No espírito de muitos católicos se encontra subjacente uma séria objeção quanto à eficácia da oração do pecador. Não há mistério no fato de Deus atender as súplicas de uma alma reta, posto estar Ele em boas relações com os justos. Compreende-se que uma pessoa poderosa, mantendo bom relacionamento com outra que lhe é inferior, seja propensa a satisfazer os pedidos dessa última.
O mistério, porém, começa a aparecer quando se trata das preces do pecador, pois este simplesmente não merece ser atendido: seja por se achar em estado de pecado mortal, ou porque, inconstante na vida espiritual, várias vezes se mostra infiel e não costuma corresponder bem à graça.
Então, por que Deus há de atender às orações dele?
Dúvida corroborada pela Sagrada Escritura?
Claro, o problema se põe de forma mais aguda se considerarmos a fealdade do pecado mortal, o horror que Deus tem a essa falta grave e a quem a comete, impondo-se a pergunta: como alguém nesse estado esperará a benevolência divina em seu favor?
Pode-se compreender facilmente que Deus, por um ato de sua vontade, queira acolher os rogos do pecador. Mais difícil é, porém, compreender que o pecador possa ter a certeza de que o Senhor queira ouvir sua oração.
A posição razoável de um pecador diante de Deus pareceria ser esta: “Eu O ofendi, e não sei o que Ele fará, já que de vez em quando Ele atende alguns pecadores. Então, vou jogar também a minha ficha na roleta e tentar a sorte rezando alguma coisa. Deus me será propício, conforme esteja ou não de boas. Cabe a mim reconhecer a prerrogativa d’Ele de não me atender, pois eu pequei. O contrário seria afirmar que o pecador tem o direito de ser escutado por Deus, e não sei em que se basearia esse direito numa pessoa em estado de pecado mortal.”
Para corroborar essa incerteza, lemos frases terríveis da Escritura, mencionadas por Santo Afonso de Ligório. Primeiro, uma do Evangelho de São João: “Deus não ouve o pecador (Jo 9,31). Outra, mais séria, em Isaías: “Quando estenderdes as vossas mãos, apartarei de vós os meus olhos; e quando multiplicardes as vossas orações, Eu não as atenderei” (Is 1,15). E do livro dos Macabeus: “Este celerado orava ao Senhor do qual não há de alcançar misericórdia” (Mac 9,13).
Ora, ao ler essas frases, a conclusão parece ser a seguinte: “Se estou em estado de pecado mortal, sou um celerado que reza para Deus e não alcançará misericórdia.”
A muitas almas o problema se põe nestes termos pavorosos, e é assim que o devemos tratar nessa exposição.
Deus não desampara o que deseja se salvar
Com base em São Tomás e em outros Doutores, Santo Afonso de Ligório — ele mesmo um Doutor de grande autoridade — interpreta as frases da Escritura acima citadas.
É verdade, diz ele, que Deus não ouve o pecador, porém quando se trata do fautoso que pede algo necessário para a realização do seu pecado.
A situação é diferente se imaginarmos um pecador que deseje se emendar, mas tem apenas uma veleidade de se salvar… A partir desse ponto inicial, ele fará umas orações para mudar de vida, marcadas por veleidades. Apesar de todos os pecados, infidelidades, ingratidões e imperfeições, se no ponto inicial ele tiver esse anseio orientado para a salvação, ainda que débil, a oração será atendida porque agrada a Deus.
É preciso analisar bem qual é o alvo da oração, para poder classificá-la. Aprofundando sua explicação, Santo Afonso de Ligório continua: quem está rezando para se salvar, ainda que faça uma oração tíbia, pode estar certo de que Deus não o abandonou, pois sua súplica só pode ter sido inspirada por Ele. Por pior que seja a pessoa, se ela faz um pedido tão meritório é porque em alguma fímbria de sua alma existe esse anelo de ser boa. Se está desejando, é porque em certo sentido vê a Deus e, portanto, Ele não a abandonou.
Com muito acerto, salienta Santo Afonso que Deus não nos dá desejos inúteis. Sabemos pela Fé ser impossível alguém pedir a própria salvação e santificação sem uma inspiração divina. Ora, seria burlesco da parte de Deus inspirar tal pedido, se de antemão Ele resolveu não atender nem santificar aquele que o faz. É impossível, Deus não age assim.
Basta, portanto, ao pecador ter um remoto, longínquo vislumbre de vontade de se santificar e rezar nessa intenção, para estar seguro de que Deus o atenderá. Quanto mais rezar, mais dons do Céu obterá. Havendo uma longa perseverança, ele acabará recebendo de Deus graças extraordinárias e se salvará.
A questão é não deixar de rezar.
Santo Afonso de Ligório emprega uma imagem que eu gostaria de transformar em quadro, se soubesse pintar: um abismo sobre o mar, com todos os horrores imagináveis e uma pessoa suspensa por um fio, acima do precipício. Esse fio é a oração. Enquanto ele permanece ligado, há esperanças; caso contrário, a pessoa pode ter certeza de estar se isolando e se distanciando de Deus.
Nessa ordem de idéias, há outra consideração mais profunda. Até mesmo quem pára de rezar é comparável ao arbusto partido e à mecha que ainda fumega. Assim, enquanto a pessoa viver, Deus lhe concede a graça de querer rezar. Se ela corresponder, o resto vem por si, pois a Providência a auxilia.
Na verdade, tudo se cifra em nunca parar de pedir a própria salvação e santificação.
E fazê-lo com importunidade. Como já vimos em anterior exposição, Santo Afonso de Ligório insiste nesse ponto: Deus quer ser importunado pelas nossas preces, que Lhe serão tanto mais agradáveis quanto mais persistentes. O homem que reza dessa forma pode esperar muito de Nosso Senhor. Aquele que, por desconfiança da bondade divina ou por qualquer outra razão (como negligência ou preguiça) não puxa a corda da importunidade, pode não ser atendido conforme deseja.
O regime da misericórdia e o da justiça
Desenvolvendo agora mais um aspecto da nossa pergunta inicial, importa saber porque Deus age razoavelmente atendendo à oração do pecador.
A resposta se filia a outra questão muito simples: por que Deus, depois do primeiro pecado mortal, não tira a vida do pecador, mas permite-lhe passar por um período de provas?
Para determinar a solução do problema, devemos recorrer a uma ordem de considerações que diz respeito à diferença entre o ato de vontade do anjo e o do homem.
São Tomás de Aquino explica que a vontade angélica, por natureza, adere ao objeto apetecido, de maneira inamovível, ao passo que a humana o faz de modo movível. Assim, uma vez tendo se decidido por algo, o anjo não volta atrás. Donde, cometido o primeiro pecado, é natural que o anjo fosse precipitado no inferno.
Com o homem, porém, em virtude da natureza variável de seu ato de vontade, não se dá o mesmo. Deus benignamente contemporiza com ele, proporcionando-lhe outras oportunidades, porque conserva em relação ao homem uma solicitude e um amor — por assim dizer — suspensos pelo pecado, mas não destruídos na sua raiz.
Agindo dessa sorte, Deus é como um pai que não se decide a expulsar de casa o filho que lhe dá muitos dissabores. Poderá até castigar o rebento ruim, mas se não o rechaça, é porque conserva intactos uma certa raiz de boa vontade para com ele, e um certo lado por onde ele ama o filho, pois há uma probabilidade de este se converter.
Sim, Nosso Senhor mantém de pé esse ato de amor em relação a todos os homens vivos neste mundo, e está disposto, a todo momento, a torná-lo efetivo, por pouco que nos voltemos para Ele. Entretanto, esse regime cessa no momento da morte: a misericórdia termina e começa a hora da justiça. Enquanto isto não acontece, estamos no regime e na era da clemência. Deus Nosso Senhor ampara o homem, e é razoável que o faça.
Então, não será árduo entender que, na economia normal da Providência, toda pessoa possui razões para ter confiança, estando viva. A idéia do indivíduo abandonado, que nem sequer rezando obtém o que pede, é de fundo calvinista. A noção de um destino que se realiza independentemente da vontade humana, não é católica e deve ser banida do nosso subconsciente.
Se estamos vivos corporalmente, temos a possibilidade de readquirir a vida da alma. Em conseqüência, sempre vemos aberta diante de nós a porta da esperança. E ainda que pecador, o homem pode confiar na sua conversão e emenda, com a alegria de se saber vivendo no regime de um Deus bom, que o ouvirá tão logo se volte para Ele.
A confiança, condição para vencer o desespero
Essa disposição de alma se faz mais necessária nesta época em que a vida espiritual está mudando sob o signo do desespero. À medida que a existência moderna, com seus horrores, torna-se mais difícil para todo o mundo, as pessoas vão tendo cada vez mais atitudes próximas ao desespero, e vai se multiplicando o número de homens com uma espécie de tendência natural malévola de desconfiança em relação a Deus. Não querem contas com Ele: “Deus é um e eu sou outro. Eu me arranjo por mim, não tenho pacto de amor nem de amizade com Deus. Ponha-se Ele do seu lado como entender; eu vou me arranjar por mim”.
Almas assim têm quase uma espécie de raiva da misericórdia de Deus, a ponto de, às vezes, até não gostarem que outros rezem por elas, pois não desejam sequer se servir de um guincho para sair de seus problemas espirituais.
Quantos desses espíritos rebarbativos ainda acreditarão na misericórdia, quando chegar o momento de a justiça divina se manifestar? E quantos terão confiança na bondade de Deus, de modo a suportar todos os sofrimentos com a convicção de que, no fim, tudo acabará dando certo?
Tenho a impressão de que só os confiantes poderão atravessar essa época de caos e desespero. Quem não confiar, enfrentará muita dificuldade, devido a esse pessimismo espiritual, decorrente de um pessimismo em relação à vida temporal.
Nesse sentido, recordo-me de um fato que se deu comigo há certo tempo, e que me causou não pequena impressão. Ao sair da faculdade em que dera aula, tomei um taxi de volta para casa e disse ao chauffeur (pessoa, aliás, inteligente): “Vamos para a Rua Alagoas, 350”. Ele respondeu: “Já sei”. Quando indiquei o melhor caminho a tomar, ele me atalhou: “Já seeei, já seeei…”
Fiquei quieto. Ele continuou: “Eu não prestei atenção em quem entrou no automóvel, mas o reconheci pela voz, porque eu fui pegar o senhor em tal noite de Natal, na Rua Alagoas, 350. Levei-o para assistir à Missa do Galo nas Perdizes. Além disso, o senhor vai muito a uma casa da Rua Martim Francisco, de onde, às vezes, eu o conduzo para a sua residência.
Era um chauffeur de um ponto das vizinhanças. Para ser amável, fingi que também o reconhecia, e lhe perguntei-lhe:
— Como é que você vai?
— Eu vou mal! Sou diabético. Era tratado por um ótimo médico, mas ele morreu e não me cuidei mais. Agora como de tudo, sem me preocupar com regimes.
— Não faça isso, é um absurdo!
— O que vai acontecer?
— Você vai morrer!
— Esta vida é tão horrível… Deixa eu morrer de uma vez. Eu como à vontade.
Com essas palavras ele queria dizer: “A vida é tão horrorosa, que o único prazer que tenho é a gastronomia. Então é melhor aproveitar este deleitizinho e depois morrer, do que continuar vivendo.”
Para assustá-lo, disse-lhe que isso era contra a caridade que se deve ter para consigo mesmo. Não adiantou.
— Você ficará cego! — insisti. Conheço casos de diabéticos que acabaram perdendo a visão.
Ele aí se assustou e resolveu consultar outro bom especialista.
Premunir-se contra o pessimismo por meio da oração
O estado de espírito desse chauffeur é bem característico e freqüente nessa época contemporânea: “Vivo para gozar. Enquanto houver um pouquinho de prazer na vida, quero devorá-lo. Suprimido esse pouquinho, já não me interessa viver. Contudo, se há possibilidade de eu ficar cego e a minha existência piorar, então tomo providências, porque senão seria uma tragédia.”
Ora, hoje em dia as almas precisam se premunir muito contra esse pessimismo, compreendendo bem que, apesar de todas as aparências em contrário e dos horrores em que estamos, Deus é bom, e a vida terrena pode dar certo, pelo menos na perspectiva do Céu. E se ela tem sentido em ordem à bem-aventurança eterna, não é preciso mais nada, pois o Céu explica tudo.
Assim, devemos viver com alegria e coragem. Mas, essas disposições não se alcançam sem a oração. Se não houver a prece perseverante, insistente, confiante, dando-nos sempre esperança, ficamos entregues às catástrofes interiores, crises nervosas, pavores, psicoses…
Este é, realmente, um dos pontos mais importantes a serem meditados no ensinamento de Santo Afonso de Ligório. (Revista Dr. Plinio, Janeiro/2004, n. 70, p. 22 a 26).