Para melhor celebrarmos o dia da Morte de Jesus, nada melhor que contar um de seus frutos, muitos anos após o seu sacrifício em Jerusalém. Esta história se passa nos idos séculos XVIII, quando a impiedade, ratificada pelas revoluções industriais, tinha novas formas de soberania: é o conto do "Vós morrestes por mim e eu não me importo com isso".
Nosso personagem, como tantos de seu século, zombava ativamente da fé cristã. Para ele, esclarecido pelos ideais iluministas, baseado nas facilidades e comodidades mais recentes, o credo católico era atrasado e muito impertinente. Por isso, na sexta-feira santa, sabendo que era importante para os cristãos, postou-se na praça principal da cidadezinha e, diante da catedral, proferia insultos e os repetia constantemente, cercado de seu grupo de bandidos e outros de caráter duvidoso.
Em determinado momento, instado pelos seus a ser o mais zombeteiro, faz uma promessa maligna: iria até o padre que atendia confissões, e só sairia dali com uma suposta “absolvição”, parodiando um homem de fé. Seus conterrâneos, valendo-se da brincadeira, deviam esperar até que ele voltasse, com certeza dando risadas da confissão e da religião. O homem, tomado de um mau espírito enorme, foi, pois, diante do padre que serenamente ficava em seu confessionário.
A primeira impressão do personagem foi o ambiente. A igreja estava em uma semipenumbra, iluminada em sua maioria pela luz doce e suave que penetrava pelos vitrais coloridos. Estava vazia, pois a cerimônia já havia terminado, e todos já haviam ido para suas casas. Um silêncio pairava no ambiente, um silêncio de morte e luto. A entrada grosseira do homem chamou a atenção do sacerdote, que se via rezando o terço por entre as cortinas do confessionário.
O mau homem se recuperou do baque do silêncio sagrado e foi arrastando os pés e bufando com impertinência. Ajoelhou-se com impávida ironia e antes mesmo de esperar o sacerdote começar a confissão, soltou todos seus pecados com exatidão como poucos fazem.
O homem não silenciou enquanto não terminou a última de suas monstruosidades. O padre, tranquilo, sagaz, perguntou se ele se arrependia de seus pecados. “Arrependimento?!”, perguntou o infame, “não sei nem quero saber o que é isso! Apenas me dê, padre, a absolvição, que vou embora”.
“Não posso absolve-lo, senhor, se não houver de sua parte arrependimento”.
Mas o homem insistiu tanto e tanto que o sacerdote, movido por uma graça de Deus, fez-lhe uma proposta:
“Senhor, se cumprir uma simples penitência antes da absolvição, eu prometo que lhe dou o perdão dos pecados”
“Ah, pois então ótimo! Qual é a condição, padre?”
“Você deve ir diante do crucifixo da igreja e bradar por 10 vezes: ‘Vós morrestes por mim e eu não me importo!’.
“Só isso?”
“Somente, e prometo que darei a absolvição a você, após esta condição ser cumprida”.
O sacerdote, dito isto, retirou-se do confessionário e saiu da igreja, deixando o falso penitente só.
Ele, então, foi até a nave central da catedral, que, pelo fato de ser sexta-feira santa, tinha o altar desornado, sem tecido ou velas. O crucifixo, de tamanho proporcional a um homem, estava abaixado, posto na altura dos olhos dos fiéis, para o santo ósculo e a veneração.
A primeira sentença veio fácil e sem constrangimento: “Vós morrestes por mim e eu não me importo com isso!” A voz do homem ecoou em cada pedra, em cada canto da igreja, e voltou a seus ouvidos seca, ruidosa. Ele, naturalmente, olhou o crucificado. Seus olhos caíram nas chagas e na ferida do costado.
“Vós morrestes por mim e eu não me importo com isso”.
A sua última palavra saiu baixa, saiu tremida. O que estava acontecendo com ele? Que feitiço essas palavras estavam realizando?
“Vós morrestes por mim e eu... e eu... não me importo com isso!”
Gaguejando? Ele? O que acontecia com sua possante ironia? Seu sarcasmo inabalável? E o que era aquele caroço na garganta, aquele mal-estar na boca do estômago?
“Vós morrestes por mim, e eu não me importo...”
Lágrimas: o mau homem caiu de joelhos, chorando. De repente, veio a tona, em sua mente, as imagens de todos os horrores que ele causara: todo roubo, toda agitação, toda vilania que terminara em mortes alguma vezes, lhe pressionavam o coração. E, em sua frente, aquele homem, que sem culpa alguma, tinha sofrido muito.
“Vós morrestes por mim!” Ele estava acabado, desabado sob o peso de sua maldade. Não entendia bem: queria conforto ao mesmo tempo que queria justiça. Queria um colo que lhe acolhesse, mas sentia nojo de si.
“E eu não me importo com isso...” Por que fora tanto tempo tão mal? Por que fingira tanto tempo sua força quando era um covarde? Por que não fora tão forte como aquele que se deixou matar por todos, que se deixou matar por ele?
“Vós morrestes...” O crucificado estava todo ali, chagado, maltratado, seus olhos semiabertos, suas mãos estraçalhadas pelos pregos, sua fronte coroada de espinhos. Mas parecia tão tranquilo, tão em paz, numa paz que ele, soberano do esclarecimento, nunca alcançara. Como atingir esta paz? Como achar a cura para o desprezo de si mesmo?
Nesta hora, o real penitente sente uma mão em seu ombro. Era o sacerdote que lhe acolhia com um sorriso de bondade imensa. Quando deu por si, estava novamente no confessionário, chorando, contando novamente suas maldades, mas agora com arrependimento. E, depois de tantos relatos, o padre concedeu-lhe o maior dom: a absolvição.
Peçamos a Deus, Nosso Senhor, nesta Sexta-feira Santa, que nos toque com graças especiais de arrependimento, de amor e conversão.