Antes de comentar a vida de São Lourenço de Bríndisi, vale a pena termos uma noção do que era um capuchinho no século XVI, para melhor avaliarmos a projeção da figura desse santo no mundo daquele tempo.
Conhecemos o traje clássico dos capuchinhos. É aquele hábito marrom- claro, na cintura um rosário, sendo que as fileiras de contas são unidas pela figura de uma caveira. Calçam sandálias sem meias, usam a barba grande e cabelo aparado quase rente.
O capuchinho entrava, desse modo, num contraste violento com o modo de se trajar e de se apresentar dos homens da época. A Renascença estava no fim, e se ia passando para o Barroco e o Rococó, as modas masculinas iam atingindo um auge de rebuscamento, de elegância, de finura como poucas vezes aconteceu na História.
Os homens se trajavam de seda, de damasco, trazendo na roupa botões e outros ornamentos de pedras preciosas. Usavam anéis, meias de seda, sapatos de verniz (com salto vermelho, quando eram nobres) com fivelas de ouro ou de prata e pedras preciosas. Perfumavam-se. Quando usavam barba, era aparada no formato chamado de “pêra”, muito bem cuidada, e os bigodes finos e sedosos – não era o bigode à “kaiser”, com a ponta voltada para cima. Por cima do cabelo natural, ou da cabeça rapada, punham cabeleiras, superpreparadas em estabelecimentos especiais. Não falemos da apresentação da dama, porque, se assim era a do homem, mais requintada era a feminina.
Dentro dos sábios equilíbrios da Civilização Cristã, o capuchinho representava a tônica oposta de tanto luxo e tanto bom gosto.
Não seria eu quem haveria de censurar que a Civilização Cristã engendrasse os mais magníficos trajes. Eu teria, certamente, alguma restrição a alguns aspectos desses trajes no século XVI. Mas, na linha geral, a ideia de acentuar a dignidade do homem por meio de trajes magníficos me parece muito boa e própria a realçar a sabedoria do plano de Deus, o qual, a serviço do rei da Criação, que é o homem, dispôs de materiais capazes de afirmar adequadamente essa realeza. Sobretudo quanto esse rei é, ao mesmo tempo, membro do Corpo Místico de Nosso Senhor Jesus Cristo, e tem, portanto, uma dignidade maior do que a própria dignidade humana.
Mas é próprio do gênio, do talento da Igreja Católica estabelecer a harmonia baseada nos contrastes. Uma coisa é a contradição; outra coisa são os contrastes harmônicos. Estes últimos são sempre contrastes entre duas perfeições – não entre um defeito e uma perfeição e, menos ainda, entre dois defeitos – as quais, sendo muito diversas entre si e por serem muito diversas entre si, como que se equilibram.
Um tal esplendor nos trajes, uma tal magnificência na vida de Corte, exigia que se lembrasse ao homem, ao mesmo tempo, os valores opostos da austeridade, da sobriedade, da sobranceria em relação às coisas terrenas, do único valor profundo das coisas sobrenaturais, etc. Só por essa forma a humanidade poderia chegar impunemente a tais requintes de luxo.
Como, em sentido contrário, a afirmação magnífica – eu quase diria brutal – da morte, da pobreza, de tudo aquilo que leva o homem a sofrer na vida, a renunciar, a lutar, só poderia ser um valor geral para a sociedade, frequente, presente em todos os aspectos da vida social, se, em sentido contrário, o esplendor da vida terrena aparecesse também.
São esses contrários harmônicos que são os fatores de equilíbrio da alma humana. É muito belo ver, em quadros do tempo, cenas de vida de Corte.
Uma sala com um rei e uma rainha com coroas na cabeça. A Corte inteira de pé: dignitários, cardeais vestidos de púrpura, guerreiros, ministros, etc., formando um grande semicírculo à espera de um ato que se devia realizar. A pequena distância do rei ou da rainha, a figura de um capuchinho. Espadaúdo, enorme, forte, com uma barba colossal, e com sua roupa terrível. Natural no meio daquilo, na sua pobreza entre os mais importantes e mais ricos, e cercado de respeito e de delicadeza.
Era esse o papel simbólico dos capuchinhos na civilização daquele tempo. Representavam tudo quanto há de austero na vida, e constituíam a contrapartida harmônica de tudo quanto havia de magnífico na vida, que a civilização daquele tempo estava elaborando.
Temos, pois, um santo, São Lourenço de Bríndisi, que é chamado a desempenhar essa missão, simbolizar esse valor na sociedade daquele tempo.
O mundo era então marcado pela presença de dois adversários terríveis, que quase liquidaram a Europa. Um deles era a Primeira Revolução, o protestantismo, contra o qual São Lourenço de Bríndisi lutou com êxito. A Primeira Revolução, como mostra Plinio Correa de Oliveira em seu livro “Revolução e Contra-Revolução”, foi marcada por uma explosão de orgulho e de sensualidade.
De orgulho, afirmado pela negação da hierarquia eclesiástica e pela inconformidade, na esfera eclesiástica, de todos os súditos com a autoridade. O Bispo não querendo tolerar Papas, os sacerdotes não querendo tolerar Bispos, os leigos não querendo tolerar sacerdotes. Uma verdadeira revolução comunista dentro da estrutura eclesiástica daquele tempo.
De outro lado, a sensualidade, afirmada pela ruptura com o princípio da indissolubilidade do vínculo conjugal, quer dizer, pelo estabelecimento do divórcio em todas as seitas protestantes e, de outro lado, pela abolição do celibato eclesiástico e do estado religioso com celibato.
Nesse mundo marcado pela perpétua insatisfação de todos, o capuchinho representava um protesto vivo. Ele era pobre o mais das vezes voluntário, um homem que possuíra bens na terra, maiores ou menores, e optara por ser pobre; que renunciara a toda carreira terrena, não ocupava altos cargos nem altas situações, vivia na humildade do voto de obediência pelo qual renunciara à própria vontade para viver sob o império da vontade de um outro; e mantinha a castidade perfeita.
Ele representava, então, um contraste vivo com todo o desregramento do tempo, e passeava naquela sociedade revolucionária como um tanque evolui no meio de batalhões adversos de infantaria. Com serenidade, sobranceria e ação de presença, ia aniquilando.
Vamos agora estudar a vida desse Santo sob esse aspecto. Passemos à leitura de trechos da biografia dele. Nasceu em Bríndisi, em 1559. Foram seus pais das mais nobres famílias daquela cidade. Tinha apenas quatro anos quando pediu aos pais para entrar no convento dos Frades Menores. Os pais acederam. Lourenço era aplicado. Gostava muito de ouvir sermões, retinha-os facilmente e os repetia com exatidão. Às vezes faziam-no pregar no Capítulo, para que todos ouvissem.
Que encanto um capuchinhozinho com voz de criança, mas já com catadura de atleta de Cristo, fazendo sermões que ele ouvia e repetia! Isso ia formando o menino para as grandes batalhas que ele ia travar, para o desembaraço que constitui uma das formas da grandeza capuchinha.
O Arcebispo, a quem a notícia chegou, quis também ouvi-lo, e o obrigou a ir pregar na catedral diante de numeroso público, que muito proveito tirou.
Levemos em consideração que, naqueles lugares pequenos da Itália – sem rádio, televisão, cinema – qualquer singularidade despertava curiosidade. Assim a Catedral se enchia para ouvir o sermão de um meninozinho extraordinário. O povo, como era naquele tempo, falante, exuberante, fazendo comentários antes de chegar o menino. De repente, este sobe, começa a fazer ouvir sua voz, o silêncio se estabelece aos poucos. Terminado, o órgão toca, alguém canta uma Ave-Maria, e o público vai lentamente se escoando depois de ter recebido a bênção do Bispo.
O menino entra no convento e não ouve nenhuma das repercussões. Vai dormir e, na manhã seguinte, está limpando o chão.
Tendo morrido seu pai, quis a mãe que o filho voltasse para casa, a fim de lhe fazer companhia. Mas o jovem procurou esquivar-se às solicitações dela e fugiu para Veneza, onde estava um tio seu, sacerdote, reitor do Colégio de São Marcos.
Veneza de manhãzinha, com seus palácios, seu panorama aquático magnífico, mil jogos de luz maravilhosos. O fradinho que fugiu e viajou a noite inteira entra tranquilamente na cidade, toma uma gôndola e, de pé, olhando os palácios e pensando em como o Reino dos Céus é maior do que o da Terra, chega à casa do tio para estudar. O tio era aliado de Deus e o acolhe, e a mãe desiste de exercer seu poder.
Concluindo ele os estudos de filosofia, seu tio o destinou à Faculdade de Direito Canônico. Chegado aos 17 anos, pediu o hábito capuchinho, e o Provincial lhe concedeu com gosto. Em 24 de março de 1576, ele fez a solene profissão.
Aos 36 anos, foi nomeado Ministro Geral para toda a Ordem. Quando Clemente VIII mandou os capuchinhos para a Alemanha, o Santo foi um dos encarregados. O Imperador [do Sacro Império] teve grande satisfação nessa escolha e concedeu-lhe ampla autorização para fundar mosteiros. Fundou-os na Boêmia, Áustria, Morávia e Silésia.
Fundar mosteiros é encontrar vocações para eles, encontrar dinheiro para construí-los e superiores para dirigi-los. É difícil encontrar quem queira levar a vida austera de um capuchinho. Mas ele formou mosteiros em todas essas regiões.
Os Sumos Pontífices confiaram-lhe as mais delicadas missões. Várias vezes foi enviado como embaixador a cortes de diversos príncipes. Estes o honravam também com o caráter de seu embaixador. Assim compareceu às cortes dos príncipes da Alemanha e até à Dieta do Império. Seu zelo reteve naquele país e heresia luterana.
Podemos imaginar cenas de Cortes: o arauto anuncia que vai entrar no salão o Embaixador do Santo Padre, tido como o decano dos diplomatas em todos os países católicos, e entra o frade capuchinho na singeleza de seus trajes. Grande reverência ao rei, e prossegue, no meio dos tapetes de luxo, do esplendor, sereno e indiferente, sem revolta e sem admiração, com os olhos postos no Céu e pregando a verdade, às vezes terrível.
O Imperador desejou que alguns capuchinhos fossem como capelães do exército à Hungria. São Lourenço foi à frente da missão. Era general o Arquiduque Matias, irmão do Imperador, o qual, estimulado pelas promessas que lhe fazia Lourenço da parte de Deus, de alcançar vitória sobre os inimigos, determinou atacá-los perto de Alba Real.
O Arquiduque, excelente general, considerava imprudente atacar os maometanos, que estavam chegando pelos Bálcãs para atacar a Hungria e depois a Áustria, por assim dizer, pelas costas, enquanto os Habsburgos tinham de enfrentar o ataque dos protestantes da Alemanha e a oposição política francesa.
Situação crítica para a Casa d’Áustria. O Arquiduque Matias, parente do Imperador, generalíssimo das tropas do Império Romano-Alemão, diante dos turcos duvida se ataca ou não. Podemos imaginá-lo numa tenda magnífica, reunido com seus homens de guerra, olhando mapas sobre uma mesa de emergência, discutindo se avança ou não, com dados obtidos pelos espiões. Segundo as regras da técnica militar, a batalha é imprudente. Entra então a sentinela e diz: “Frei Lourenço quer falar”. O Arquiduque Matias aquiesce e o capuchinho entra, avisando a revelação de Deus: “Podem dar o ataque, porque vencerão”.
Há um momento de sensação, quando, ouvido o religioso, que não dá razões técnicas, mas só as ouvidas do Céu, os generais veem o Arquiduque hesitar. Alguém um tanto incrédulo diz: “Alteza, não permita essa luta. Será o fim dos exércitos e o fim da Arquifamília” (chamavam desse modo pitoresco a família dos Arquiduques).
– Não – repete Frei Lourenço. – A glória da Arquifamília está na batalha. Seus caminhos passam pelos caminhos de Deus. Para a frente! Ordena o ataque.
Naquele tempo ainda havia Fé. Os homens criam. O Arquiduque decide dar a batalha, porque Frei Lourenço lhe prometeu vitória. Batalha imprudente no terreno humano, mas prudente no terreno sobrenatural, que ia ser abençoada por Deus. Os cristãos, embora inferiores em número, acometeram com tal ímpeto que galgaram de espada em punho as trincheiras, conseguindo uma vitória completa e a conquista de Alba Real. Os turcos recuaram. Esse sucesso, que custou apenas 30 homens aos cristãos, julgaram todos que foi devido às orações de Lourenço, o qual, durante todo o combate, montado em um cavalo, animava os soldados a combaterem pela fé.
Que cena magnífica! O capuchinho montado a cavalo, segurando as rédeas com uma mão e a cruz com outra. E o tempo inteiro percorrendo as fileiras e estimulando à luta, prometendo o Céu para quem morresse.
E aqueles homenzarrões, com parte do armamento ainda de metal, tendo de enfrentar tiros de canhão ainda incipiente, projéteis com pedras, e a carga contrária dos maometanos, o ouvem tão inflamados que vão com ímpeto, fazendo os maometanos flectirem e fugirem. Podemos imaginar como foi o declínio da tarde sobre Alba Real conquistada pelos católicos. A alegria das tropas católicas diante do milagre evidente. O Arquiduque talvez na casa do governador maometano de Alba Real; todos descansando nos vários lugares da batalha. Repicam os sinos. Frei Lourenço está chamando para a prece. A igreja está cheia. Entram, ele está junto ao altar e canta um magnífico Te Deum. Isso é viver!
Revista Dr. Plinio, Janeiro/2003, n. 58, pp. 21 a 25.