A morte na caminhada humana

Para começar o tempo litúrgico da Quaresma, uma época de purificação e preparação, a Santa Igreja instituiu a Quarta-feira de Cinzas.

Nesta, somos lembrados, através da cerimônia de imposição das cinzas, que somos pó e ao pó voltaremos.

Quero, para maior compenetração da fragilidade humana e dependência de nosso Criador, deixar aqui como forma de artigo o testemunho de um padre dos Arautos do Evangelho que celebrou, no ano passado, um velório na Quarta-feira de Cinzas.

Antes da Missa, uma reflexão

O dia amanheceu nublado. Não havia mais aquela chuva fraca mas constante que permaneceu durante o dia todo de carnaval.

Era como se Deus tivesse, com a garoa do fim de noite, lavado de todos os cantos da terra os pecados carnavalescos e permitido que um novo vento, um novo frescor soprasse.

O céu me comunicava esperança, mas não o otimismo do bobo; parecia-me a resignação do herói que vencia uma batalha, mas sabia que ainda estava em guerra.

Eu já estava na sacristia. Enquanto me paramentava, ia refletindo sobre a homilia que havia preparado na noite anterior.

O esposo da falecida senhora havia ligado ao mosteiro um pouco antes do jantar, nos informando do ocorrido.

Ao abrir o livro para ver o Evangelho, dei-me conta de que o velório seria na Quarta-feira de Cinzas. As próprias leituras já faziam o sermão por mim: as passagens evidenciavam sobre a condição da mortalidade humana e a esperança que devemos sempre depositar no Senhor.

O que falar, entretanto, quando a ferida ainda é recente?

Como comunicar a esperança de São Paulo no Cristo ressuscitado e, pois, na ressurreição dos falecidos, quando a perda é tão evidente?

Há uma fala de Santa Teresinha da qual Dr. Plinio gostava muito: “Por detrás das nuvens, o céu é sempre azul”. A santa menina, em sua pequenez, mesmo nas maiores faltas de sensibilidade, continuava a crer.

Por mais que fosse difícil, essa devia ser nossa atitude também.

Um velório na Quarta-feira de Cinzas

A Missa de corpo presente tem uma característica singular para o celebrante: enquanto os presentes se concentram no altar, o sacerdote, ao olhar para a assembleia, vê também o caixão no centro.

Está ali um assistente, um representante da Igreja Padecente, a Igreja do Purgatório, quiçá da Igreja Triunfante, caso tenha ido direto ao Céu.

A Santa Igreja também dedica uma bênção especial ao túmulo do falecido. A palavra cemitério, aliás, vem, na etimologia grega, de “dormitório”. Ali estão todos aqueles que adormecem, esperando a hora de acordar de novo. O justo Juiz tocará as trombetas e nos convocará para o grande dia, o dia do Julgamento Final.

Nos poucos velórios que celebrei, essa é a hora em que os parentes sempre se emocionam. Se o choro no velório ou na Missa de corpo presente é contido, aqui as lágrimas os fazem desmoronar.

O viúvo era jovem, tal como era sua falecida esposa; esta sensação de falta de continuidade, de encerramento, do corpo que baixa à terra para não subir mais, aperta o coração de um jeito terrível.

Estou com a estola roxa, a cor da penitência, da purificação, da sobriedade. Cumprimento o viúvo, cumprimento os parentes que choram.

Aperto a mão do esposo com firmeza, olho bem em seus olhos e lhe digo: “A paz esteja contigo, meu irmão, a paz esteja contigo”. Tento comunicar minha solidariedade pela sua perda, ao mesmo tempo que quero que a esperança de que um dia ele irá revê-la o conforte. Acima de tudo, quero que ele saiba que o Deus dos vivos e dos mortos continuará a protegê-lo.

Caminho de volta para a capela do cemitério, a fim de pegar minha maleta e voltar ao mosteiro.

Enquanto caminho, a chuva começa a cair, fina, frágil. Vejo aqueles túmulos todos, organizados. Olho as folhas das copas das árvores que balançam, tranquilas.

Apesar de tudo, há uma ordenação, uma tranquilidade, uma paz no cemitério que me faz pensar no Céu.

Ao sair, penso na imposição de cinzas que farei mais tarde, em outra Missa que celebrarei.

A Santa Igreja nos avisa continuamente, em diversas celebrações, sobretudo a de hoje, que somos frágeis. Que a morte virá como um ladrão, sem ninguém poder prever o dia nem a hora.

Isto, às vezes, nos faz reflexivos no sermão, mas cinco minutos depois do final da Missa já nos esquecemos. Contudo, hoje foi um dia em que Deus nos deu um chacoalhão de seriedade.

Na Quarta-feira de Cinzas do ano que vem, quem de nós ainda estará aqui? Isto já não deveria bastar para que nos tornássemos santos?

Que Nossa Senhora me grave tal pensamento na alma, e me prepare para o dia derradeiro do Senhor: “Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós, pecadores, agora e na hora de nossa morte. Amém”.