Há um princípio de vida espiritual que raramente falha na História: "Nemo summo fit repenter" - nada de muito grande se faz repentinamente. Assim, da mesma forma que o Sol demora em alcançar o seu zênite após raiar o dilúculo, as culturas e civilizações não nascem de forma abrupta. Elas vão se desenvolvendo progressivamente ao longo de um processo que pode demorar séculos até alcançar o seu auge, como ocorreu com o Império Romano ou com as principais nações europeias, ou ainda com instituições-chave como as universidades.
Nessa perspectiva, é apaixonante conhecer como se desenvolveu desde os tempos apostólicos uma instituição sem a qual a Igreja de hoje se sentiria incompleta: o monaquismo cristão.
Como surgiu ele? Em que lugar? Quais foram as almas decisivas que modelaram esse estilo de vida? É o que veremos, muito resumidamente, ao longo destas linhas.
Uma primitiva forma de tender à perfeição
Os primeiros embriões do monaquismo cristão são identificados por alguns nas antigas comunidades essênias, nas quais era praticada a virgindade e uma certa forma de vida em comum. Tais rudimentos de vida cenobítica, entretanto, somente podem ser considerados uma prefigura da vida monástica nascida com a Redenção.
"Se alguém quer seguir-Me, renuncie-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-Me" (Mc 8, 34), afirmou o Divino Mestre. "Sede perfeitos como vosso Pai celeste é perfeito" (Mt 5, 48), recomendou mais tarde. "Quem ama seu pai ou sua mãe mais que a mim, não é digno de Mim; quem ama seu filho mais que a Mim, não é digno de Mim" (Mt 10, 37), advertiu noutra ocasião.
Fiéis a esses ensinamentos, alguns dos primeiros discípulos de Nosso Senhor sentiam-se chamados a segui-Lo por uma via mais elevada, começando pela prática radical da virtude angélica. "Nas primitivas comunidades cristãs", explica o teólogo dominicano padre Antonio Royo Marín, "a mais difundida e admirada forma de tender à perfeição era a prática da perfeita castidade, livremente abraçada por certo número de cristãos de ambos os sexos. [...] Formavam um grupo à parte e eram tratados com veneração e respeito nas assembleias cristãs".1
Mas esses incipientes consagrados continuavam morando com a respectiva família, participando da vida social comum. E paulatinamente foram se submetendo a regras precisas: deviam evitar saídas inúteis, rezar em horas determinadas, jejuar, dar esmolas, visitar e prestar serviços aos enfermos. Depois começaram os exercícios de vida comum: reuniam-se numa casa para recitar os salmos ou ler os textos sagrados.
O que lhes faltava para se tornarem monges e monjas, no pleno sentido do termo? Apenas um passo, afirma Royo Marín. "Pouco a pouco formaram o projeto de despojar-se de todos os seus bens, abandonar a família e retirar-se à solidão. Ali, na mais completa pobreza, ao abrigo dos perigos do século, não se ocupariam senão de Deus e de sua eterna salvação".2
Os eremitas e a origem da vida cenobítica
Etimologicamente, a palavra monge provêm do grego μοναχ?ς (monacos) usado para designar o religioso solitário que hoje chamamos de eremita, ermitão ou anacoreta. Exemplos desse gênero de vida encontramos em Santo Antão, que viveu isolado durante décadas no deserto, ou São Simeão Estilita, que passou mais de 40 anos no alto de uma coluna, perto da atual Alepo, na Síria.
Ora, por mais que varões como eles fugissem do convívio humano para estarem a sós com Deus, sua fama de santidade atraia-lhes discípulos. Surgiram assim os primeiros cenóbios nos quais se agrupavam vários μοναχ?ς para se santificarem sob a direção e orientação de um pai espiritual: o abade. E daí também a origem da palavra monastério, proveniente do termo helênico μοναστ?ριον (monasterion).
O primeiro desses eremitas registrado pela História é um jovem de origem egípcia chamado Paulo, que fugiu para o deserto da Tebaida a fim de escapar da cruel perseguição do Imperador Décio e ali permaneceu até sua morte.3 Não pensemos, entretanto, que foi o desejo de fugir da perseguição o fator mais importante no nascimento desse novo estilo de vida: "O que vai incitar homens e mulheres a afastar-se do mundo", afirma o historiador Daniel-Rops, "é a Palavra de Cristo, quando convida os fiéis a deixar tudo a fim de segui-Lo e mortificarem a carne para alcançarem a vida eterna".4
Santo Antão atrai milhares de discípulos
Ainda vivia São Paulo de Tebas quando, por volta do ano 270, um jovem de 20 anos caminhava às pressas num pequeno povoado do Alto Egito rumo ao local onde os cristãos celebravam a Eucaristia. Chegou atrasado, justo no momento emque o leitor proclamava estas palavras do Evangelho: "Vai, vende tudo o que tens e dá-o aos pobres e terás um tesouro no Céu. Depois, vem e segue-Me" (Mc 10, 21).
Profundamente tocado pela graça, Antão - esse era o seu nome - tirou no mesmo instante a conclusão: "Isto foi dito para mim". Homem de fé e retidão de alma, não deixou para depois o que devia fazer de imediato: distribuiu entre os pobres sua grande fortuna e recolheu-se numa pequena ermida, nas proximidades de sua aldeia natal, onde se entretinha com Deus, a solis ortu usque ad occasum - do nascer do Sol até o ocaso.
Em razão das visitas cada vez mais frequentes, teve de mudar-se para uma montanha situada em pleno deserto. Quanto mais, porém, se isolava, mais era procurado: sua morada logo se viu rodeada de homens que pediam para ser recebidos como discípulos. E se formou em torno dele uma colônia de ermitões que viviam isolados ou em pequenos grupos.
Sua fama se espalhou, o exemplo de sua vida suscitou imitadores em toda a região e assim, quando o santo abade faleceu no ano 356, aos 105 anos de idade, os desertos do Egito estavam povoados de monges, entre os quais não se pode deixar de mencionar São Macário o Grande, São Nilo o Sinaíta e Santo Efrém de Nísibe, declarado Doutor da Igreja pelo Papa Bento XV. Necessário era, porém, alguém que organizasse em mosteiros esses milhares de ermitões,5 dando-lhes uma regra de vida conforme aos ensinamentos evangélicos. Para essa missão, o Espírito Santo suscitou São Pacômio.
São Pacômio cria os primeiros cenóbios
Corria o ano 313 quando um jovem de 21 anos, ex-soldado das legiões imperiais, foi perturbar o recolhimento de Palemôn, um dos primeiros anacoretas da Tebaida.
- Que queres? - perguntou o eremita, olhando-o através de uma estreita janela.
- Rogo-te que faças de mim um monge.
- O serviço de Deus não é coisa fácil; muitos aqui vieram e não resistiram - objetou Palemôn.
- Põe-me à prova e verás - insistiu o jovem.
- Dura é minha vida. Jejuo diariamente no verão. No inverno, como apenas a cada três dias. Meu alimento é pão e sal. Não tomo vinho. Passo a metade da noite meditando e rezando, por vezes a noite inteira...
- Espero, com a ajuda de Deus e de tuas orações, praticar tudo quanto me dizes.
À vista de tanta decisão e humildade, Palemôn abriu a porta e o recebeu como discípulo. Pacômio passou quase 20 anos junto a seu mestre, aperfeiçoando-se na prática da vida eremítica. Às vezes recitavam juntos o saltério, outras vezesocupavam-se em algum trabalho manual, sem nunca deixar de orar mentalmente.
Por volta do ano 320 Pacômio fundou o primeiro cenóbio, isto é, um mosteiro onde os monges viviam em comunidade, subordinados ao abade. Logo viu-se obrigado a fundar outros e mais outros, tão grande era o número de jovens que acorriam de todas as partes, solicitando admissão. Ninguém, entretanto, era recebido sem ser submetido a rigorosas provas num período de noviciado.
Uma vez admitido, tratava-se de progredir sempre nas vias da perfeição. Visando essa meta, o programa era o mesmo para todos: "Estabelecia-se a mais estrita pontualidade, rigoroso silêncio, determinadas orações. Tudo isso baseado na guarda da mais perfeita castidade, pobreza e obediência aos superiores, além da prática de rigorosas penitências".6
Esse rigor, em vez de afastar, atraía tanto novas vocações que, em pouco tempo seus numerosos mosteiros constituíam o que hoje se chama uma Ordem religiosa, com sete mil monges! Sem contar dois mosteiros femininos, fundados por ele a pedido de sua irmã, nos quais habitavam 400 monjas. Esse número não parou de crescer após sua morte: em fins do século V eram cerca de 50 mil os que seguiam o exemplo do santo Fundador, em incontáveis mosteiros nas vastidões do Egito.
Esse magnífico crescimento criava, entretanto, um problema: tornava-se necessário organizar com maior precisão as regras da vida monástica estabelecidas por São Pacômio. Para esta nova missão, o Espírito Santo escolheu São Basílio Magno.
São Basílio Magno, o legislador
Basílio nasceu em Cesareia, capital da Capadócia, por volta do ano 329, no seio de uma família de santos. Seu pai era São Basílio, o Velho, sua mãe, Santa Emélia e entre seus nove irmãos contam-se São Gregório de Nissa, São Pedro de Sebaste e Santa Macrina, a Jovem.
Sendo ainda muito novo percorreu o Egito, a Síria e a Mesopotâmia, ficando de tal maneira admirado com a vida dos anacoretas que de volta à sua pátria viveu como monge solitário até 370. Atraídos por sua fama de santidade, numerosos eremitas pediram-lhe que os aceitasse sob sua direção. São Basílio os agrupou então conforme o regime cenobita de São Pacômio, mas com poucos monges em cada casa.
Para favorecer sua formação moral e seu progresso espiritual, escreveu duas regras, a "Grande" e a "Pequena", que lhe valeram o cognome de Legislador do Monaquismo Oriental. Nelas o santo monge, ao mesmo tempo em que suaviza as austeridades corporais, põe a nota tônica na necessidade da perfeita obediência aos superiores. Graças ao impulso dado por ele à vida monacal, os mosteiros basilianos se disseminaram pelo mundo oriental.
E quando, no início do sexto século, começou a brilhar no Ocidente a luz de São Bento de Núrsia, os basilianos constituíam os "monges por excelência" do Oriente.
Surgimento do monaquismo ocidental
Há indícios de que já nos séculos I e II desenvolviam-se na Igreja Ocidental instituições de virgens semelhantes às existentes na Oriental. Mas o monacato propriamente dito chegou ao Ocidente cerca de um século após seu florescimento no Oriente.
O famoso Patriarca de Alexandria, Santo Atanásio, que viveu no século IV, era grande admirador dos anacoretas do Egito. E por ocasião de um de seus cinco desterros, levou consigo a Roma dois desses monges. Sua fé, o exemplo de suas vidas e as eloquentes narrações que faziam da vida de Santo Antão, encheram de admiração os cristãos da Cidade Eterna. Admiração logo seguida de desejo de imitar.
Formaram-se assim instituições monásticas em diversas localidades da atual Itália. Grande propagandista da vida consagrada foi Santo Ambrósio, Bispo de Milão na segunda metade século IV. Pregava com tanta unção sobre a excelência do estado de virgindade, que algumas mães prendiam em casa as filhas para estas não ouvirem o pregador. E quando saiu a público seu livro De Virginitate (Sobre a Virgindade), arrancavam das mãos das filhas o "perigoso" escrito que as levaria a tomar o véu.
Por mais que esses varões fugissem do convívio humano, sua fama de santidade atraía--lhes discípulos |
No norte da África, Santo Agostinho, cuja conversão foi favorecida pela leitura da vida de Santo Antão, desenvolveu uma obra de maior amplitude. Quando, por volta de 391, foi ordenado sacerdote em Hipona, fundou um mosteiro para homens, dirigido por ele próprio. Logo esses monges "se tornaram célebres por sua regularidade e fervor".7 De Hipona irradiou-se para outras regiões africanas a vida monacal.
Além de fundar e proteger mosteiros, ele escreveu a famosa Regra que foi tomada, no decorrer dos séculos, como base para numerosas instituições monásticas. São Domingos de Gusmão, por exemplo, adotou-a para a Ordem dos Pregadores; São Pedro Nolasco, para a dos Mercedários; e São João de Deus, para sua Ordem Hospitalar.
Monacato no mundo gaulês
Entretanto, a região ocidental mais receptiva ao monaquismo foi a Gália.
No século IV, Santo Hilário, Arcebispo de Poitiers, organizou um cenóbio de clérigos na residência episcopal, entre os quais se destacou um jovem entusiasta da vida cenobítica: Martinho, o ex-oficial do exército romano que havia dividido seu manto militar com um mendigo. Convertido em um dos mais ardorosos propagadores da vida mon acal no Ocidente, São Martinho de Tours fundou os mosteiros de Ligugé e Marmoutier e os frutos de sua evangelização foram tão abundantes que, segundo o historiador Daniel-Rops, "dois mil monges assistiram ao seu funeral".8
Em Lérins, o mosteiro fundado no século V por Santo Honorato, na ilha do Mediterrâneo que leva seu nome, acabou por tornar-se um importante centro de cultura religiosa. Ali vão se formar, entre outros, São Cesário de Arlès e São Vicente de Lérins.
Espalhava-se assim, lentamente, o monaquismo pelo mundo ocidental. A grande explosão, entretanto, estava por chegar. Ela foi provocada por quem haveria de ser na Igreja Ocidental o que foram Santo Antão e São Pacômio na Oriental: São Bento de Núrsia.
São Bento, patriarca dos monges do Ocidente
"Houve um varão de vida venerável, Bento não só pela graça, mas também pelo nome. Dotado de um coração varonil desde sua infância, jamais cedeu aos atrativos da volúpia. Podendo, nesta Terra, gozar à vontade dos bens passageiros, desprezou tudo isso como flores ressequidas ao Sol".9 Assim o Papa São Gregório Magno traça o perfil de seu pai espiritual.
Na última década do quinto século, chegava ele a Roma, cheio de esperanças para aprimorar seus estudos. Alojou-se na Domus Aniciorum, faustosa mansão da família dos Anicii, à qual pertencia. Mas, ao constatar o clima de devassidão reinante à época na Urbe imperial, decidiu abandoná-la sem tardança e recolher-se em lugar solitário. Ei-lo, assim, instalado numa gruta da agreste região rochosa de Subiaco, onde iniciou sua vida de ermitão, sob a direção de um anacoreta chamado Romão.
Entretanto, passados alguns anos, já não foi mais possível para ele viver na almejada solidão. "Ante sua fama de santidade, as mais nobres e distintas famílias acorriam a visitá-lo, para confiar-lhe seus filhos".10 Bento organizou essa plêiade de jovens em mosteiros de 12 monges cada um. Em 520, havia já 12 mosteiros, e o número continuava a aumentar. Não tendo ainda uma regra escrita, guiavam-se eles pela regra viva, o Abade fundador.
Invejas e maquinações levaram-no a mudar-se com vários discípulos para Monte Cassino, onde fundou em 529 a famosa abadia da qual se irradiou para todo o mundo ocidental o "espírito beneditino". Ali o Patriarca dos Monges do Ocidente entregou-se por inteiro à formação dos numerosos filhos espirituais que acorriam de toda parte. Intuindo, talvez, os incontáveis mosteiros de sua ordem que haveriam de se espalhar através dos séculos por toda a Terra, escreveu sua famosa Regra monástica (Regula Monachorum), tão sábia e equilibrada "que acabou por impor-se sobre quase todas as outras do mundo inteiro".11
Dentre os milhares de jovens que tudo abandonaram para seguir a via de santidade aberta por São Bento, destacou-se o Papa São Gregório Magno, o biógrafo do santo Fundador. Prefeito de Roma aos 30 anos de idade, renunciou à sua carreira, empregou parte de seus bens em obras de caridade e o restante, na construção de seis mosteiros na Sicília e um em Roma, submetendo-os todos à regra beneditina. "O primeiro Papa monge levou sua concepção monacal à espiritualidade, à liturgia e mesmo ao Pontificado".12
A plenitude das instituições monásticas
Com São Bento, pode-se dizer que o monaquismo ocidental atingiu a maioridade. E ao longo dos séculos, foi ele se desdobrando em novas instituições: Cluny, Cister, as ordens mendicantes e as inúmeras congregações masculinas e femininas que brilham hoje no firmamento da Igreja.
Sábia e equilibrada,a famosa "Regula Monachorum" de São Bento acabou por impor-se sobre quase todas as outras do mundo inteiro |
"São Bento faz brotar água no cimo do monte, a pedido dos monges" - Abadia
do Monte Oliveto Maior (Itália)
Esses valorosos monges e monjas, que tudo abandonam para buscar Deus, têm, entretanto, na ordem profunda dos acontecimentos, uma extraordinária capacidade de mudar os rumos da História.
"Tropas de choque" da Igreja Militante
Fugir do mundo para seguir o autêntico chamado de Deus nunca significou desinteressar-se da sorte daqueles que vivem no mundo. Pelo contrário, anacoretas e cenobitas, fiéis à doutrina de seus mais autorizados mestres espirituais, sentiam-se em plena comunhão tanto com a Igreja quanto com a sociedade humana e criam firmemente que sua vida consagrada inteiramente a Deus e às coisas divinas não era nem podia ser inútil aos seus semelhantes. E tinham razão. O monaquismo antigo prestou, espontânea ou deliberadamente, numerosos e assinalados serviços não só aos seus contemporâneos, mas também às gerações posteriores. [...]
Com demasiada frequência foi o monaquismo cristão considerado como uma retirada, como uma deserção mais ou menos covarde à vista dos combates e perigos da vida. Tem-se insistido amiúde também que a única preocupação do monge solitário era a de seu próprio aperfeiçoamento espiritual, de sua salvação eterna, que era um egoísta. Nada disso corresponde à realidade, como nos adverte H.I. Bell. Os ascetas do deserto - escreveu esse autorizado erudito - não empreendiam suas grandes renúncias e austeridades "num isolamento egoísta, meramente para salvar suas próprias almas; eles oravam pelos demais; poder-se-ia dizer que eram as tropas de choque da Igreja Militante, cujas orações
constituíam uma arma eficaz no longo combate contra o poder das trevas". COLOMBÁS, OSB, García M. El monacato primitivo. 2.ed. Madrid: BAC, 2004, p.351-354. (Revista Arautos do Evangelho, Janeiro/2014, n. 145, p. 18 à 23)