A Eucaristia tem uma íntima ligação com a vocação de todo batizado: evangelizar.
Redação (17/09/2020 10:13, Gaudium Pre ss) “Sem o domingo não podemos viver!” – declararam os mártires de Abitinas aos juízes do Império Romano. “No início do século IV, quando o culto cristão era ainda proibido pelas autoridades imperiais, alguns cristãos do norte da África, que se sentiam obrigados a celebrar o dia do Senhor, desafiaram tal proibição. Foram martirizados enquanto declaravam que não lhes era possível viver sem a Eucaristia, alimento do Senhor: Sine dominico non possumus – sem o domingo, não podemos viver” (Sacramentum Caritatis n. 95).
Com este belo exemplo, quis o Papa Emérito Bento XVI ressaltar a devoção ardorosa dos primeiros cristãos à Eucaristia, apesar das dificuldades e riscos daquela época, e estimular-nos a imitá-los: “Exorto todos os leigos, e as famílias em particular, a encontrarem continuamente no sacramento do amor de Cristo a energia de que precisam para transformar a própria vida num sinal autêntico da presença do Senhor ressuscitado. Peço a todos os consagrados e consagradas para manifestarem, com a própria existência eucarística, o esplendor e a beleza de pertencer totalmente ao Senhor” (idem n. 94).
Como é diferente, hoje, a nossa situação no Ocidente, comparada com a dos primórdios da Cristandade! Talvez o maior risco que sejamos obrigados a enfrentar, para cumprir o preceito dominical, seja o de não conseguir fazer coincidir nossas conveniências pessoais com o horário da Missa. Ou o ter de suportar alguns minutos de automóvel para chegar até a igreja mais próxima. E sobretudo agora por terem ficado um período impossibilitados de frequentar as igrejas devido a esta pandemia, alguns fieis podem deixar de dar o devido valor ao mais sublime dos sacramentos.
Porém, as dificuldades deveriam sempre aumentar nosso fervor. De fato, foi o que se passou nos primeiros séculos do Cristianismo. Como era arriscado, em épocas de grandes perseguições, participar do banquete eucarístico! No entanto, essas circunstâncias, tão adversas, contribuíam para ressaltar o valor infinito da Eucaristia, naquelas primeiras comunidades de cristãos. Eles bem sabiam que era no Pão Eucarístico que eles encontravam forças para cumprir sua missão evangelizadora na sociedade pagã e, tantas vezes, dar testemunho de Cristo com o derramamento do próprio sangue.
Quando se fala nas Missas da primeira era do Cristianismo, logo nasce o interesse de conhecer como e onde eram celebradas. Com frequência se pensa que os cristãos só se congregavam nas catacumbas, parecendo até que essas estreitas galerias subterrâneas, onde eram enterrados os mortos, tivessem sido escavadas com a finalidade quase exclusiva de praticar o culto em segurança.
Nas épocas de perseguição mais sangrenta, certamente eram as catacumbas os lugares de reunião. Mas, quando o furor persecutório dos imperadores romanos amainava, a vida voltava a uma relativa normalidade, e eram as residências dos próprios cristãos que serviam de igreja.
Evidentemente, eram escolhidas as casas mais amplas, que pessoas abastadas cediam para a celebração do culto divino. Ainda hoje, os alicerces de algumas basílicas romanas conservam vestígios da antiga vivenda que desempenhou outrora a função de templo sagrado.
A própria disposição interna dos cômodos das residências ricas se prestava providencialmente a esse objetivo, pois nelas havia uma nítida separação entre a parte pública e a área íntima. E as primeiras igrejas construídas conservavam ainda uma distribuição de salões semelhante à dessas casas.
No pátio se reuniam os fiéis. Os catecúmenos, que não participavam de toda a liturgia da Missa, podiam ficar no vestíbulo. E a refeição eucarística podia ser celebrada no triclinium ou sala de jantar.
Os cristãos se encontravam no sábado, ao cair da tarde, para a vigília pela qual se preparavam, por meio de preces e da recitação de salmos, para celebrar a ressurreição do Senhor. A Celebração Eucarística iniciava-se à meia-noite e encerrava-se com os primeiros fulgores da aurora. A nossa vigília pascal ainda é uma reminiscência dos tempos apostólicos.
Para finalizar a cerimônia, o diácono proclamava, tal como hoje: “Ite, missa est”. O termo Missa, com o qual se denomina atualmente a Celebração Eucarística, tem aí sua origem.
Bento XVI assim comentou o significado mais profundo desse último diálogo litúrgico: “Nesta saudação, podemos identificar a relação entre a Missa celebrada e a missão cristã no mundo. Na Antiguidade, o termo ‘missa’ significava simplesmente ‘despedida’; mas, no uso cristão, o mesmo foi ganhando um sentido cada vez mais profundo, tendo o termo ‘despedir’ evoluído para ‘expedir em missão’. Deste modo, a referida saudação exprime sinteticamente a natureza missionária da Igreja” (idem n. 51).
Esse aspecto missionário da sua vocação de batizados, tinham-no bem presente os cristãos dos primeiros séculos. O “ite missa est” proferido pelo diácono era um verdadeiro mandato, cumprido zelosamente no dia-a-dia, muitas vezes com o sacrifício da própria vida. Para eles, a missão na sociedade pagã era uma decorrência da Missa.
Um jovem acólito[1] romano, Tarcísio, protomártir da Eucaristia, é um exemplo sublime dessa continuidade entre a Missa e a missão evangelizadora. Certamente, foi ao final de uma Missa, já perto do despontar da aurora, que ele recebeu uma importante missão do celebrante, talvez o próprio Sumo Pontífice: levar a seus irmãos encarcerados o Pão Eucarístico.
Na véspera do “combate” com as feras, era concedido aos condenados à morte na arena do Coliseu um certo abrandamento do regime carcerário, e eles podiam receber visitas. Os cristãos aproveitavam essas circunstâncias para levarem Jesus Sacramentado aos que iam travar o supremo “combate”, dando testemunho de Cristo com o sacrifício da própria vida.
Ao receber das mãos do sacerdote a Eucaristia, envolta em tecidos preciosos, Tarcício deve ter sentido no mais profundo da alma um sobressalto de alegria: estava sendo convocado para arriscar sua jovem vida por Cristo! E, sem dúvida, sentiu também no seu interior o desejo intensíssimo de imitar aqueles que no dia seguinte iriam enfrentar o martírio, por amor a Deus. Guardou cuidadosamente no interior de sua túnica o inapreciável tesouro que acabava de lhe ser confiado e partiu em missão: “Ite, missa est”.
Não se sabe com segurança o fator pelo qual se tornou descoberta a missão de Tarcísio. Talvez a alegria sobrenatural que transparecia de seu rosto, a limpidez de seu olhar virginal ou a pressa de alcançar o objetivo o tenham denunciado.
O certo é que ele foi interceptado por um grupo de pagãos que desconfiaram de suas intenções e suspeitaram que fosse cristão. Tarcísio preferiu morrer apedrejado a permitir que o Corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo fosse profanado pelos pagãos. Seu martírio é descrito, pelo Papa São Dâmaso, com a característica concisão latina, na lápide de seu túmulo, comparando-o a Santo Estevão.
A nós, não nos é solicitado arriscar a vida, pelo martírio, para cumprirmos nossa missão evangelizadora no mundo, como a Tarcísio, mas podemos pedir que ele, “juntamente com muitos outros santos e beatos que fizeram da Eucaristia o centro da sua vida, intercedam por nós e nos ensinem a fidelidade ao encontro com Cristo ressuscitado! Também nós não podemos viver sem participar no sacramento da nossa salvação e desejamos ser iuxta dominicam viventes, isto é, traduzir na vida o que celebramos no dia do Senhor” (Sacramentum caritatis n. 95).
Texto extraído, com adaptações, da Revista Arautos do Evangelho, Nov/2007, n. 71, p 22 à 24. Pe. Caio Newton de Assis Fonseca, E.P.
[1] Outros afirmam ter sido diácono.