Paris, 25 de dezembro de 1886. Uma multidão de fiéis acorre jubilosa à Catedral de Notre Dame, para a solene comemoração do nascimento do Menino Deus. Entre eles se encontra um jovem de 18 anos que começara a dar os primeiros passos na carreira de escritor. Lá se dirigia, entretanto, não movido por amor ao Divino Infante, mas pela esperança de encontrar nas cerimônias de Natal algo que lhe inspirasse um bom tema para seus escritos.
Paul Claudel em março de 1927, sendo embaixador da França nos Estados Unidos |
Não atingira ainda a idade adulta e já se considerava um ateu convicto. Sua adolescência transcorrera num ambiente de indiferença religiosa e de profunda descrença nas realidades sobrenaturais. Como a maioria das crianças de sua época, havia feito a Primeira Comunhão. Entretanto, aquele encontro com Cristo na Eucaristia “foi ao mesmo tempo o coroamento e o fim de minhas práticas religiosas”,1 afirmou.
Algum tempo depois ingressou no Liceu Louis-le-Grand, um dos mais renomados centros de estudos parisienses e um foco de difusão do materialismo em seu tempo. Escreveu ele, a propósito desse período de sua vida: “Eu acreditava que tudo estava submisso às ‘leis’ e que este mundo era um inexorável encadeamento de causas e efeitos, o qual a ciência não tardaria a esclarecer plenamente. […] Além disso, vivia na imoralidade e ia caindo, pouco a pouco, num estado de desespero. […] Essa era a infeliz criança que, em 25 de dezembro de 1886, entrou na Catedral de Notre Dame de Paris para assistir aos ofícios de Natal”.
“Meu coração sentiu-se tocado, e tive fé”
Louis Charles Athanaïse Cécile Cerveaux Prosper – assim se chamava esse jovem francês que depois se tornou mundialmente conhecido sob o pseudônimo de Paul Claudel – assistiu sem grande interesse à Missa matutina e retornou à tarde para o Ofício de Vésperas. Postou-se num local de onde podia contemplar num só relance o público e a cerimônia. De pé, apertado no meio da multidão, aguardava com indiferença o início do ato litúrgico que seria acompanhado pelo coro da catedral, reforçado pelo do seminário menor. Quando, no final, os cantores entoaram o Magnificat, aconteceu o maravilhoso fato que mudou os rumos de sua vida. Muito tempo depois, ele narrou com palavras de vivo arrebatamento espiritual esta decisiva graça recebida:
“Num relance, meu coração sentiu-se tocado, e tive fé. […] Tentando, como tenho feito amiúde, reconstituir os minutos que se seguiram a este momento excepcional, encontro os seguintes elementos que, todavia, formavam um só fulgor, uma só arma da qual Se servia a Providência para atingir e abrir o coração de um pobre filho desesperado: ‘Como são felizes os que creem! E se fosse verdade? É verdade! Deus existe, está aqui! É alguém, é um ser tão pessoal como eu! Ama-me! Chama por mim!’. Invadiram-me as lágrimas e os soluços, e o suave canto Adeste fideles aumentava minha emoção”.3
Início de uma dura e longa batalha
Doce emoção, observa ele, mas mesclada com um sentimento de espanto e quase de horror, ao constatar que permanecia inteiro em sua mente o edifício de erradas concepções filosóficas e preconceitos contra a Religião.
De qualquer forma, de volta ao lar após a celebração litúrgica, abriu uma Bíblia e ouviu pela primeira vez o timbre da “tão doce e inflexível voz” 4 do Livro Sagrado, a qual, desde então, não cessou de ressoar em seu coração. Cada palavra, cada linha, demonstrava com majestosa simplicidade a divindade de Jesus Cristo. “Sim, Jesus era o Filho de Deus. É a mim entre todos que Ele Se dirigia e prometia seu amor. […] Que me importava o resto do mundo, em comparação com este Ser novo e prodigioso que acabava de me ser revelado?”.
Cerimônia litúrgica na catedral de Notre Dame |
Assim falava em seu interior o homem novo, mas… o homem velho resistia com todas as suas forças. E essa resistência durou quatro anos, submetendo o jovem literato a uma rude prova em defesa da fé recém-adquirida. A exemplo de Santo Agostinho, Claudel não hesita em externar o que se passava em sua alma:
“Confessarei? No fundo, o sentimento que mais me impedia de manifestar minhas convicções era o respeito humano. A ideia de revelar a todos a minha conversão, de anunciar à minha família que faria abstinência às sextas-feiras, de apresentar-me como um dos católicos tão ridicularizados, tudo isso me causava suores frios. E, por vezes, experimentava uma verdadeira indignação pela violência que assim me era feita. Mas sentia sobre mim uma mão firme”.
Nada a estranhar nessa imensa batalha interior, pois – salvo raras exceções, como a de Saulo a caminho de Damasco -, a graça da conversão se efetiva mediante um processo que às vezes perdura toda a vida. Para o novel convertido, a luta foi dura a ponto de arrancar-lhe este significativo comentário: “Os jovens que tão facilmente abandonam a fé não sabem quanto custa recuperá-la”.
“O grande livro… no qual fiz meus estudos”
Claudel não conhecia nenhum sacerdote, nem tinha sequer algum amigo católico que pudesse orientá-lo nos primeiros passos rumo a Deus. Empenhou-se então no estudo da Religião, favorecido pela graça e por privilegiada inteligência.Menciona os livros que mais o ajudaram nessa caminhada. Entre outros, Elevações sobre os mistérios e Meditações sobre os Evangelhos, de Bossuet; os relatos da Bem-aventurada Ana Catarina Emmerick; Metafísica, de Aristóteles. E acrescenta, transbordante de gratidão: “Mas o grande livro aberto para mim, no qual fiz meus estudos, foi a Igreja. Louvada seja sempre esta grande Mãe majestosa em cujos joelhos tudo aprendi!”.
Tudo aprendeu, como? Assim relata ele o efeito produzido em sua alma pela pulcritude das celebrações litúrgicas, cuja magnificência ultrapassava todas as suas imaginações:
“Não conseguia saciar-me por completo com o espetáculo da Santa Missa, e cada movimento do sacerdote gravava-se profundamente no meu espírito e no meu coração. A leitura do Ofício de Defuntos, a do Natal, o drama da Semana Santa, o sublime cântico do Exultet, ao lado do qual me pareciam insípidas as harmonias mais inebriantes de Sófocles e Píndaro, tudo isso me sobrecarregava de respeito e alegria, de gratidão, arrependimento e adoração! Pouco a pouco, lenta e penosamente, floresceu em meu coração a ideia de que a arte e a poesia também são coisas divinas”.
Por fim, a segunda Comunhão
Frequentando com assiduidade a Catedral de Notre Dame, quanta “santa inveja” sentia Claudel dos fiéis que comungavam! Ele apenas se atrevia a, nas sextas-feiras da Quaresma, entrar na fila dos que iam beijar reverentemente a coroa de espinhos. Passava-se assim o tempo e sua situação se tornava insuportável. Pedia forças a Deus e vertia lágrimas em segredo, mas não ousava abrir sua alma ao ministro de Deus, na Confissão. Entretanto, a voz da graça conquistava terreno em seu coração, e suas objeções se enfraqueciam. No terceiro ano, conseguiu forças para ajoelhar-se no confessionário da Igreja de Saint-Médard, sua paróquia. Teve ali uma provação a mais: o confessor não estava à altura das necessidades daquela alma. Saiu do confessionário humilhado e enfurecido, e só voltou a ele um ano depois.
Encontrou desta vez um jovem sacerdote misericordioso e caritativo, com o qual pôde abrir-se por inteiro e, por fim, sair com a alma “mais alva do que a neve” (Sl 50, 9). E assim, no Natal de 1890, exatamente quatro anos após a fulgurante graça da conversão, Paul Claudel teve a felicidade de fazer a segunda Comunhão de sua vida.
No mesmo dia de Natal
No mesmo dia de Natal de 1886, em que a Divina Providência tocou de modo irresistível a alma ateia de Paul Claudel, uma adolescente de 13 anos, chamada Marie-Françoise-Thérèse Martin, recebia a graça por ela denominada de “minha completa conversão”.
Ainda na flor da juventude, Teresa estava já avançada nas vias da santidade. Como, pois, falar em “conversão”?
Como a própria Santa explica em sua encantadora História de uma alma, tinha ela, desde a primeira infância, a sensibilidade muito à flor da pele. Se lhe acontecia de causar involuntariamente um leve desgosto a alguma pessoa amada, desatava num copioso pranto; e quando, por fim, alguém a conseguia consolar, ela recomeçava a chorar por ter chorado!… Isso, por certo, causava-lhe sofrimento, sobretudo por ver quanto incomodava as pessoas que ela mais estimava.
Deus, entretanto, teve pena dela e operou um pequeno milagre que não só a livrou desse importuno defeito, mas fortaleceu de tal modo sua alma que a partir de então, confidenciou ela, “não saí vencida em nenhum combate. Pelo contrário, andei de vitória em vitória e iniciei, por assim dizer, ‘uma corrida de gigante'”.
Começa o mais belo período de sua vida
Essa graça da “completa conversão”, ela a recebeu pouco depois de chegar à casa com seu pai e suas irmãs, de volta da Missa do Galo. Apesar de ser já uma mocinha, Teresa era a caçula da família e tinha ainda o “privilégio” de, nas noites de Natal, deixar na lareira um par de sapatos nos quais se colocavam os presentes natalinos.
Seu pai, o Beato Luís Martin, gostava de ver a alegria de sua “rainhazinha” ao tirar cada presente dos sapatos. Nessa noite, porém, querendo fazê-la passar para uma nova etapa de sua vida espiritual, Jesus permitiu que ele – já idoso e tomado de cansaço àquela hora da madrugada – se aborrecesse ante a repetição daquele inocente mas extemporâneo costume infantil e manifestasse desagrado com palavras que fizeram brotar instantaneamente as lágrimas nos olhos da menina. Porém ela logo as reprimiu, comprimiu as fortes pulsações do coração, pegou os sapatos, colocou-os diante do pai e tirou alegremente, um a um, todos os objetos. Surpresos ante tão inesperada mudança, o pai e as irmãs sorriam contentes, e sua irmã Celina julgava estar sonhando.
Nessa noite, Teresinha reencontrara a força de alma que perdera aos quatro anos;começava o terceiro e mais belo período de sua vida Objetos pertencentes a Teresa Martin expostos em sua casa natal, em Lisieux |
Mas não era um sonho. “Felizmente” – escreve a Santa – “era uma doce realidade. Teresinha reencontrara a força de alma que perdera aos quatro anos e meio e ia conservar para sempre!… Nessa noite de luz, começou o terceiro período da minha vida, o mais belo de todos, o mais cheio das graças do Céu… Num instante, a obra que eu não pudera cumprir em dez anos, Jesus a fez contentando-Se com a boa vontade que nunca me faltara. Como os Apóstolos, podia dizer-Lhe: ‘Senhor, pesquei a noite toda sem nada pegar’. Ainda mais misericordioso comigo do que com os discípulos, Jesus pegou Ele mesmo a rede, lançou-a e retirou-a cheia de peixes… Fez de mim um pescador de alma”.
Como é bela a conversão de um pecador, arrancado por Deus das trevas da impiedade ou da lama dos pecados e purificado na pia batismal ou no Sacramento da Reconciliação! Que beleza, também, a de um inocente elevado pela graça, não das trevas para a luz, mas de um esplendor para outro mais fulgurante! Difícil dizer qual das duas conversões é mais bela. São maravilhas da graça complementares, cada qual com seu resplendor próprio.
Pecador ou inocente. Todos nós, sem qualquer exceção, nos enquadramos numa dessas categorias de alma e necessitamos de contínuas conversões. E a noite de Natal é uma excelente ocasião para pedir tal graça ao Menino Jesus, à Virgem Santíssima e a São José. (Revista Arautos do Evangelho, Dezembro/2014, n. 156, p. 18 a 21)