Escravo dos africanos para sempre
Dentre a pitoresca multidão de marinheiros e passageiros que se apressavam em desembarcar do galeão recém-chegado a cidade de Cartagena, na província da Nova Granada (atual Colômbia), destacavam-se singularmente as negras batinas de quatro religiosos: três sacerdotes e um noviço da ordem fundada, não havia muito tempo, por Inácio de Loyola: a Companhia de Jesus. Dos três presbíteros, a História não perpetuou os nomes. Religiosos desconhecidos, como centenas de milhares que imolaram suas vidas seguindo os passos do Mestre Divino, anônimos para os homens e filhos prediletos de Deus. O noviço, porém, de fisionomia austera, silencioso, um tanto retraído e quase passando despercebido, marcou com sua vida a história da América do Sul e brilhará para sempre no firmamento da Igreja: São Pedro Claver.
A aurora da vocação de São Pedro Claver
Nascido em Verdú, pequena cidade espanhola da Catalunha, em 1580, Pedro Claver sentiu-se chamado para a vida religiosa desde tenra infância. Aos 22 anos de idade, bateu às portas do noviciado da Companhia de Jesus. Dois anos mais tarde, a fim de completar os estudos de Filosofia, foi enviado por seus superiores ao Colégio de Montesion, na ilha de Maiorca. Deuse, então, um providencial encontro que marcaria de modo indelével a vida de Pedro e firmaria definitivamente sua vocação.
Nesse colégio habitava um venerável ancião, simples irmão coadjutor e porteiro da casa, que séculos depois seria canonizado e viria a ser uma das glórias da Ordem: Santo Alonso Rodríguez. Desde o primeiro instante em que os límpidos olhos do santo porteiro penetraram o coração do noviço, discerniu o ancião a vocação do jovem.
Missionário e sacerdote
No dia 23 de janeiro de 1610, o superior provincial, atendendo aos pedidos de Pedro Claver, enviou-o como missionário à tão anelada América do Sul. E no final desse mesmo ano, após longa travessia, aportou na cidade de Cartagena, uma das mais importantes do Império Espanhol do além-mar. Terminada sua formação teológica na casa de formação dos jesuítas na província da Nova Granada, recebeu finalmente o Sacramento da Ordem no dia 19 de março de 1616 e celebrou sua primeira Missa diante da imagem da Virgem dos Milagres a quem professaria sempre uma ardorosa e filial devoção.
O campo de batalha
A cidade de Cartagena constituía, nessa época, um dos pontos principais de comércio entre a Europa e o novo continente, e juntamente com Veracruz, no México, eram os dois únicos portos autorizados para a introdução de escravos africanos na América Espanhola. Calcula-se que cerca de dez mil escravos chegavam anualmente a esta cidade, trazidos por mercadores, geralmente portugueses e ingleses, que se dedicavam a este vil e cruel comércio.
Esses pobres seres, arrancados das costas da África, onde viviam no paganismo e na barbárie, eram trazidos no fundo dos porões dos navios para serem vendidos como simples objetos e finalmente destinados ao trabalho nas minas e nas fazendas onde, depois de haver vivido sem esperança, morriam miseravelmente sem o auxílio da religião. Converter esses milhares de infelizes cativos e lhes abrir as portas do Céu, foi a missão à qual Pedro Claver consagrou toda a sua existência.
Assim, quando chegou o grandioso e esperado momento de emitir os votos solenes, pelos quais se comprometia a ser obediente, casto e pobre até a morte, assinou o documento com a fórmula que doravante seria a síntese de sua vida: Petrus Claver, æthiopum semper servus. - "Pedro Claver, escravo dos africanos para sempre". Tinha 42 anos de idade.
O escravo dos escravos
Quando um navio carregado de escravos chegava ao porto, o Padre Claver acorria imediatamente numa pequena embarcação, levando consigo uma grande provisão de biscoitos, frutas, doces e aguardente.
Aqueles seres embrutecidos por uma vida selvagem e exaustos pela viagem realizada em condições desumanas, olhavam-no com temor e desconfiança. Mas ele os saudava com alegria e por meio de seus auxiliares e intérpretes negros - tinha mais de dez - dizia-lhes: "Não temais! Estou aqui para vos ajudar, para aliviar vossas dores e doenças." E muitas outras frases consoladoras. Porém, mais que as palavras, falavam suas ações: antes de mais nada, batizava as crianças moribundas; depois recebia em seus braços os enfermos, distribuía a todos bebidas e alimentos e fazia-se servo daqueles desventurados.
Reflexos de um imenso amor
Sua ardente e inextinguível sede de almas era apenas o transbordamento visível das labaredas interiores que consumiam a alma deste discípulo de Cristo. Significativos indícios levantam um tanto o véu que cobriu durante sua vida o altíssimo grau de união com Deus que ele havia atingido.
"Todo o tempo livre de confessar, catequizar e instruir os negros, dedicava- o à oração", narra uma testemunha. Repousava diariamente apenas três horas, e passava o resto da noite de joelhos em sua cela ou diante do Santíssimo Sacramento, em profunda oração, muitas vezes acompanhada de místicos arroubos. Grande adorador de Jesus-Hóstia, preparava-se todos os dias durante uma hora antes de celebrar o Sacrifício do Altar, e permanecia em ação de graças meia hora após a Missa, não permitindo que ninguém o interrompesse nesses períodos.
Ilimitada também era sua devoção a Nossa Senhora. Rezava o Rosário completo todos os dias, ajoelhado ou andando pelas ruas da cidade, e não deixava passar nenhuma festa d'Ela sem organizar solenes celebrações, com música instrumental e coral.
Longo calvário
Aquele varão, que tinha passado a vida fazendo o bem, que tantas dores havia aliviado e tantas angústias consolado, teve de padecer, como seu Divino Modelo, indizíveis tormentos físicos e morais antes de ser acolhido na glória celeste. Após 35 anos de intensíssimo labor apostólico e 70 de idade, caiu gravemente enfermo. Pouco a pouco foram-se paralisando as extremidades de seus membros, e um forte tremor agitava continuamente seu corpo extenuado. Tornou-se "uma espécie de estátua da penitência com as honras de pessoa", relata uma testemunha.
Os últimos quatros anos de existência terrena, ele os passou imobilizado na enfermaria do convento. E, por incrível que pareça, este homem que havia sido a alma da cidade, o pai dos pobres e o consolador de todas as desventuras, foi completamente olvidado por todos e submergido no esquecimento e no abandono. Passava os dias, os meses e os anos em silenciosa meditação, contemplando da janela da enfermaria a imensidade do mar e escutando a melodia das ondas que se rompiam contra as muralhas da cidade. A sós com a dor e com Deus, aguardava o momento do supremo encontro.
Um jovem escravo fora designado pelo superior da casa para cuidar do doente. Entretanto, esse que deveria ser enfermeiro não passava de bruto algoz. Comia a melhor parte dos alimentos destinados ao paralítico e "um dia o deixava sem bebida, outro sem pão, muitos sem comida", segundo conta uma testemunha da época. Também "o martirizava quando o vestia, governando-o com brutalidade, torcendo-lhe os braços, batendo nele e tratando-o com tanta crueldade como desprezo". Porém, nunca seus lábios proferiram a menor queixa. "Mais merecem minhas culpas", exclamava às vezes.
Glória já nesta terra: "Morreu o santo!"
Certo dia de agosto de 1654, disse Claver a um irmão de hábito: "Isto se acaba. Deverei morrer num dia dedicado à Virgem". Na manhã de 6 de setembro, à custa de um imenso esforço, fez- se conduzir até a igreja do convento e quis comungar pela última vez. Quase se arrastando, aproximou-se da imagem de Nossa Senhora dos Milagres, diante da qual havia celebrado a sua primeira Missa. Ao passar pela sacristia, disse a um irmão: "Morro. Vou morrer. Posso fazer algo por vossa reverência na outra vida?" No dia seguinte, perdeu a fala e recebeu a Unção dos Enfermos.
Sucedeu, então, algo de extraordinário e sobrenatural. A cidade de Cartagena pareceu acordar de uma longa letargia e por todos os lados corria a voz: "Morreu o santo!" E uma multidão incontenível dirigiu-se para o colégio dos jesuítas, onde agonizava Pedro Claver. Todos queriam oscular suas mãos e seus pés, tocar nele rosários e medalhas. Distintas senhoras e pobres negras, nobres, capitães, meninos e escravos desfilaram nesse dia diante do santo, que jazia sem sentidos em seu leito de dor. Só às 9 horas da noite os padres conseguiram fechar as portas e assim conter aquela piedosa avalanche.
E assim, entre 1h e 2h da madrugada de 8 de setembro, festa da Natividade de Maria, com grande suavidade e paz, o escravo dos escravos adormeceu no Senhor.
Trechos adaptados da Revista Arautos do Evangelho, Set/2005, n. 45, p. 20 à 23.