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Voz dos Papas


O que é verdadeiramente a amizade?
 
AUTOR: GAUDIUMPRESS
 
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A amizade não é apenas conhecimento; é, sobretudo, comunhão do querer. Minha vontade, crescendo, une-se à d’Ele: a sua vontade torna-se a minha, e é precisamente assim que me torno eu mesmo de verdade.

Non iam servos, sed amicos” – “Já não vos chamo servos, mas amigos” (cf. Jo 15, 15). Passados sessenta anos da minha Ordenação Sacerdotal, sinto ainda ressoar no meu íntimo estas palavras de Jesus, que o nosso grande Arcebispo, o Cardeal Faulhaber, com voz um pouco débil já, mas firme, nos dirigiu, a nós novos sacerdotes, no final da cerimônia da Ordenação.

Segundo o ordenamento litúrgico daquele tempo, esta proclamação significava então a explícita concessão aos novos sacerdotes do mandato de perdoar os pecados. “Já não sois servos, mas amigos”: eu sabia e sentia que esta não era, naquele momento, apenas uma frase “de cerimônia”; e que era mais do que uma mera citação da Sagrada Escritura. Estava certo disto: neste momento, Ele mesmo, o Senhor, di-la a mim de modo muito pessoal.

O Filho de Deus chama-me amigo e Se entrega a mim

No Batismo e na Confirmação, Ele já nos atraíra a Si, acolhera-nos na família de Deus. Mas o que estava a acontecer naquele momento, ainda era algo mais. Ele chama-me amigo. Acolhe-me no círculo daqueles que receberam a sua palavra no Cenáculo; no círculo daqueles que Ele conhece de um modo muito particular e que chegam assim a conhecê-Lo de modo particular.

Concede-me a faculdade, que quase amedronta, de fazer aquilo que só Ele, o Filho de Deus, pode legitimamente dizer e fazer: Eu te perdoo os teus pecados. Ele quer que eu – por seu mandato – possa pronunciar com o seu “Eu” uma palavra que não é meramente palavra, mas ação que produz uma mudança no mais íntimo do ser.

Sei que, por detrás de tais palavras, está a sua Paixão por nossa causa e em nosso favor. Sei que o perdão tem o seu preço: na sua Paixão, Ele desceu até ao fundo tenebroso e sórdido do nosso pecado. Desceu até à noite da nossa culpa, e só assim esta pode ser transformada. E, através do mandato de perdoar, Ele permite-me lançar um olhar ao abismo do homem e à grandeza do seu padecer por nós, homens, que me deixa intuir a grandeza do seu amor. Diz-me Ele em confidência: “Já não és servo, mas amigo”.

Ele confia-me as palavras da Consagração na Eucaristia. Ele considera-me capaz de anunciar a sua Palavra, de explicá-la retamente e de levá-la aos homens de hoje. Ele entrega-Se a mim. “Já não sois servos, mas amigos”: trata-se de uma afirmação
que gera uma grande alegria interior, mas ao mesmo tempo, na sua grandeza, pode fazer-nos sentir ao longo dos decênios calafrios com todas as experiências da própria fraqueza e da sua bondade inexaurível.

A amizade é uma comunhão do pensar e do querer

“Já não sois servos, mas amigos”: nesta frase está encerrado o programa inteiro duma vida sacerdotal. O que é verdadeiramente a amizade? Idem velle, idem nolle – querer as mesmas coisas e não querer as mesmas coisas, diziam os antigos. A amizade é uma comunhão do pensar e do querer.

O Senhor não Se cansa de nos dizer a mesma coisa: “Conheço os meus e os meus conhecem-Me” (cf. Jo 10, 14). O Pastor chama os seus pelo nome (cf. Jo 10, 3). Ele conhece-me por nome. Não sou um ser anônimo qualquer, na infinidade do universo. Conhece-me de modo muito pessoal. E eu? Conheço-O a Ele? A amizade que Ele me dedica pode apenas traduzir-se em que também eu O procure conhecer cada vez melhor; que eu, na Escritura, nos Sacramentos, no encontro da oração, na comunhão dos Santos, nas pessoas que se aproximam de mim mandadas por Ele, procure conhecer sempre mais a Ele próprio.

A amizade não é apenas conhecimento; é, sobretudo, comunhão do querer. Significa que a minha vontade cresce rumo ao “sim” da adesão à d’Ele. De fato, a sua vontade não é uma vontade externa e alheia a mim mesmo, à qual mais ou menos voluntariamente me submeto ou então nem sequer me submeto. Não! Na amizade, a minha vontade, crescendo, une-se à d’Ele: a sua vontade torna-se a minha, e é precisamente assim que me torno de verdade eu mesmo.

Jesus nos exorta a ir ao encontro dos outros

Além da comunhão de pensamento e de vontade, o Senhor menciona um terceiro e novo elemento: Ele dá a sua vida por nós (cf. Jo 15, 13; 10, 15). Senhor, ajudai-me a conhecer-Vos cada vez melhor! Ajudai-me a identificar-me cada vez mais com a vossa vontade! Ajudai-me a viver a minha existência, não para mim mesmo, mas a vivê-la juntamente convosco para os outros! Ajudai-me a tornar- me sempre mais vosso amigo!

Esta palavra de Jesus sobre a amizade situa-se no contexto do discurso sobre a videira. O Senhor relaciona a imagem da videira com uma tarefa dada aos discípulos: “Eu vos destinei, para que vades e deis fruto e o vosso fruto permaneça” (Jo 15, 16).

A primeira tarefa dada aos discípulos, aos amigos, é pôr-se a caminho – destinei, para que vades -, sair de si mesmos e ir ao encontro dos outros. A par desta, podemos ouvir também a frase que o Ressuscitado dirige aos seus e que aparece na conclusão do Evangelho de Mateus: “Ide fazer discípulos de todas as nações…” (cf. Mt 28, 19).

O Senhor exorta-nos a superar as fronteiras do ambiente onde vivemos e levar ao mundo dos outros o Evangelho, para que permeie tudo e, assim, o mundo se abra ao Reino de Deus. Isto pode trazer-nos à memória que o próprio Deus saiu de Si, abandonou a sua glória, para vir à nossa procura e trazer-nos a sua luz e o seu amor. Queremos seguir Deus que Se põe a caminho, vencendo a preguiça de permanecer cômodos em nós mesmos, para que Ele mesmo possa entrar no mundo.

O fruto que permanece: uma vida segundo a Lei de Deus

Depois da palavra sobre o pôr-se a caminho, Jesus continua: dai fruto, um fruto que permaneça! Que fruto espera Ele de nós? Qual é o fruto que permanece? Sabemos que o fruto da videira são as uvas, com as quais depois se prepara o vinho. Por agora detenhamo-nos sobre esta imagem. Para que as uvas possam amadurecer e tornar-se boas, é preciso o sol, mas também a chuva, o dia e a noite. Para que deem um vinho de qualidade, precisam de ser pisadas, há que aguardar com paciência a fermentação, tem-se de seguir com cuidadosa atenção os processos de maturação.

Características do vinho de qualidade são não só a suavidade, mas também a riqueza das tonalidades, o variegado aroma que se desenvolveu nos processos da maturação e da fermentação. E por acaso não constitui já tudo isto uma imagem da vida humana e, de modo muito particular, da nossa vida de sacerdotes? Precisamos do sol e da chuva, da serenidade e da dificuldade, das fases de purificação e de prova, mas também dos tempos de caminho radioso com o Evangelho.

Num olhar de retrospectiva, podemos agradecer a Deus por ambas as coisas: pelas dificuldades e pelas alegrias, pelas horas escuras e pelas horas felizes. Em ambas reconhecemos a presença contínua do seu amor, que incessantemente nos conduz e sustenta.

Agora, porém, devemos interrogar-nos: de que gênero é o fruto que o Senhor espera de nós? O vinho é imagem do amor: este é o verdadeiro fruto que permanece, aquele que Deus quer de nós. Mas não esqueçamos que, no Antigo Testamento, o vinho que se espera das uvas boas é, sobretudo, imagem da justiça, que se desenvolve numa vida segundo a lei de Deus. E não digamos que esta é uma visão veterotestamentária, já superada. Não! Isto permanece sempre verdadeiro.

A fidelidade a Cristo e à sua Igreja traz consigo o sinal da cruz

O autêntico conteúdo da Lei, a sua summa, é o amor a Deus e ao próximo. Este duplo amor, porém, não é qualquer coisa simplesmente doce; traz consigo o peso da paciência, da humildade, da maturação na educação e assimilação da nossa vontade à vontade de Deus, à vontade de Jesus Cristo, o Amigo. Só deste modo, tornando verdadeiro e reto todo o nosso ser, é que o amor se torna também verdadeiro, só assim é um fruto maduro.

A sua exigência intrínseca, ou seja, a fidelidade a Cristo e à sua Igreja, requer sempre que se realize também no sofrimento. É precisamente assim que cresce a verdadeira alegria. No fundo, a essência do amor, do verdadeiro fruto, corresponde à palavra relativa ao pôr-se a caminho, ao ir: amor significa abandonar-se, dar-se; leva consigo o sinal da cruz. Neste contexto, disse uma vez Gregório Magno: “Se tendeis para Deus, tende cuidado que não O alcanceis sozinhos” (cf. H Ev 1, 6, 6: PL 76, 1097s). Trata-se de uma advertência que nós, sacerdotes, devemos ter intimamente presente cada dia. […]

Esta é uma hora de gratidão

Sessenta anos de ministério sacerdotal! Queridos amigos, talvez me tenha demorado demais nos pormenores. Mas, nesta hora, senti- me impelido a olhar para aquilo que caracterizou estes decênios. Senti-me impelido a dizer-vos – a todos os presbíteros e Bispos, mas também aos fiéis da Igreja – uma palavra de esperança e encorajamento; uma palavra, amadurecida na experiência, sobre o fato que o Senhor é bom.

Mas esta é, sobretudo, uma hora de gratidão: gratidão ao Senhor pela amizade que me concedeu e que deseja conceder a todos nós. Gratidão às pessoas que me formaram e acompanharam. E, subjacente a tudo isto, a oração para que um dia o Senhor na sua bondade nos acolha e faça contemplar a sua glória. Amém.

(Excertos da homilia da Concelebração Eucarística e imposição dos pálios aos novos Arcebispos Metropolitanos, 29/6/2011)
(Revista Arautos do Evangelho, Set/2011, n. 117, p. 6 à 8)

 
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