No dia 6 de outubro de 2002, na Praça de São Pedro do Vaticano, perante uma multidão de mais de 300 mil pessoas de todas as idades e condições procedentes dos cinco continentes, o Papa João Paulo II celebrou a solene cerimônia de canonização de São Josemaria Escrivá, Fundador do Opus Dei.
Na homilia da Missa, o Santo Padre resumiu nesse dia, em poucas palavras, a essência da mensagem espiritual de Mons. Escrivá: “Elevar o mundo a Deus e transformá-lo a partir de dentro: eis o ideal que o Santo Fundadorlhes indica, queridos irmãos e irmãs que hoje se alegram pela sua elevação à glória dos altares”.
Na manhã seguinte, 7 de outubro, foi celebrada na própria Praça de São Pedro uma solene concelebração em ação de graças pela canonização. Terminada a Missa, o Papa João Paulo II, acolhido com uma calorosa manifestação de entusiasmo, dirigiu a palavra à multidão de fiéis, cooperadores e amigos do Opus Dei, que – como no dia anterior – atulhava a Praça e se estendia pela Via della Conciliazione e as outras ruas adjacentes, chegando até ao Castelo de Sant’Angelo. Na sua alocução, João Paulo II voltou a frisar o cerne do carisma, da mensagem espiritual de São Josemaría com as seguintes palavras:
“São Josemaria foi escolhido pelo Senhor para anunciar a chamada universal à santidade e mostrar que as atividades correntes que compõem a vida de todos os dias são caminho de santificação. Pode-se dizer que foi o santo do cotidiano. De fato, estava convencido de que, para quem vive sob a ótica da fé, tudo é ocasião de um encontro com Deus, tudo se torna um estímulo para a oração. Vista desta forma, a vida diária revela uma grandeza insuspeita. A santidade apresenta-se verdadeiramente ao alcance de todos.”
Os fiéis que ouviam essas palavras do Papa tinham escutado pouco antes, na Missa, a homilia do Prelado do Opus Dei, Dom Javier Echevarría que lhes recordara palavras de São Josemaria a seus filhos espirituais, escritas nos primórdios do Opus Dei, em 24 de março de 1930: “Viemos dizer, com a humildade de quem se sabe pecador e pouca coisa -‘ homo peccator sum’ (Lc 5, 8), dizemos com Pedro – mas com a fé de quem se deixa guiar pela mão de Deus, que a santidade não é coisa para privilegiados, que o Senhor chama-nos a todos, de todos espera Amor: de todos, estejam onde estiverem; de todos, seja qual for o seu estado, a sua profissão ou ofício. Porque essa vida corrente, cotidiana, sem relevo, pode ser meio de santidade: não é preciso abandonar o próprio estado no mundo para procurar a Deus, se o Senhor não dá a uma alma a vocação religiosa, uma vez que todos os caminhos da terra podem ser ocasião de um encontro com Cristo”.
Com isso, São Josemaria nada mais fazia do que frisar, mais uma vez, o núcleo da mensagem que recebera de Deus, em 2 de outubro de 1928, data da fundação do Opus Dei. Após anos de oração e penitência constantes, naquela data Deus lhe mostrara a sua Vontade – hámuitos anos pressentida, sem conseguir ver o que era -, e o Mons. Josemaria compreendeu que a única razão da sua existência devia ser entregarse inteiramente, com todas as forças, ao cumprimento desse desígnio divino: o Opus Dei.
Todos são chamados à santidade
Em uma entrevista concedida a L’Osservatore della Domenica, em 1968, Mons. Escrivá definia assim o que caracteriza a vocação para o Opus Dei:
Vou dizê-lo em poucas palavras: é procurar chegar à santidade em meio do mundo, no meio da rua. Quem recebe de Deus a vocação específica para o Opus Dei sabe – e vive – que deve alcançar a santidade em seu próprio estado, no exercício de seu trabalho, manual ou intelectual.
A finalidade a que o Opus Dei aspira – esclarecia na mesma entrevista – é favorecer a procura da santidade e o exercício do apostolado por parte de cristãos que vivem no meio do mundo, seja qual for o seu estado ou condição. A Obra nasceu a fim de contribuir para que esses cristãos, inseridos no tecido da sociedade civil – com a sua família e as suas amizades, o seu trabalho profissional, as suas aspirações nobres -, compreendam que a sua vida, tal como é, pode vir a ser ocasião de um encontro com Cristo: quer dizer, que é um caminho de santificação e apostolado (…). A vida de um simples cristão – que talvez a alguns pareça vulgar e acanhada – pode e deve ser uma vida santa e santificante” (1).
Deus dissipava assim o mal-entendido, freqüente entre muitos católicos, de que, para aspirar à santidade, seria “indispensável abandonar o mundo, afastar-se dele… ou dedicar-se a uma atividade eclesiástica” (2).
Já no seu livro “Caminho”, o Mons. Escrivá deixara estampada uma afirmação que vinha repetindo desde a fundação da Obra: “Tens obrigação de santificar-te. – Tu também. – Alguém pensa, por acaso, que é tarefa exclusiva de sacerdotes e religiosos? A todos, sem exceção, disse o Senhor: ‘Sede perfeitos, como meu Pai Celestial é perfeito'” (3). Anos depois, a Igreja, no capítulo VI da Constituição Lumen gentium consagrou e pôs em destaque essa doutrina de entranha evangélica proclamando a Vocação universal à santidade de todos os batizados.
Caminho de santificação no trabalho e nos deveres cotidianos
Um traço específico do carisma do Opus Dei, com o qual Nosso Senhor abriu caminhos práticos para a santificação do cristão no meio do mundo, é a percepção de que o trabalho profissional (e quem diz trabalho diz família, diz deveres sociais, diz atividade cultural, diz lazer, diz, em suma, vida cotidiana) pode e deve ser meio e ocasião de santidade e de apostolado.
Viemos chamar de novo a atenção – esclarecia o Fundador – para o exemplo de Jesus que, durante trinta anos, permaneceu em Nazaré trabalhando, desempenhando um ofício. Nas mãos de Jesus, o trabalho, e um trabalho profissional semelhante àquele que desenvolvem milhões de homens no mundo, converte-se em tarefa divina, em trabalho redentor, em caminho de salvação” (4).
Neste sentido, Bento XVI, falando do trabalho aos artesãos da Itália, dizia que São Josemaria Escrivá, um santo desta nossa época, observa que o trabalho, tendo sido desempenhado por Cristo que trabalhou como artesão, “se torna uma atividade redimida e redentora: não somente é o âmbito em que o homem vive, mas também instrumento e caminho de santidade, realidade santificável e santificadora (Homilia ‘É Cristo que passa’, n. 47)” (5).
Não se cansava, por isso, de ensinar que, para os cristãos comuns, “a vida corrente é o verdadeiro lugar da existência cristã”. Um pensamento cheio de conseqüências que expôs, com vivacidade e clareza sobrenatural, numa homilia pronunciada em 8 de outubro de 1967, numa Missa celebrada no campus da Universidade de Navarra (6):
Meus filhos: aí onde estão nossos irmãos os homens, aí onde estão as nossas aspirações, o nosso trabalho, os nossos amores – aí está o lugar do nosso encontro cotidiano com Cristo. É em meio às coisas mais materiais da terra que nós devemos santificar-nos, servindo a Deus e a todos os homens.
Tenho-o ensinado constantemente com palavras da Escritura Santa: o mundo não é ruim, porque saiu das mãos de Deus, porque é criatura d’Ele, porque Javé olhou para ele e viu que era bom (Cfr. Gn, 1, 7 ss.). Nós, os homens, é que o fazemos ruim e feio, com nossos pecados e nossas infidelidades. Não duvidem, meus filhos; qualquer modo de evasão das honestas realidades diárias é para os homens e mulheres do mundo coisa oposta à vontade de Deus.
Pelo contrário, devem compreender agora – com uma nova clareza – que Deus os chama a servi-Lo em e a partir das tarefas civis, materiais, seculares da vida humana. Deus nos espera cada dia: no laboratório, na sala de operações de um hospital, no quartel, na cátedra universitária, na fábrica, na oficina, no campo, no seio do lar e em todo o imenso panorama do trabalho. Não esqueçamos nunca: há algo de santo, de divino, escondido nas situações mais comuns, algo que a cada um de nós compete descobrir (…).
Não há outro caminho, meus filhos: ou sabemos encontrar o Senhor em nossa vida de todos os dias, ou não O encontraremos nunca.”
Com uma expressão sintética, que gostava de repetir, resumia esse ideal de santidade dizendo que consiste em “santificar o trabalho, santificar-se no trabalho e santificar os outros através do trabalho”. “
O primeiro sucessor de São Josemaria à frente do Opus Dei, o Servo de Deus D. Álvaro del Portillo, fazia eco a essa mensagem, dizendo: “Pregou incessantemente que o cristão deve ocupar-se do trabalho sabendo que Deus o contempla… A sua tarefa tem que ser, portanto, uma tarefa santa e digna d’Ele: acabada em todos os seus pormenores – realizada com competência técnica e profissional – e levada a cabo com retidão moral, com hombridade, com nobreza, com lealdade, com justiça. Nessas condições, o seu trabalho profissional surgirá como algo de reto e santo, ao mesmo passo que, também por esse título de oferecimento ao Criador, será oração” (7). “.
A oração dos filhos de Deus
“O trabalho será oração”. A seus filhos, São Josemaria costumava dizer que, na sua vida, deveria chegar um momento em que não fosse mais possível distinguir oração e trabalho, porque o trabalho (e os outros deveres cotidianos) devem transformar-se em oração.
A quem desconhecesse o carisma do Opus Dei, poderia causar estranheza ouvir o Fundador afirmar que a vocação para a Obra de Deus é essencialmente contemplativa. No entanto, esta é a meta, este o ideal para quem é chamado a santificarse no mundo: fazer da vida ordinária uma contínua oração, um diálogo ininterrupto com Deus – com a Virgem Santíssima, com os santos Anjos… -, com esse Deus “que nos fala constantemente, através dos acontecimentos e das pessoas”, e que através de tudo nos dá seu amor e nos pede amor.
O Papa João Paulo II expressou esse mesmo pensamento nos dias da canonização, com estas palavras:
“O Senhor fez com que São Josemaria entendesse profundamente o dom da nossa filiação divina. E ele ensinou a contemplar o rosto terno de um Pai no Deus que nos fala através das mais diversas vicissitudes da vida. Um Pai que nos ama, que nos acompanha passo a passo e nos protege, nos compreende e espera de cada um de nós uma resposta de amor. A consideração desta presença paterna, que acompanha o cristão a toda parte, proporciona-lhe uma confiança inquebrantável; em todos os momentos deve confiar no Pai celestial. Nunca se sente só nem tem medo. Quandose depara com a Cruz, não vê nela um castigo, mas uma missão que lhe foi confiada pelo próprio Senhor”.
O sentido da filiação divina era, para Mons. Escrivá, o alicerce, o fundamento da vida espiritual. “A filiação divina – afirmava – é uma verdade feliz, um mistério consolador. A filiação divina empapa toda a nossa vida espiritual, porque nos ensina a procurar, conhecer e amar o nosso Pai do Céu, e assim cumula de esperança a nossa luta interior e nos dá a simplicidade confiante dos filhos pequenos. Mais ainda: precisamente porque somos filhos de Deus, esta realidade leva-nos também a contemplar com amor e com admiração todas as coisas que saíram das mãos de Deus Pai Criador. E deste modo somos contemplativos no meio do mundo, amando o mundo” (8).
Unidade de vida; piedade, trabalho, apostolado
Deste modo, São Josemaria podia afirmar que a fisionomia espiritual própria do Opus Dei consiste na unidade de vida. Se a vida cristã tem como base a filiação divina – fundamento da piedade -; se procuramos que o trabalho santificado e santificador seja o eixo da vida espiritual; se a oração, a mortificação, o trabalho… apontam para a missão apostólica no meio do mundo, então os diversos aspectos da vida cristã se fundem e compenetram numa unidade harmônica: são, na simplicidade do cotidiano, como facetas de um único diamante.
Cumprir a vontade de Deus no trabalho – escrevia o Fundador em 1940 -, contemplar a Deus no trabalho, trabalhar por amor a Deus e ao próximo converter o trabalho em meio de apostolado, dar às coisas humanas um valor divino, esta é a unidade de vida, simples e forte, que devemos ter e ensinar” (9).
“Elevar o mundo a Deus – dizia o Papa na homilia da canonização de São Josemaria – e transformá-lo a partir de dentro: eis o ideal que o Santo Fundador lhes indica”. E lembrava que São Josemaria, movido por Deus, “sentiu surgir no seu interior a apaixonante chamada para evangelizar todos os ambientes”, e a seguir evocava o constante ensinamento do santo para que esse ideal apostólico se tornasse realidade: “Primeiro, oração; depois, expiação; em terceiro lugar, ação” (10). Esta convicção de que “a fecundidade do apostolado encontra-se, antes de tudo, na oração e numa vida sacramental intensa e constante – concluía o Papa – é, no fundo, o segredo da santidade e do verdadeiro sucesso dos santos”.
Cristo, Maria, o Papa
Não ficaria completo este esboço, forçosamente sumário, do carisma e da mensagem espiritual do Fundador do Opus Dei, se não mencionássemos a sua cálida e intensa devoção a Nossa Senhora (a quem invocava, em tudo e para tudo, sem A separar jamais de São José) e o seu amor apaixonado à Igreja Santa, ao Romano Pontífice e aos bispos em comunhão com a Santa Sé.
Omnes cum Petro, ad Iesum per Mariam – Todos, com Pedro, a Jesus por Maria (11). Eis o roteiro espiritual que, desde a fundação, propôs como lema aos seus filhos espirituais, e que, seguindo o seu exemplo e os seus ensinamentos, os fiéis da Prelazia do Opus Dei procuram seguir e difundir com alegria e fidelidade.
“Sê de Maria e serás nosso”, escrevia nos anos trinta. “A Jesus sempre se vai e se ‘volta’ por Maria”, afirmava como um axioma sobrenatural. E frisava: “O amor à Senhora é prova de bom espírito, nas obras e nas pessoas singulares. – Desconfia do empreendimento que não tenha esse sinal” (12).
E, quanto ao amor ao Papa, rezava assim: “Obrigado, meu Deus, pelo amor ao Papa que puseste em meu coração” (13). “Católico, Apostólico, Romano! – Gosto de que sejas muito romano. E que tenhas desejos de fazer a tua romaria, videre Petrum, para ver Pedro” (14).
É significativo que as últimas palavras de São Josemaria nesta terra, pouco antes de que Deus o chamasse a Si, fossem uma exortação feita a um grupo das suas filhas, em Castelgandolfo, para que amassem com toda a alma a Igreja e o Papa. “Quando fordes velhos – tinha dito fazia pouco tempo, abrindo a alma -, e eu tiver prestado contas a Deus, haveis de dizer como o Padre amava o Papa com toda a sua alma, com todas as suas forças” (15). Este amor a Maria, à Igreja e ao Papa é um dos mais vincados traços do seu espírito, que gravou indelevelmente na alma dos fiéis da Prelazia, e que, por meio deles, vai ficando gravado no coração de quantos se aproximam do Opus Dei e procuram viver o seu espírito. (Revista Arautos do Evangelho, Agosto/2007, n. 68, p. 18 à 22)
Pe. Francisco Faus ordenou-se em 1955 e é licenciado em Direito pela Universidade de Barcelona e Doutor em Direito Canônico pela Universidade de São Tomás de Aquino de Roma.
1) J. Escrivá, Questões atuais do Cristianismo, 3ª ed., Quadrante 1986, nn.60 e 62.
2) Cf. Ibid., n. 60.
3) Caminho, n. 291.
4) Questões atuais do Cristianismo, n. 55 5) Bento XVI, discurso em 31/03/07.
6) Essa homilia pode ser ouvida – na voz do próprio São Josemaria – no site www.opusdei.org.br.
7) Josemaria Escrivá, instrumento de Deus, Ed. Quadrante, São Paulo 1992, p. 52.
8) São Josemaria Escrivá, É Cristo que passa, Quadrante 1975, n. 65.
9) Carta, 11 de março de 1940.
10) Caminho, n. 82.
11) Cf. Caminho, n. 833.
12) Cf. Ibid., nn. 494, 495 e 505.
13) Ibid. n. 573.
14) Ibid, n. 520.
15 Salvador Bernal, Perfil do Fundador do Opus Dei, Ed. Quadrante, São Paulo 1977, p. 108.