Qual é exatamente o significado da solenidade de hoje, do Corpo e do Sangue de Cristo?
A própria celebração que estamos realizando no-lo diz, no desenvolvimento dos gestos fundamentais: antes de tudo reunimo-nos em volta do altar do Senhor, para estar na sua presença; em segundo lugar faremos a procissão, isto é, o caminhar com o Senhor; e por fim, o ajoelharmo-nos diante do Senhor, a adoração, que já inicia na Missa e acompanha toda a procissão, mas tem o seu ápice no momento final da bênção eucarística, quando todos nos prostraremos diante d’Aquele que Se inclinou até nós e deu a vida por nós. […]
“Todos vós sois um só em Cristo”
Portanto, o primeiro ato é o de reunir-se na presença do Senhor. É o que antigamente se chamava statio.
Imaginemos por um momento que em toda a cidade de Roma haja só este único altar, e que todos os cristãos da cidade sejam convidados a reunir-se aqui, para celebrar o Salvador morto e ressuscitado. Isto dá-nos a ideia daquilo que foi, nas origens, a Celebração Eucarística em Roma, e em muitas outras cidades onde chegava a mensagem evangélica: havia em cada Igreja particular um só Bispo e à sua volta, em volta da Eucaristia por ele celebrada, constituía-se a comunidade, única porque era uno o Cálice abençoado e um o Pão partido, como ouvimos das palavras do Apóstolo Paulo na segunda leitura (cf. I Cor 10, 16-17).
Vem à mente a outra célebre expressão paulina: “Não há judeu nem grego; não há servo nem livre, não há homem nem mulher, pois todos vós sois um só em Cristo” (Gal 3, 28). “Todos vós sois um só”! Sente-se nestas palavras a verdade e a força da revolução cristã, a revolução mais profunda da História humana, que se experimenta precisamente em volta da Eucaristia: reúnem-se aqui na presença do Senhor pessoas diversas por idade, sexo, condição social, ideias políticas.
A Eucaristia nunca pode ser um fato privado, reservado a pessoas que se escolheram por afinidades ou por amizade. A Eucaristia é um culto público, que nada tem de esotérico, de exclusivo. Também aqui, esta tarde, não fomos nós que escolhemos com quem nos encontrarmos, viemos e encontramo-nos uns ao lado dos outros, irmanados pela fé e chamados a tornarmo-nos um único corpo partilhando o único Pão que é Cristo.
Bento XVI durante a procissão de Corpus Christi, 7/6/2007 |
Estamos unidos independentemente das nossas diferenças de nacionalidade, de profissão, de camada social, de ideias políticas: abrimo-nos uns aos outros para nos tornarmos um só a partir d’Ele. Foi esta, desde os inícios, uma característica do Cristianismo realizada visivelmente em volta da Eucaristia, e é necessário vigiar sempre para que as tentações frequentes de individualismo, mesmo se em boa-fé, de fato não vão em sentido oposto. Portanto, o Corpus Christi recorda-nos antes de tudo isto: que ser cristãos significa reunir-se de todas as partes para estar na presença do único Senhor e tornar-se n’Ele um só.
Deus Se coloca ao nosso lado e nos indica a direção
O segundo aspecto constitutivo é o caminhar com o Senhor. É a realidade manifestada pela procissão, que viveremos juntos depois da Santa Missa, quase como um seu prolongamento natural, movendo-nos atrás d’Aquele que é a Via, o Caminho.
Com a doação de Si mesmo na Eucaristia, o Senhor Jesus liberta-nos das nossas “paralisias”, faz-nos levantar e faz-nos “pro-cedere”, isto é, faz-nos dar um passo em frente, e depois outro, e assim põe-nos a caminho, com a força deste Pão da Vida. […] A procissão do Corpus Christi ensina-nos que a Eucaristia nos quer libertar de qualquer abatimento e desencorajamento, quer fazer-nos levantar, para que possamos retomar o caminho com a força que Deus nos dá mediante Jesus Cristo. É a experiência do povo de Israel no êxodo do Egito, a longa peregrinação através do deserto, da qual nos falou a primeira leitura. Uma experiência que para Israel é constitutiva, mas resulta exemplar para toda a humanidade.
De fato, a expressão “nem só de pão vive o homem, mas… de tudo o que sai da boca do Senhor” (Dt 8, 3) é uma afirmação universal, que se refere a todos os homens enquanto homens. Cada um pode encontrar o próprio caminho, se encontrar Aquele que é Palavra e Pão de Vida e se deixar guiar pela sua presença amiga. Sem o Deus-conosco, o Deus próximo, como podemos enfrentar a peregrinação da existência, quer individualmente quer em comunidade e família de povos? A Eucaristia é o Sacramento do Deus que não nos deixa sozinhos no caminho, mas Se coloca ao nosso lado e nos indica a direção.
De fato, não é suficiente ir em frente, é preciso ver para onde se vai! Não é suficiente o “progresso”, se não há critérios de referência. Aliás, se se andar fora do caminho, corre-se o risco de cair num precipício, ou contudo de se afastar mais rapidamente da meta. Deus criou-nos livres, mas não nos deixou sozinhos: Ele mesmo Se fez “via” e veio caminhar juntamente conosco, para que a nossa liberdade tenha também o critério para discernir o caminho justo e percorrê-lo.
O remédio mais válido e radical contra as idolatrias
E a este ponto não se pode deixar de pensar no início do Decálogo, os Dez Mandamentos, onde está escrito: “Eu sou o Senhor, teu Deus, que te fez sair do Egito, de uma casa de escravidão. Não terás outro Deus além de Mim” (Ex 20, 2-3). Encontramos aqui o sentido do terceiro elemento constitutivo do Corpus Christi: ajoelhar-se em adoração diante do Senhor. Adorar o Deus de Jesus Cristo, que Se fez Pão repartido por amor, é o remédio mais válido e radical contra as idolatrias de ontem e de hoje.
Ajoelhar-se diante da Eucaristia é profissão de liberdade: quem se inclina a Jesus não pode e não deve prostrar-se diante de nenhum poder terreno, mesmo que seja forte. Nós, cristãos, só nos ajoelhamos diante do Santíssimo Sacramento, porque nele sabemos e acreditamos que está presente o único Deus verdadeiro, que criou o mundo e o amou de tal modo que lhe deu o seu Filho único (cf. Jo 3, 16).
Prostramo-nos diante de um Deus que foi o primeiro a inclinar-Se diante do homem, como Bom Samaritano, para o socorrer e dar a vida, e ajoelhou-Se diante de nós para lavar os nossos pés sujos. Adorar o Corpo de Cristo significa crer que ali, naquele pedaço de pão, está realmente Cristo, que dá sentido verdadeiro à vida, ao imenso universo como à menor criatura, a toda a História humana e à existência mais breve. A adoração é a oração que prolonga a celebração e a Comunhão Eucarística na qual a alma continua a alimentar-se: alimenta-se de amor, de verdade, de paz; alimenta-nos de esperança, porque Aquele diante do qual nos prostramos não nos julga, não nos esmaga, mas liberta-nos e transforma-nos.
Eis por que reunir-nos, caminhar, adorar nos enche de alegria. Fazendo nossa a atitude adorante de Maria, que neste mês de maio recordamos de modo particular, rezemos por nós e por todos; rezemos por todas as pessoas que vivem nesta cidade, para que Te possam conhecer, ó Pai, e Àquele que Tu enviaste, Jesus Cristo. E desta forma ter a vida em abundância. Amém. (Revista Arautos do Evangelho, Junho/2019, n. 210, p. 06-07)
Bento XVI. Excertos da Homilia na Solenidade de Corpus Christi, 22/5/2008