Já vimos anteriormente que as paixões desregradas do homem, somadas ao poder das trevas, constituem no seu conjunto a “cidade do demônio”. Resta-nos dar sobre ela algumas precisões.
A escravidão “natural” ao demônio
A expressão é do próprio Jesus Cristo: “Haec est hora vestra, et potestas tenebrarum”(Lc 22, 53) — “esta é vossa hora e do poder das trevas”.
Se Jesus Cristo é a luz que veio a este mundo (cf Jo 1, 9), as trevas, sendo o contrário da luz, são portanto aquilo que se opõe a Jesus Cristo, isto é, o demônio.
Há, pois, uma “potestade do demônio”. Esta se exerce no inferno, que é o reino das trevas, e também neste mundo. E por isto o demônio é chamado “príncipe deste mundo”. Vejamos em que sentido.
Desde que o pecado original trancou para os homens as portas do Céu, eles se tornaram súditos do demônio. Com efeito, foi o demônio que arrastou Adão e Eva ao pecado pela voz da serpente (Gn 3, 1-5), fechando-lhes, assim, o Céu e provocando o desregramento das potências de suas almas, desregramento que é a fonte de todo pecado. Posto na impossibilidade de praticar o bem em razão dessa desordem, o homem era escravo de suas paixões e, portanto, do demônio, autor dessa servidão.
É verdade que, “ante praevisa merita”, em previsão dos méritos de Jesus Cristo, o homem começou a receber a graça logo depois da queda. Também é verdade que, com a Redenção, ele se tornou independente do demônio e se fez escravo de Jesus Cristo.
Não obstante, pelo pecado mortal, o homem remido rompe com Deus e volta à escravidão do demônio — “volta o cão a seu vômito”, escreve São Pedro (2 Pe 2, 22) — na qual fica durante todo o tempo em que se conservar em tal estado. E assim, mesmo depois da Redenção, o demônio tem escravos entre os homens, e estes terão mais culpa se forem cristãos, máxime se católicos. Quanto maior é a altura de que se cai, maior a queda.
Chamamos a essa escravidão “natural”, porque ela se explica quase inteiramente pela maldade natural do homem depois do pecado.
O poder das trevas preternatural
Mas há outra forma de maldade, que degrada o homem abaixo desse nível. É a que vem da ação preternatural do demônio na alma. Quando o homem se entrega a essa ação, torna-se escravo do príncipe das trevas a título muito especial.
Embora decaído de sua glória celeste, o demônio não perdeu a natureza angélica e na abjeção do inferno conserva toda a lucidez, pondo suas capacidades a serviço de seu ódio contra Deus.
Mas o inferno é um cárcere e o demônio, um condenado. Infinitamente inferior a Deus como inteligência e poder, só estende sua ação fora do inferno na medida em que a Providência o permite. E Ela o permite habitualmente.
No livro de Jó lê-se um impressionante diálogo entre Deus e o demônio. Este último, agastado com a glória dada a Deus pela virtude do patriarca, afirma que essa virtude é apenas superficial, e pede licença para tentá-lo. Deus consente. E todas as desgraças da terra se abatem sobre o heróico varão.
Cada alma tem sua história e, enquanto história de alma, vê-se que Deus permite ao demônio atormentar e tentar por todas as formas os justos, com o intuito de pôr à prova sua fidelidade. Sobre eles se exerce de mil modos — ora com violência tempestuosa, ora com pérfidos ardis, sempre com uma sedução terrível — o misterioso poder das trevas. E eles lhe resistem.
Entretanto, muitos homens não lhe resistem e se entregam ao pecado.
Note-se bem que, no caso aqui considerado, o pecado não tem por causa exclusiva as paixões humanas desregradas. Conquanto o demônio não possa obrigar o homem a pecar, pode ter, por permissão de Deus, uma ação por vezes muito grande sobre a imaginação, de sorte que por esse meio pode aliciar vigorosamente o homem para o pecado. Sobre os que, no exercício de seu livre arbítrio, não lhe resistem, o demônio pode adquirir, por punição divina, o poder cada vez maior de exercer sua ação. E, a correrem as coisas segundo seu desenvolvimento lógico, esse poder pode chegar a ser uma tirania à qual o homem só pode resistir com recursos excepcionais da graça e um esforço heróico da vontade.
Essa servidão, que pode existir em modos e graus incontáveis, é preternatural, distinta da servidão natural, considerada no item anterior.
“Preternatural” é um termo utilizado pela linguagem da Igreja para designar aquilo que é superior à natureza humana, mas é distinto da ordem sobrenatural, relativa a Deus e, portanto, superior a todas as criaturas. A ação que a graça de Deus exerce sobre o homem é sobrenatural. A ação do demônio é preternatural.
Até onde pode ir essa ação preternatural?
Afirma a Sagrada Escritura que “omnes dii gentium demonia” (Sl 95, 5), e isso foi constantemente admitido pela Igreja. Satanás tem, pois, seus altares e seus adoradores por toda a Terra.
Todo culto ao demônio é intrinsecamente tão contrário à natureza humana, as profanações de hóstias consagradas, as “missas negras” que ele muitas vezes comporta revelam um tal ódio a Deus que não se podem explicar por causas exclusivamente naturais. É preciso a atuação de algo de pior do que têm os piores homens para que sua maldade chegue a esse ponto.
À medida que, pela ação preternatural do demônio, aumentam em quantidade e em gravidade os pecados dos homens, a Justiça de Deus tende a retrair suas graças. À medida que se retraem as graças, vai ficando livre o campo para os pecados dos homens e Deus vai dando ao demônio maior liberdade de ação.
Acontece que o homem pode inclinar sua vontade livremente, quer para o lado de Deus, quer para o do demônio. Por conseguinte, conforme uma ou outra inclinação desse verdadeiro pêndulo entre o Céu e o inferno, que é o livre arbítrio humano, os homens e as nações caminham pelas veredas da virtude rumo ao Céu, ou pela larga estrada do vício rumo ao inferno.
Em nossa época de cepticismo, as afirmações de Leão XIII a respeito de tudo isso podem fazer sorrir. Nesse sorriso céptico não serão coerentes consigo os que admitem como inspiradas por Deus a Sagrada Escritura. Com efeito, a Escritura nos fala, do Gênesis ao Apocalipse, sobre duas raças espirituais em que se dividem os homens: filhos da Virgem e filhos da serpente, filhos dos homens e filhos de Deus, filhos da luz e filhos das trevas, raça de justos e raça de víboras, filhos do demônio e filhos de Deus.
Os Mandamentos, imposição arbitrária de Deus?
Os Mandamentos nos instruem sobre os atos que devemos fazer ou não fazer para salvar nossa alma. O Divino Redentor é explícito a este respeito. Ele promete a vida eterna aos que observam a Lei: “Si vis vitam ingredi, serva mandata” — “Se queres entrar na vida, observa os Mandamentos” (Mt 19, 17). E ameaça com as penas do inferno os que a violam.
Por que estabeleceu Deus esses Mandamentos e não outros? Poderia ter permitido que os homens praticassem as ações proibidas pelos Mandamentos, e condicionar a salvação à prática de atos que os Mandamentos não proíbem? Poderia, por exemplo, ter dispensado o homem do 6º mandamento, substituindo-o por outro que proibisse algum ato reputado inócuo pela moral católica?
Para Puffendorf e outros tratadistas protestantes, é fora de dúvida que sim. Para eles, os Mandamentos são arbitrários, são sacrifícios impostos a nós por Deus para provar nosso amor. Pensam, assim, que a Lei foi editada com o único intuito de nos impor sofrimentos. Mas Deus poderia perfeitamente ter escolhido outros Mandamentos, em lugar dos que estão em vigor. Em outros termos, os Mandamentos não são bons nem maus em si, e devemos obedecer a eles só porque Deus o quis.
Segundo a doutrina da Igreja, a prática dos Mandamentos realmente impõe sacrifícios que dão a prova de amor a Deus, e sem esse amor o homem não se pode salvar. Todavia, ao estabelecer os Mandamentos, Deus não escolheu ações inócuas em si, que passaram a ser más só porque Ele as proibiu. Pelo contrário, Ele as proibiu por serem intrinsecamente más.
Há, pois, para a Igreja um bem objetivo que está em certas ações, e um mal objetivo, que está em outras. Note-se a palavra “objetivo”. Não se trata de um bem ou um mal subjetivos, existentes na mente deste ou daquele homem, deste ou daquele povo, mas de um bem e um mal reais, imutáveis, que continuariam a ser bem e mal, qualquer que fosse a idéia formada por homens ou povos a esse respeito.
Em conseqüência, sendo Deus infinitamente sábio e bom, Ele não poderia ter editado uma Lei oposta à que nos deu no Monte Sinai. Deus pode tudo, menos o erro e o mal.
Esta doutrina, como se vê, está toda baseada na idéia do bem e do mal objetivos. O que se deve entender por isto?
A lei eterna
Como ensina a doutrina católica, Deus, Criador de todas as coisas, sendo infinitamente sábio, criou cada ser com uma natureza própria, dotada de atributos próprios, e com um modo de operar conforme a essa natureza. Operando de acordo com esta, todos os seres fazem a vontade de Deus. Essa vontade, presente na mente divina antes de todos os séculos, é chamada de lei eterna (Suma Teol. I-II, q. 91, a. 1; q. 93). Dela decorrem todas as outras leis.
A lei eterna, entretanto, não existe só na mente de Deus. A partir da criação, passou ela a vigorar objetivamente para os seres criados, de modo tal que, desde o seu primeiro instante, todos eles passaram a participar de algum modo na lei eterna, impressa neles pelo próprio Deus (Suma Teol. I-II, q. 91, a. 2). Contudo, as criaturas racionais participam de uma forma mais excelente.
A lei natural
O homem é capaz de conhecer, pelos recursos de sua inteligência, a vontade de Deus. Pode, assim, conhecer os seres, sua natureza, seu modo de operar, e de proceder em relação a si mesmo, ao próximo e a cada ser de acordo com a respectiva natureza, segundo a vontade divina. Sua propensão em proceder dessa maneira é chamada de lei natural (Suma Teol. I-II, q. 91, a. 2; q. 94).
Como diz São Tomás, a lei natural nada mais é do que a participação da lei eterna na criatura racional (nas criaturas irracionais essa participação se dá apenas por analogia).
A lei natural tem seu fundamento imediato, pois, na natureza humana, e seu último fundamento em Deus. Em outras palavras, a lei eterna e a lei natural não são senão a mesma vontade divina, enquanto existente em Deus e enquanto gravada no coração das criaturas racionais.
A lei divina
Como o homem tem um fim último sobrenatural, para o qual deve ser dirigido de um modo superior, não limitado apenas aos preceitos da lei natural, era conveniente e necessário que Deus lhe revelasse a lei divina, “pela qual a lei eterna é participada de acordo com esse modo superior” (Suma Teol. I-II, q. 91, a. 4).
A lei divina se tornou também indispensável em virtude do pecado original, pois a inteligência humana ficou sujeita a erros, podendo levar o homem, por debilidade intelectual, a não ver bem este ou aquele ditame da lei natural. Pior do que isso, a vontade humana passou a ser propensa ao mal, podendo facilmente induzir o homem a fechar os olhos ao conhecimento da mesma lei, e assim somar, a uma causa de erros intelectuais involuntários, outra de erros voluntários.
Estando o homem nessa profunda miséria moral, Deus veio em seu auxílio e, à lei divina em vigor na época primitiva, acrescentou os Mandamentos da Antiga Aliança, dando a Moisés, no alto do monte Sinai, as tábuas da lei.
No Decálogo estão inscritos os princípios essenciais que contêm em si toda a lei natural (Suma Teol. I-II, q. 94, a. 4, ad. 1).
Séculos depois, foi promulgada por Nosso Senhor e pelos Apóstolos a Nova Lei, que aperfeiçoou a Antiga; conservou o Decálogo e ab-rogou os preceitos relativos ao povo judeu antes da Redenção. Está ela contida na Sagrada Escritura e na Tradição.
Ordem e desordem
A ordem, como diz São Tomás, é a disposição das coisas segundo sua natureza e seu fim. O cumprimento da vontade de Deus é, portanto, a própria ordem. Pois Deus quer a disposição das coisas segundo sua natureza e seu fim. E a desobediência à vontade de Deus é a desordem. O código da ordem é, como vimos, o Decálogo.
O bem de um ser é aquilo que lhe convém, que é conforme a sua natureza e o conduz a seu fim. O mal é o contrário (Suma Teol. I, q. 48, a. 1).
Todas as criaturas não racionais movem-se conforme sua natureza e seu fim, por assim dizer cegamente. Apenas o homem, dotado de inteligência e vontade livre, tem o poder de praticar o mal. Com isto, ele desrespeita a vontade de seu Criador, e introduz a desordem na criação, isto é, em si e em torno de si.
O bem e o mal na sociedade humana
Em nossa época de estatismo exagerado, confia-se por demais no poder das leis e da administração para resolver os problemas humanos.
Essa atitude provém do fato de não nos lembrarmos suficientemente de que a matéria-prima da qual é feita a sociedade é o homem. Se a matéria-prima for boa, tudo se pode esperar do efeito de boas leis. Mas se for má, as boas leis serão radicalmente impotentes. Com fios podres, o que pode fazer o mais hábil dos tecelões? Com cidadãos corrompidos, o que pode fazer o mais perfeito dos governantes?
Se, em determinada sociedade, cada homem se portar bem nos ambientes sociais a que pertence — família, profissão, etc — toda a sociedade andará bem. Se se portar mal, toda a sociedade andará mal. Daí a necessidade da Igreja que, corrigindo e santificando os homens, é princípio vital para manter no bem a sociedade.
A Igreja, centro da História
Ora, se a Igreja é assim indispensável para o bem das sociedades, é também princípio vital das nações e dos Estados. Dai-nos — dizia Santo Agostinho — “um exército composto de soldados que observem fielmente os ensinamentos de Jesus; e assim também os governadores; e os maridos e as esposas; e os pais e os filhos; e os patrões e os criados; e os reis e os súditos; e os juízes, e até os contribuintes e os cobradores de impostos, todos sendo segundo quer a doutrina de Cristo, e veremos se [os filósofos anticatólicos] ainda ousarão dizer que essa doutrina é nociva ao Estado, ou se, pelo contrário, terão de reconhecer que é um valioso sustentáculo para o Estado” (Ep. 138 ad Marcellinum, 2, 15).
A Igreja é igualmente o princípio vital da civilização e da cultura. Qualquer que seja o sentido que se dê a essas palavras, as realidades por elas designadas contêm em si uma noção de perfeição, razão pela qual a Igreja tem de ser, forçosamente, sua alma. Em outros termos, a cultura e a civilização só são plenamente elas mesmas se forem católicas.
A contrario sensu,quanto mais uma civilização ou uma cultura vai perdendo seus valores católicos, tanto mais vai deixando de ser civilização e deixando de ser cultura.
De tudo isto se segue que a grande necessidade essencial dos povos, das culturas e das civilizações é serem católicos, e que o grande perigo para eles consiste em se afastarem da Igreja. Daí ser esta o centro de gravidade em torno do qual giram todos os fatos históricos. (Revista Dr. Plinio, Fevereiro/2003, n. 59, p. 22 a 27).