Naquele tempo: 29 João viu Jesus aproximar-Se dele e disse: “Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo. 30D’Ele é que eu disse: ‘Depois de mim vem um Homem que passou à minha frente, porque existia antes de mim’. 31 Também eu não O conhecia, mas se eu vim batizar com água, foi para que Ele fosse manifestado a Israel”. 32E João deu testemunho, dizendo: “Eu vi o Espírito descer, como uma pomba do Céu, e permanecer sobre Ele. 33 Também eu não O conhecia, mas Aquele que me enviou a batizar com água me disse: ‘Aquele sobre quem vires o Espírito descer e permanecer, este é quem batiza com o Espírito Santo’. 34Eu vi e dou testemunho: ‘Este é o Filho de Deus!’” (Jo 1, 29-34).
Gozavam nossos primeiros pais de extraordinária felicidade no Paraíso. Além de viverem na amizade com Deus, eram impassíveis à dor e a incômodos físicos; dominavam toda a criação material, inclusive os animais, e, pelo dom de integridade, encontravam-se livres de qualquer perturbação interior. A razão coordenava-lhes inteiramente as paixões, sem nunca se desviar dos rumos indicados pela fé. Dotado de ciência infusa, Adão devia ser, ademais, um varão pródigo em conselhos e sábias observações.
Contudo, quando ele e a mulher desobedeceram ao Criador, estabeleceu-se em sua natureza uma fundamental desordem, pela qual as leis da carne e as do espírito entraram em conflito. Um verdadeiro torvelinho de aflições e de solicitações para o mal se levantou em suas almas, e eles se tornaram incapazes, por suas próprias forças, de praticar de maneira estável os Mandamentos. Esta é a pior desgraça decorrente da culpa original, muito mais terrível que qualquer angústia, provação, doença, ou mesmo a morte: viver nas trevas do pecado, tendo perdido o claro entendimento de todas as coisas e a inerrância do juízo.
A humanidade atravessou milênios nesse estado de maldição, para o qual não havia remédio. Inúmeras quedas dos descendentes de Adão nos são relatadas pelas Escrituras: os desastres precedentes ao dilúvio, os desatinos que culminaram na construção da Torre de Babel, as reiteradas infidelidades do povo eleito à aliança com o Deus de Israel…
Entretanto, dessa condição péssima passamos à melhor das situações, graças à palavra de uma Virgem. Com seus dons místicos e proféticos, Maria idealizou em seu Sapiencial Coração como seria o Salvador prometido e tomou-Se de grande amor por Ele. Desejava servi-Lo, enquanto escrava de sua Mãe, e rezou com ardor pedindo sua vinda. Ao receber a visita do Anjo para Lhe anunciar os desígnios da Providência a seu respeito no plano da Encarnação, Nossa Senhora respondeu: “Faça-se em Mim segundo a tua palavra” (Lc 1, 38). E com esse “fiat!” tudo se solucionou! Em seu seio puríssimo o Verbo Eterno Se fez Homem, para que nós nos tornássemos filhos de Deus.
É esta a maravilha que o Evangelho do 2º Domingo do Tempo Comum nos convida a contemplar, apresentando-nos Jesus como Aquele que tira o pecado do mundo.
O Evangelho de São João se destaca em relação aos sinópticos por sua admirável riqueza de pensamento, propiciada, entre outros motivos, pelo fato de ter sido escrito principalmente para refutar os desvios doutrinários que grassavam entre os primeiros cristãos, em especial os de cunho gnóstico. O combate a um inimigo interno sempre se apresenta mais acirrado que qualquer batalha externa, e muitas foram as lutas enfrentadas pelo Apóstolo contra os hereges de seu tempo. Não sem razão o Discípulo
Amado também é chamado “o Teólogo”.
Assim, além do belíssimo prólogo e da insuperável Oração Sacerdotal, encontramos no quarto Evangelho diversos trechos de grande profundidade teológica, como o recolhido pela Liturgia deste domingo.
Antes de entrar na análise da mencionada passagem, vale a pena ressaltar a ausência de alusão ao Batismo de Jesus no texto de São João.
Sendo antigo discípulo do Precursor e nutrindo por ele autêntica veneração, possuía o Evangelista motivos suficientes para mencionar um acontecimento no qual seu primeiro mestre, aquele que o conduzira a Nosso Senhor, havia desempenhado tão importante papel.
Preferiam eles seguir alguém que lhes estivesse mais próximo, pois submeter-se a um Mestre divino exigia, no fundo, uma radical mudança de vida. Por isso, rejeitaram Nosso Senhor Jesus Cristo quando Ele Se apresentou, provocando uma cisão tão violenta naquele conjunto que, se São João Batista não houvesse sido morto, acabaria por sofrer horríveis traições.
Os versículos selecionados para este domingo se inserem no relato dos primeiros dias da atuação pública de Nosso Senhor que abre o quarto Evangelho.
Logo no início, vemos o filho de Zacarias e Isabel dar seu testemunho a respeito de Jesus à comitiva de sacerdotes e levitas enviada pelos judeus de Jerusalém, os quais o submeteram a um interrogatório sobre sua identidade e missão. Ao concluir a breve narração, o Discípulo Amado indica: “Este diálogo se passou em Betânia, além do Jordão, onde João estava batizando” (Jo 1, 28).
O Precursor se encontrava, portanto, junto às águas que correm na parte meridional do Jordão, no mesmo local onde pouco antes batizara o Senhor. Ali se daria também, no dia seguinte, o episódio abordado nesta Liturgia.
Naquele tempo: 29a João viu Jesus aproximar-Se dele…
De onde vinha o Salvador, e para onde Se dirigia? Não se sabe. O certo é que, depois do Batismo, Ele havia passado quarenta dias no deserto, durante os quais fora tentado por satanás. Quiçá estivesse regressando dali nessa ocasião em que o Precursor O vê novamente.
Quando alguém conhece a fundo uma doutrina e se depara com uma pessoa que a exprime com perfeição, sua reação natural é de maravilhamento, o qual se traduz numa exclamação. São João Batista vivia unicamente em função do Messias, meditando e pregando sobre Ele. Por isso, ao avistar Jesus não pôde guardar silêncio: de seus lábios brotaram três preciosas afirmações, transcritas a seguir.
29b…e disse: “Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo”.
Vivendo em um mundo que perdeu o senso da simbologia e se desabituou de pensar no significado das maravilhas saídas das mãos de Deus, resulta-nos difícil alcançar o verdadeiro sentido da figura empregada por São João Batista.
Ensina São Paulo que “todas as coisas nos céus e na terra, as criaturas visíveis e as invisíveis” (Col 1, 16) foram criadas em Nosso Senhor Jesus Cristo. “Ele é a imagem de Deus invisível, o Primogênito de toda a criação” (Col 1, 15). Assim, ao criar o cordeiro, animal sempre dócil e tranquilo, que não solta um único gemido ao ser levado ao matadouro e permanece silencioso mesmo ao lhe tirarem a vida, quis o Pai oferecer-nos uma imagem de seu Filho Eterno, que Se encarnaria para nos salvar.
Não nos olvidemos, entretanto, de que Jesus será chamado também Leão de Judá. Manifestando outro extremo de perfeição, o nobre felino, dotado de juba imponente e extraordinário rugido, é considerado a justo título o rei dos animais, o que o torna símbolo da força e majestade de Cristo.
Cabe observar que não consta no Evangelho indicação alguma de quem seriam os interlocutores de João Batista nesse momento. Com efeito, não se tratava de palavras proferidas para os circunstantes. Se, no dia anterior, ele falava aos sacerdotes e levitas, atendendo à curiosidade dos judeus, agora é à História que se dirige. Sua voz clama e não se extingue, pois se propaga pelos séculos até atravessar os umbrais do fim dos tempos, e continuará a ecoar por toda a eternidade.
Há quem duvide da autenticidade dessas palavras do Precursor, aventando a hipótese de terem sido colocadas em seus lábios pelo Evangelista, mas existem fortes argumentos que provam o contrário.
Em primeiro lugar, quando São João escreveu seu Evangelho ainda estavam vivos muitos dos que haviam seguido o Batista e conhecido pessoalmente Jesus. Se, por absurdo, ele houvesse incluído qualquer episódio contrário à realidade, não faltaria quem o impugnasse e criasse complicações já naqueles primórdios da Igreja.
Ademais, o Precursor é elogiado pelo Divino Mestre como o maior de todos os homens (cf. Mt 11, 11). Portanto, se os Apóstolos sabiam algo a respeito do Redentor, não teria sentido que João Batista o desconhecesse. E, se sua missão consistia precisamente em ir adiante do Salvador preparando-Lhe os caminhos, como poderia ignorar os principais mistérios sobre sua Pessoa?
Ainda sobre esse primeiro versículo, convém frisar que o cordeiro constituía, para os judeus, um símbolo perfeito e acabado da transição do estado de maldição para o de bênção, por tratar-se do animal indicado pelo Altíssimo para ser imolado e servido nas cerimônias pascais.
A origem dessa tradição remonta à noite em que os israelitas foram libertos da escravidão no Egito e partiram rumo à Terra Prometida através do Mar Vermelho, sob o comando de Moisés. Deus lhes prescreveu, para tal ocasião, uma ceia na qual seria servido um cordeiro ou um cabrito “sem defeito, macho, de um ano” (Ex 12, 5), imolado no mesmo dia à hora do crepúsculo.
Em sinal de gratidão, a memória desse dia seria celebrada todos os anos com uma festa em honra do Todo-Poderoso. E foi justamente na época da comemoração da Páscoa que se deram a prisão e a Morte de Jesus.
30 “D’Ele é que eu disse: ‘Depois de mim vem um Homem que passou à minha frente, porque existia antes de mim’”.
Quando o Verbo Se fez carne no seio virginal de Maria, havia seis meses que São João Batista vinha sendo gestado por Santa Isabel, conforme o Arcanjo comunicou a Nossa Senhora: “Está no sexto mês aquela que é tida por estéril” (Lc 1, 36). Torna-se claríssima, portanto, a declaração da divindade de Cristo feita pelo filho de Zacarias: o nascimento do Percursor precedeu no tempo ao do Messias, mas este, sendo Deus, já existia desde toda a eternidade.
Essa verdade incomodava os gnósticos, contra os quais combatia o Evangelista, pois esclarecia que Jesus não era um mero receptáculo da divindade, mas o próprio Homem-Deus: a natureza humana havia se unido hipostaticamente à divina na Segunda Pessoa da Santíssima Trindade. Por isso o Apóstolo Virgem se delicia em registrar essas afirmações do Batista, apresentando-as como documento de autoridade.
31 “Também eu não O conhecia, mas se eu vim batizar com água, foi para que Ele fosse manifestado a Israel”.
Enquanto Precursor, é evidente que São João recebeu comunicações extraordinárias do Espírito Santo a respeito de Nosso Senhor. Do contrário, jamais teria elementos suficientes para anunciá-Lo. Ao afirmar que “não O conhecia” ele se refere, portanto, ao período anterior a tais revelações.
Faz também questão de frisar ser seu batismo realizado com água, para diferenciá-lo do de Jesus, o qual batizará “no Espírito Santo e em fogo” (Mt 3, 11). Alma restituidora por excelência, deixa consignado nesse versículo a essência de sua missão: predispor o povo eleito à ação do Redentor. Para Ele direciona todos os êxitos de seu apostolado, enquanto procura apagar-se cada vez mais, como dirá adiante: “Importa que Ele cresça e que eu diminua” (Jo 3, 30).
Comentando essa passagem, Santo Agostinho faz uma interessante observação: “João recebeu o ministério de batizar com a água da penitência para preparar o caminho do Senhor, quando Ele ainda não havia Se manifestado. Entretanto, a partir do momento em que o Senhor Se tornou conhecido, já não era necessário preparar-Lhe o caminho. Ele mesmo Se constituiu em caminho para aqueles que O conheciam”.
32E João deu testemunho, dizendo: “Eu vi o Espírito descer, como uma pomba do Céu, e permanecer sobre Ele”.
Somente por uma revelação poderia o Precursor ter uma noção tão clara da Santíssima Trindade. Nos versículos anteriores tratou sobre a Segunda Pessoa, agora declara que viu a Terceira, e mais à frente mencionará a Primeira.
Em um brevíssimo discurso, faz uma síntese teológica perfeita do cerne do mistério trinitário e da Encarnação, Paixão e Morte de Jesus; ou seja, dos principais mistérios de nossa Fé. Quantas maravilhas o Espírito Santo deve ter revelado a São João Batista ao longo da vida!
33 “Também eu não O conhecia, mas Aquele que me enviou a batizar com água me disse: ‘Aquele sobre quem vires o Espírito descer e permanecer, este é quem batiza com o Espírito Santo’”.
Chama a atenção o fato de repetir que, até o Batismo de Nosso Senhor, ele “não O conhecia”. Como compreender tal afirmação se, conforme narra São Mateus, João relutou em batizar Jesus quando O viu, dizendo: “Eu devo ser batizado por Ti e Tu vens a mim!” (Mt 3, 14)?
É novamente Santo Agostinho quem nos oferece uma explicação das palavras do Precursor: “João aprende sobre Aquele que já conhecia; porém, só aquilo que ainda não sabia. O que ele conhecia? Que aquele era o Senhor. E o que ignorava? Que o Senhor jamais transferiria para homem algum o poder de batizar, mas só haveria de passar o ministério: o direito, a ninguém; o ministério, sim, a bons e maus”.2
No sacerdócio da Nova Lei, quem administra um Sacramento o faz em nome e com o poder de Cristo. Por isso frisa o Bispo de Hipona: “Que os ministros sejam santos, se assim desejarem. Todavia, se os que ocupam a cátedra de Moisés não são justos, então quem me dá segurança é o meu Mestre, do qual o Espírito testifica: ‘Este é quem batiza’”.3
34 “Eu vi e dou testemunho: ‘Este é o Filho de Deus!’”
São João Batista viu o Espírito Santo descer sobre Nosso Senhor em forma de pomba, e isso serviu de confirmação para aquilo que lhe fora revelado.
Gerado pelo Pai desde toda a eternidade e idêntico a Ele, o Verbo é seu único Filho por natureza. Esta verdade transcende tanto a inteligência humana, e até a angélica, que só a assimilaremos na glória, mediante um empréstimo da luz do Cordeiro Deus. A fé recebida no Batismo apenas ampara nossa inteligência para aceitá-la, mas não para entendê-la.
Sabemos pelas páginas do Antigo Testamento que um dos modos de realizar essa reparação consistia no oferecimento de uma vítima expiatória. E devia haver efusão de sangue, por ser este o símbolo da vida. Imolavam-se animais em sinal de louvor, ação de graças ou petição, mas, sobretudo, para satisfazer a honra de Deus ultrajada por algum pecado.
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Em um dos momentos auge da História Sagrada, por exemplo, Abraão é convocado por Deus a oferecer em holocausto seu único filho, Isaac. Sobre o menino pairava a promessa feita pelo Senhor de que o patriarca, já avançado em idade, teria uma descendência tão numerosa quanto as estrelas do céu e a areia das praias (cf. Gn 13, 16; 15, 5).
Abraão, porém, não vacilou. Encontrando ali um cordeiro preso pelos chifres num espinheiro, Abraão o tomou e o apresentou como vítima em lugar de seu filho (cf. Gn 22, 3-13).
No entanto, se reuníssemos todos os cordeiros criados, desde o primeiro saído das mãos do Divino Artífice até aqueles que servirão de alimento para Elias no fim do mundo, e os imolássemos em holocausto, não obteríamos o perdão de um pecado venial sequer. Com efeito, por ser uma ofensa cometida contra Deus, o pecado tem gravidade infinita e só pode ser expiado por uma vítima de valor infinito.
Como, então, reparar a falta de nossos primeiros pais e todas as outras que lhe seguiram? Somente o Sangue de um Cordeiro que fosse Filho de Deus seria capaz de tirar o pecado do mundo. E assim aconteceu: a própria Segunda Pessoa da Santíssima Trindade Se encarnou e ofereceu-Se como Vítima imaculada e perfeitíssima pela humanidade, num ato inteiramente lúcido, voluntário e livre. Por essa satisfação apresentada ao Pai, abriram-se de novo para os homens as portas do Céu.
O Evangelho do 2º Domingo do Tempo Comum, tão rico em considerações teológicas sobre o cerne de nossa Fé, abre diante de nós as vias magníficas da confiança no perdão de Deus.
Quando nos recordarmos de nossas faltas passadas, ou nos afligirmos por nossa fidelidade futura, devemos nos lembrar desta proclamação feita por São João: “Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo”. Então teremos a certeza de que Ele quer nos limpar de todas as nossas misérias.
Jesus Se ofereceu para ser imolado na Cruz e verteu até a última gota de Sangue por cada um de nós individualmente. Se Adão e Eva houvessem sido fiéis e, em consequência, a humanidade inteira tivesse nascido no Paraíso, mas uma única pessoa pecasse, Nosso Senhor estaria disposto a sofrer a Paixão a fim de livrá-la da condenação eterna. Portanto, devo confiar em que, se eu reconhecer minhas faltas e Lhe pedir perdão, Ele me purificará e me assistirá em todas as dificuldades, sobretudo no momento da morte.
Quem não teme a suprema tribulação, tão terrível que até ao próprio Cristo fez tremer? Contudo, saber que Deus Se fez Homem e Se dispôs a morrer por mim me enche de esperança no perdão. Por seus méritos infinitos, obterei misericórdia e serei assistido pelos dons e graças do Espírito Santo na hora final.
Para nos mantermos nessa clave de abandono e confiança, nunca nos esqueçamos da maior prova do amor de Deus para conosco, depois da Redenção: Ele nos deixou Maria Santíssima, Mãe extraordinária, pervadida de afeto e benquerença por cada um de nós e disposta a tudo para nos amparar.
Que, pela intercessão d’Ela, nunca nos esqueçamos de nossa condição de filhos de Deus e templos da Santíssima Trindade. Se nos mantivermos nesta perspectiva, a graça tornará fértil a terra de nossas almas e fará que nela germine uma nova era histórica, o Reino de Maria! (Revista Arautos do Evangelho, Janeiro/2020, n. 217, p. 8 a 15).
1 SANTO AGOSTINHO. In Ioannis Evangelium. Tractatus IV, n.12. In: Obras Completas. Madrid: BAC, 1955, v.XIII, p.151.
2 Idem, Tractatus V, n.11, p.171; 173.
3 Idem, n.15, p.179