Narram os Santos Evangelhos o ardente zelo de Nosso Senhor Jesus Cristo ao realizar, percorrendo todas as regiões de Israel, inúmeros prodígios em favor daqueles que vinham ao seu encontro: “Andou fazendo o bem e curando todos os oprimidos do demônio, porque Deus estava com Ele” (At 10, 38). Os cegos viam, os surdos ouviam, os mortos ressuscitavam. Ninguém se aproximava d’Ele sem ser beneficiado.
Incomparavelmente superior a todas as Jesus e a samaritana – Igreja de |
Numa das suas viagens da Judeia à Galileia, deteve-Se Ele na cidade de Sicar, na Samaria, e sentou-Se junto ao poço de Jacó, a fim de descansar da caminhada. Em certo momento aproximou-se uma mulher para buscar água. “Dá-Me de beber” (Jo 4, 7), pediu Ele. Ela, porém, surpreendeu-se, pois os judeus não se relacionavam com os samaritanos. Replicou-lhe então o Mestre: “Se conhecesses o dom de Deus e quem é que te diz ‘Dá-Me de beber’, tu Lhe pedirias, e Ele te daria água viva” (Jo 4, 10).
Incomparavelmente superior a todas as maravilhas da criação – nas quais há sempre um reflexo visível das “perfeições invisíveis de Deus” (Rm 1, 20) – é o “dom de Deus”, isto é, a graça, criatura que transcende todo o criado e nos confere uma participação na vida divina, incriada. A menor “gota” de graça supera o bem natural do universo inteiro.
Portanto, acompanhar o desenvolvimento da graça nas almas dos justos é um dos mais apaixonantes meios de conhecer a História da Igreja, além de uma excelente forma de amor a Deus.
Quis Ele tornar-nos participantes dos seus méritos
Voltemos, agora, o olhar ao alto da Cruz. Após Nosso Senhor Jesus Cristo ter proferido seu “consummatum est” (Jo 19, 30), a lança do soldado abriu-Lhe o costado, de onde jorraram sangue e água, símbolo do começo e do crescimento da Igreja.2 Foi, com efeito, “do lado de Cristo adormecido na Cruz que nasceu o sacramento admirável de toda a Igreja”.
Ao gênero humano, até então nas trevas do pecado, tornou-se acessível o caminho da virtude. Abriram-se as portas do Céu. Pela Redenção, a Lei Antiga é substituída pela Lei da graça.
Em seu desígnio salvador, quis Cristo constituir a Santa Igreja, sociedade visível, à maneira de Corpo cuja Cabeça é Ele próprio (cf. Ef 5, 23.30; Col 1, 18), para que, de sua plenitude, todos os membros recebêssemos graça sobre graça (cf. Jo 1, 16). Assim, tornou-nos também participantes dos infinitos méritos de sua vida, Paixão e Morte.4 Pois, na medida em que nós, enquanto membros, estamos unidos a Nosso Senhor, “não apenas a Paixão de Cristo nos é comunicada, mas também o mérito de sua vida”.
“Brilhe vossa luz diante dos homens”
Conforme nos ensina a doutrina católica, todos os homens que estão em estado de graça possuem um misterioso vínculo entre si, procedente dessa união com a Cabeça. “Uma admirável e discreta circulação de bens espirituais os une, como estão unidas as diversas partes do corpo humano para a circulação dos líquidos e do sangue que repartem para todos os membros os eflúvios de vida” – explica o padre Monsabré. “Este mistério se chama Comunhão dos Santos”.
A cada momento, esclarece Mons. João Scognamiglio Clá Dias, EP, todo homem está influenciando seu próximo ou recebendo influências dele. “Está sendo para ele ora pastor, ora ovelha; ora mestre, ora discípulo; continuamente dando e recebendo algo”.
Segundo o padre Monsabré, o “capital social” do qual participam os diversos membros da Igreja na Comunhão dos Santos compõe-se de três categorias de bens: “as boas obras, por via do exemplo e da imitação; as graças, por via de intercessão; os méritos, por via de substituição”.8 Embora as duas últimas sejam de fundamental importância, limitar-nos-emos a tratar neste artigo da primeira delas: as boas obras.
“Brilhe vossa luz diante dos homens, para que vejam vossas boas obras e glorifiquem vosso Pai que está nos Céus” (Mt 5, 16) – recomendou o Divino Mestre aos seus discípulos. São João Crisóstomo interpreta estas palavras como um convite: “haja em vós grande virtude, arda em vossos corações o fogo da caridade e sua luz brilhe diante dos homens. Porque, quando a virtude alcança esse grau de perfeição, é impossível mantê-la oculta, por mais que quem a pratica queira ocultá-la”. Assim, os Apóstolos anunciavam o Reino de Deus sobretudo pelo exemplo de suas vidas.
Foi, com efeito, “do lado de Cristo adormecido na Cruz que nasceu Loginus crava a lança no costado de Jesus |
As virtudes que ornam as almas santas se manifestam no exterior, de modo permanente, pelas boas obras e pelo exemplo, o qual se impõe à nossa imitação, convidando-nos a conformar nossa vida com a delas, isto é, com Jesus Cristo, arquétipo de todas as virtudes, exemplo universal da vida cristã, supremo modelo de perfeição. Essas obras e exemplos constituem um capital de bem que cresce a cada momento como um incessante apelo aos demais membros do Corpo Místico a abraçarem também a santidade.
Doutrina transposta em vida
A mera doutrina não é suficiente para arrastar as vontades. Como a verdade entra no intelecto pelos sentidos, as coisas sensíveis têm sobre o espírito humano uma força maior que a doutrina abstrata. “O exemplo torna sensível a verdade, a qual, de certo modo, se encarna na pessoa e nos fatos”.
Ensina-nos o Doutor Angélico: “Quando se trata de ações e paixões humanas, em que a experiência vale mais que tudo, os exemplos movem mais que as palavras”. Assim como o farol orienta o navio, mas não o propulsiona, da mesma forma a doutrina por si só não move as almas; estas são movidas pelo exemplo, ou seja, pela doutrina transposta em vida. “São os exemplos que arrastam e motivam a trilhar o mesmo caminho”, e isto em todos os campos do agir humano.
Narram as crônicas da Revolução Francesa um fato muito ilustrativo desta realidade. Quando Henri de La Rochejaquelein, com apenas 20 anos de idade, assumiu o comando de uma parte do exército vandeano, fez a seus homens esta célebre conclamação: “Si j’avance, suivez-moi; si je recule, tuez-moi; si je meurs, vengez-moi! – Se eu avançar, segui-me; se recuar, matai-me; se morrer, vingai-me!”.14 Justificando com o próprio heroísmo este fogoso apelo, arrastava atrás de si à vitória, ou a uma gloriosa morte na luta, os combatentes sob seu comando.
O instinto de imitação faz parte da psicologia humana. “Da mesma forma como alguém boceja vendo outro bocejar, assim, movidos como por um mecanismo interno invisível, executamos uma ação, boa ou má, que vemos outros fazerem”.
Obrigação de dar bom exemplo
Nesse sentido, nada é tão eficaz na observância do mandamento divino de amar o próximo por amor a Deus, quanto um comportamento edificante e o exemplo de uma vida íntegra, com vistas à salvação eterna de nossos irmãos.
Quem assim age faz o papel de um eloquente arauto da verdade. Recordemos, a propósito, o fato ocorrido com o grande São Francisco de Assis, cuja preocupação primordial era instruir os homens pelo exemplo, mais que pelas palavras.
Certo dia, convidou ele um monge a acompanhá-lo em uma pregação. Após dar algumas voltas pelas ruas, retornavam ambos ao mosteiro sem ter pronunciado palavra. Surpreso, o companheiro perguntou-lhe: “Mas, e a pregação?”. Respondeu-lhe o Santo que o simples fato de dois religiosos se apresentarem com modéstia diante da população constituía já um sermão.16 São Francisco, com efeito, não se cansava de ensinar a seus primeiros seguidores: “Todos os irmãos devem pregar com as suas obras!”.
Ao longo da História, muitos Santos deram às almas, pela simples presença, a esmola do bom exemplo. “Vi Deus num homem!”, exclamou um advogado de Lyon, referindo-se a São João Maria Vianney, ao ser interrogado sobre o que havia conhecido em Ars.18 Segundo narram as crônicas, um irmão leigo da Companhia de Jesus, saindo todos os dias para fazer compras, ganhou mais almas para Deus com suas conversações e bons exemplos do que muitos missionários com suas pregações.19 Convidado certo dia pelo Arcebispo de Évora a fazer uma pregação na catedral, São Francisco de Borja tentou esquivar-se, alegando cansaço e enfermidade, mas recebeu esta resposta: “Não quero que faça sermão, mas que suba ao púlpito e todos possam ver um homem que, por amor a Deus, abandonou tudo quanto tinha”.
Ai do mundo por causa dos escândalos!
A este respeito, Santo Antônio Maria Claret nos oferece uma expressiva figura: “A doutrina é como a pólvora; mas o exemplo é como a bala, que fere ou mata. A pólvora sozinha produz apenas barulho, assim também só a doutrina fará apenas ruído; é preciso acrescentar-lhe algum exemplo, que sirva de bala”.
Portanto, o exemplo pode ter dois efeitos: ferir ou matar. A boa ação realizada diante de algum pecador fere-o e o faz perceber o caminho errado pelo qual avançava, e ao mesmo tempo o estimula a praticar o bem. Uma ação má, pelo contrário, expõe o próximo à ruína espiritual, ou seja, à morte. E isto é o pecado de escândalo.
“O exemplo torna sensível a verdade, a qual, de certo modo, 1. São Pedro Apóstolo, por Pedro Serra – Museu de Belas Artes, Bilbao (Espanha); |
São Tomás assim define o escândalo: “Uma palavra ou um ato menos reto que oferece uma ocasião de queda”. Severas são as palavras do Divino Mestre ao referir-Se a essa falta: “É impossível que não haja escândalos, mas ai daquele por quem eles vêm! Melhor lhe seria que se lhe atasse em volta do pescoço uma pedra de moinho e que fosse lançado ao mar, do que levar para o mal um destes pequeninos” (Lc 17, 1-2). O gravíssimo pecado de escândalo prejudica não só quem o recebe, mas também quem o comete. “Ao primeiro, porque a falta cometida em decorrência do escândalo furta-lhe a vida da graça de Deus na alma. Ao segundo, por fazer o mesmo papel do demônio – perder almas -, acrescido do gosto em arruinar a inocência alheia”.23
Santo Ambrósio e Santo Agostinho
Não raras vezes, percorrendo as páginas da hagiografia e da História da Igreja, encontramos o bom exemplo na raiz das mais estupendas conversões. Nesses casos, o fulgor das virtudes de algum grande Santo serve a Deus como instrumento para ferir com seu dardo de amor a alma daqueles que deseja atrair inteiramente para Si.
A vida de Santo Ambrósio está coalhada de fatos magníficos, porém a “mais preciosa pedra de sua coroa de glória é a conversão de Santo Agostinho”. Repleto da sabedoria do mundo, mas longe da de Deus, Agostinho errava pelas vias do pecado e da heresia, tendo aderido à doutrina dos maniqueus. Conhecia alguns pontos da doutrina católica, mas não se deixava comover.
Mudando de Roma para Milão, ali encontrou o Bispo Ambrósio. “Tu me conduzias a ele sem eu o saber, para eu ser por ele conduzido conscientemente a Ti”,25 escreveu mais tarde em suas Confissões. As palavras de Ambrósio prendiam a atenção de Agostinho, mas seu conteúdo não o preocupava. Com o tempo, ele foi abrindo o coração aos ensinamentos do Bispo, até decidir procurar argumentos que demonstrassem a falsidade do maniqueísmo: “A fé católica não me parecia vencida, mas para mim ainda não se afigurava vencedora”.
“A doutrina fará apenas ruído; é preciso acrescentar-lhe 1.São Francisco distribui os seus bens aos pobres, por Antonio Viladomat |
Entretanto, o que de fato o levou a aderir à verdadeira Religião foi o exemplo do santo Bispo de Milão: “Gostava não só de ouvir seus sermões, mas também de passar horas inteiras em seu gabinete, em silêncio, vendo esse homem de Deus trabalhar ou estudar”.27 Finalmente, declara Santo Agostinho: “Desde então comecei a preferir a doutrina católica”.28 Afirma o Papa Bento XVI: “Da vida e do exemplo do Bispo Ambrósio, Agostinho aprendeu a crer e a pregar”.
Algo semelhante ocorreu na conversão de São Justino. Depois de percorrer em vão as escolas filosóficas mais em voga no seu tempo, em busca de conhecer a Deus, ele encontrou a verdade ao contemplar a serenidade e destemor dos mártires avançando rumo ao suplício. Este espetáculo fê-lo reconhecer a autenticidade e superioridade da Religião cristã.30 Eis o testemunho do próprio Santo: “Pelas obras e pela fortaleza que os acompanham, podem todos compreender que este – Jesus Cristo – é a Nova Lei e a Nova Aliança”.
Na origem de outras grandes conversões
Certa vez, São Francisco de Sales foi pregar no Chablais e uma dama protestante converteu-se após ouvir dois ou três dos seus sermões. De volta a Genebra, sua cidade de origem, o pastor calvinista perguntou-lhe qual ponto da doutrina católica a tinha convencido a abraçar o Catolicismo. Ela respondeu: “Minha única resposta é que quero ter a mesma Religião de Francisco de Sales”. O contato com a santidade desse varão de Deus a movera a dar tal passo.
Podemos citar ainda a conversão do rei Clóvis, a qual teve sua origem, entre outros fatores, no exemplo das virtudes de sua esposa, Santa Clotilde; ou as conversões operadas pelo Santo Cura d’Ars, pelo simples fato de subir ao púlpito com o crucifixo nas mãos, sem proferir palavra.
A Igreja progride sempre em santidade
Desde o momento de sua divina instituição, a Igreja não deixa de crescer em santidade e de enriquecer-se com o heroísmo dos Santos, os quais constituem Evangelhos vivos. Seria, portanto, um equívoco dizer que nunca haverá maiores Santos que os primitivos, e daí concluir que a Igreja não progride em santidade nem cresce misticamente. Tal afirmação equivaleria a reduzir um grande edifício a seus solidíssimos fundamentos, ou uma árvore frondosa à sua pequena semente.
Se é verdade que no dia de Pentecostes Nosso Senhor derramou sobre os Apóstolos e os primeiros discípulos a plenitude do Espírito Santificador, certo é também que os membros do Corpo Místico de Cristo continuaram e continuarão recebendo este mesmo Espírito ao longo dos séculos, e a Igreja não deixará de se desenvolver, aperfeiçoar, purificar e santificar até o fim do mundo. Mais e melhores frutos espirituais serão sempre por Ela produzidos ao longo das gerações. Seu perfume se espalhará por toda a Terra, aguilhoando a consciência dos maus e inebriando a alma dos bons. ²
O exemplo de um heroico ancião
“Se eu morrer agora corajosamente, mostrar-me-ei digno de minha velhice, e terei deixado aos jovens um nobre exemplo de zelo generoso, segundo o qual é preciso dar a vida pelas santas e veneráveis Leis” (II Mac 6, 27) – disse o admirável Eleazar antes de dirigir-se ao suplício.
Antíoco Epífanes, qualificado pelo Espírito Santo de “raiz de pecado” (I Mac 1, 11), proibiu ao povo judeu a prática da verdadeira Religião. Os enviados desse iníquo rei prenderam Eleazar, “homem já de idade avançada” (II Mac 6, 18), e quiseram forçá-lo a comer carne de porco, proibida pela Lei. Como ele se recusava, seus amigos, desejando salvar-lhe a vida, ofereceram-lhe carnes permitidas para ele comer, fingindo serem as obrigadas pelo rei. Entretanto, o heroico ancião preferiu ser conduzido à morte e respondeu-lhes: “Não é próprio da nossa idade usar de tal fingimento, para não acontecer que muitos jovens suspeitem que Eleazar, aos noventa anos, tenha passado aos costumes estrangeiros. Eles mesmos, após o meu gesto hipócrita, e por um pouco de vida, se deixariam arrastar por causa de mim e isso seria para a minha velhice a desonra e a vergonha” (II Mac 6, 24-25).
Assim, Eleazar entregou sua alma a Deus, “deixando com sua morte não somente aos jovens, mas também a toda a sua gente, um exemplo de coragem e um memorial de virtude” (II Mac 6, 31). (Revista Arautos do Evangelho, Dezembro/2015, n. 165, pp. 34-35)