Ler as Sagradas Escrituras não é garantia de que você vai entendê-la. Antes de desencorajar, porém, o nosso intuito é criar um mapa para que a leitura da Bíblia seja mais fácil, mas navegável para o nosso dia a dia. Compilada muitos séculos antes de nascermos, seus termos e muitas vezes aparentes ambiguidades são capazes de confundir, e pior, de ser manipulada sua interpretação. Por isso, para fazer uma boa leitura da Bíblia, é necessária uma pré-ação, uma preparação para poder usufruir melhor de seus ensinamentos, e esta começa muito antes de abrir suas páginas. Vamos, portanto, a elas.
Bíblia, do grego, significa a “totalidade de ser livro”, ou, numa tradução mais livre, o livro por excelência, o principal livro. Ela recebeu esse nome anos depois da ascensão de Cristo, quando os apóstolos começavam a ordenar o que seria Igreja Católica do que era a Sinagoga dos Hebreus. Como os doze principais seguidores de Jesus eram do povo de Israel, era normal que tomassem como herança algumas de suas relíquias. Esse foi o Antigo Testamento, papiros que eram lecionados no Templo nos sábados, e que continham profecias e comunicações divinas. Acrescentou-se a isso os novos relatos da ação do Messias, mais as cartas apostólicas, ensinamentos novos revestidos de autoridade, e temos o Novo Testamento.
O grupo responsável por selecionar os livros da Bíblia foram os apóstolos indiretamente, através de seus discípulos. A assembleia que compilou a versão das Sagradas Escrituras que hoje lemos era composta por 70 anciões, sábios e praticantes da religião, que, de acordo com seus estudos e com a tradição que receberam, tanto da religião hebraica quanto dos apóstolos, montaram a Septuaginta (dos setenta), e que se tornou a versão oficial que a Santa Igreja adotou como inspirada pelo Espírito Santo, e que não contém erros.
Isso quer dizer que ainda haveria outros livros ou papiros santos que foram deixados de lado? Sim, e esses são os livros conhecidos como apócrifos. Eles não foram acrescentados à Bíblia porque não se conseguia provar a historicidade dos relatos. Alguns dos livros apócrifos são muito inocentes, como alguns que descrevem a infância de Jesus. Outros são mais perigosos e contêm doutrina que desvirtua a Missão de Cristo, colocando-o como um homem como outro qualquer, susceptível de pecados. A alguns a Igreja condenou formalmente, a outros permite que sejam lidos, mas não lhes dá autoridade. Porém, infalíveis como a Bíblia, só há os 46 do Antigo Testamento e 27 do novo, totalizando os 73 livros sagrados.
Da Septuaginta, toda escrita em grego, São Jerônimo, que sabia tão bem o grego quanto o latim, a traduziu, originando a Vulgata, que foi, oficialmente, a versão base de todas as traduções que possuímos hoje. Ela permaneceu como a única do século II até o século XX, quando o Santo Padre o Papa São João Paulo II criou uma comissão para fazer uma revisão do grego para o latim da Vulgata. Esta recebeu o nome de Nova Vulgata, tornando-se ela a versão oficial para as demais traduções nos outros idiomas.
Em primeiro lugar, vamos falar de números. Sendo a base das três maiores religiões monoteístas, pois a Torá, dos hebreus, contém alguns livros do Antigo Testamento, e o Corão foi o livro revelado a Maomé a partir da leitura da Bíblia, temos que a Bíblia é o livro mais lido do mundo, e há muitos séculos já é assim. Além disso, as três grandes vertentes do cristianismo, a Católica, a Ortodoxa e a Protestante têm a Bíblia como base de sua fé.
Na Igreja Católica, a Bíblia recebe a denominação de Revelação Pública, a única que possuímos. Para o fiel católico, é obrigatório crer em suas palavras, pois, para nós, todas elas foram inspiradas pelo Espírito Santo, Deus, que é infalível. Junto com os Ensinamentos dos primeiros padres da Igreja, responsáveis por formular e esquematizar a doutrina católica, a Bíblia é o elemento escrito da tradição, e sua leitura se faz necessária para entender melhor o plano de Deus e a História da Salvação.
Por isso, um fiel católico tem obrigação de ler, mesmo que em partes e de modo inconstante, as Sagradas Escrituras. Sabendo disso, e sabendo das dificuldades do povo de alfabetizar-se (lembremos das invasões bárbaras e do clima de insegurança que se instalou), foi instituído que nas Santas Missas haveria a leitura da Bíblia, o que originou a Liturgia da Palavra. Santo Agostinho diz que a Liturgia da Palavra, hoje composta por uma leitura, depois um salmo, em seguida o evangelho e o sermão do Padre equivalem à liturgia da Eucaristia, ou seja, a mesma importância que um católico dá a Hóstia consagrada, que é Jesus, deve ser dada as leituras da Bíblia na Missa.
Por definição, a Bíblia é inspirada pelo Espírito Santo, e, como tal, infalível como só um Deus pode ser. Isso significa que não há erros em suas páginas, e que o cristão pode se aproximar desta fonte de água viva e tomá-la sem receio. Porém, não podemos dizer o mesmo da interpretação da Bíblia, pois, como sabemos, muitas de suas passagens são um tanto complicadas. Como fiéis, estamos adentrando um terreno sagrado, a revelação de um Deus para mentes humanas. É lógico, portanto, que nossa incapacidade seja a autora das ambiguidades e confusões. Assim, o católico precisa fazer um ato de fé quando não entender alguma passagem: “meu intelecto limitado agora não compreende o que esta mensagem que me dizer. Porém, sabendo da capacidade de Deus, eu amo e respeito este versículo”.
Por outro lado, respeitar um trecho não quer dizer aceitá-lo sem criticá-lo. E critica aqui vem no sentido de analisar, pôr à prova, estudar o que cerca. E aqui chegamos num ponto muito importante que muitos negligenciam: o estudo do contexto, ou, para os mais íntimos, a hermenêutica. Todo texto fora de contexto é pretexto, diz o ditado. E a revelação de Deus ao homem contém, é claro, elementos que o humano pode assimilar, como, por exemplo, suas vivências, o ambiente que o cerca e os fatos sociais que vive. É por isso, por exemplo, que a maioria das metáforas de Jesus é sobre o pastoreio e à agricultura, pois era o que cercava os hebreus da época.
Assim, antes de afirmar qualquer coisa, o interpretador precisa de estudo. Precisa conhecer os costumes da época, os trejeitos da linguagem. Querem ver? Na seguinte passagem: “Pois mais fácil é passar um camelo pelo fundo de uma agulha, do que entrar um rico no reino de Deus” (Lc 18, 24-25), foi descoberto que os hebreus tinham um tipo de nó que se chamava “camelo”. Será que Jesus quis dizer o nó ou o animal? Não sabemos, e provavelmente só descobriremos no Céu, perguntando a Ele. Porém, isso não muda o cerne da lição que o Divino Mestre quis passar: é difícil, muito difícil que um apegado aos bens materiais vá ao Paraíso.
É por isso que temos muitas falsas interpretações hoje: o acesso à Bíblia foi democratizado, mas os estudos que a circundam não. É muito fácil fazer sua leitura e esquecer os inúmeros livros de comentários de santos muito mais estudiosos que nós. Por isso, uma ação preparatória essencial para o leitor da Bíblia é se revestir de humildade e procurar saber das centenas de outros que vieram antes dele e estudaram a Bíblia com muito mais propriedade, inclusive indo fazer estudos arqueológicos in loco. É o caso de Santa Helena, mãe de Constantino, que foi em busca da verdadeira Cruz de Cristo na Palestina, mesmo três séculos depois de Jesus subir aos Céus. Aquele que abre as Sagradas Escrituras e esquece do material e da análise que vem de seus predecessores na fé já começa errado.
Dito tudo o que vem anteriormente, já com fé ardente, humildade no coração e cabeça no lugar, vem o exercício da leitura propriamente dito. Para o cristão simples, leigo e que não tem muito estudo, por onde deve começar a leitura da Bíblia? Um percurso comumente indicado é começar pela Leitura dos Atos dos Apóstolos. Ali, há uma narrativa que se assemelha a uma novela cristã: são muitos personagens, e todos eles tocados profundamente pela graça e realizando obras portentosas. Nesta leitura, o católico pode comprovar o quanto estavam impulsionados pelo Pentecostes. E pode ver, com seus próprios olhos, o que um santo consegue fazer quando sua fé é gigante.
A leitura dos Atos dos Apóstolos aquece o coração, torna-o maleável, enche os olhos de amor e ensina que, apesar de todas as dificuldades, há um Deus ainda maior por detrás delas. Com esses sentimentos, o fiel pode dar o próximo passo: é conhecer a vida de Jesus, o autor daquelas proezas que os Apóstolos praticaram. O mais recomendado é o Evangelho de Lucas, que traz um relato bem minucioso da vida de Cristo.
Os outros evangelistas, como Mateus e Marcos, tem certas características que assemelham ao de Lucas, e por isso podem ser deixados de lado num primeiro momento, para um estudo mais aprofundado depois. Já o evangelho de João é um exercício de mente a parte: a sua escrita teológica, toda ela muito simbólica, com termos próprios, pode ser muito absorvida por aquele que a lê com um comentarista mais profundo. Por exemplo, ler os comentários ao evangelho de São João de Santo Agostinho é altamente indicado, mas para aqueles que querem se aprofundar mesmo na Teologia.
Depois de lida a vida de Cristo, e entendido a doutrina que Ele veio trazer, podemos passar ao Antigo Testamento. Os livros iniciais, chamado de Pentateuco, que contam a História da Criação, de Abraão, Isaac e Jacó podem ser os primeiros, mas sempre sob aquela ótica: Deus se comunica a um povo em específico, e respeita muito de suas limitações. É por isso que tantos atos que podem ser censurados hoje em dia eram permitidos por Deus, pois Ele não podia avançar sobre o livre-arbítrio do povo escolhido. A circuncisão, por exemplo, é um ato que foi abandonado pela Igreja logo nos primeiros anos da comunidade católica, mas era uma imposição sobre o povo hebreu pois, para uma época em que a cultura da marca era muito forte, foi necessário um sinal sensível, físico, que demostrasse que aquele era o povo da Aliança.
É por isso que, tendo já contato com o Novo Testamento, o cristão consegue mais fácil transitar pelo Antigo Testamento: ele sabe que Jesus veio para corrigir muitos destes erros e instaurar uma nova ordem. Assim, a leitura pode dar continuidade segundo as necessidades da vida. Por exemplo, transformar a leitura dos salmos em oração pela manhã; fazer uma comunidade de estudo em torno das cartas de São Paulo, ou ainda conversar com um padre sobre a providencialidade de livros como Ester ou Macabeus.
Espero que este guia mais aprofundado da leitura da Bíblia possa ajudar você, caro leitor, a se aventurar mais pelas páginas santas, entendendo melhor a Revelação que nos foi dada de presente. E, acima de tudo, para uma boa leitura da Bíblia, não pode faltar uma vida de oração. Rezar é se comunicar com Deus, e nesta conversa Ele nos ilumina com sua sabedoria, o que nos faz compreender ainda melhor as passagens das Sagradas Escrituras.