontram das aceitas pelos católicos; mas, ao virar a página, outras se veem que pareceriam ditadas por um racionalista. Escrevendo, pois, História, nenhuma menção fazem da divindade de Cristo; ao passo que, pregando nas igrejas, com firmeza a professam.
Da mesma sorte, na História não fazem o menor caso dos Padres nem dos Concílios; nas instruções catequéticas, porém, citam-nos com respeito. Distinguem, portanto, outrossim a exegese teológica e pastoral da exegese científica histórica. Mais ainda: fundados no princípio que a ciência em nada depende da Fé, quando tratam de Filosofia, de História, de crítica, não sentindo horror de pisar nas pegadas de Lutero (cf. Prop. 29 condenada por Leão X, Bula Exurge Domine, de 16 de maio de 1520: “Temos aberta a estrada para enfrentar a autoridade dos Concílios e para contradizer à vontade as suas deliberações, e julgar os seus decretos e manifestar às claras tudo o que nos parece verdade, seja embora aprovado ou condenado por qualquer Concílio”), ostentam certo desprezo das doutrinas católicas, dos Santos Padres, dos Concílios Ecumênicos, do Magistério Eclesiástico; e se forem por isto repreendidos, queixam-se de que se lhes tolhe a liberdade.
Finalmente, professando que a Fé há de sujeitar-se à ciência, continuamente e às claras criticam a Igreja, porque irredutivelmente se recusa a acomodar os seus dogmas às opiniões da Filosofia, e eles, por sua vez, posta de parte a velha Teologia, empenham- se por divulgar uma nova, toda amoldada aos desvarios dos filósofos. (Revista Arautos do Evangelho, Setembro/2017, n. 189, pp. 6 à 7)
São Pio X. Excerto da Encíclica “Pascendi Dominici gregis”, 8/9/1907