Evangelho: Solenidade de São Pedro e São Paulo
Ao chegar à região de Cesaréia de Filipe, Jesus fez a seguinte pergunta aos seus discípulos: “Quem dizem os homens que é o Filho do Homem?” Eles responderam: “Uns dizem que é João Batista; outros, que é Elias; e outros, que é Jeremias ou algum dos profetas”. Perguntou-lhes de novo: “E vós, quem dizeis que Eu sou?”. Tomando a palavra, Simão Pedro respondeu: “Tu és o Messias, o Filho de Deus vivo”. Jesus disse-lhe em resposta: “És feliz, Simão, filho de Jonas, porque não foi a carne nem o sangue que to revelou, mas o meu Pai que está no Céu. Também Eu te digo: Tu és Pedro, e sobre esta Pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do inferno nada poderão contra ela. Dar-te-ei as chaves do Reino do Céu; tudo o que ligares na Terra ficará ligado no Céu e tudo o que desligares na Terra será desligado no Céu” (Mt 16, 13-19).
I – Considerações iniciais
Difícil é encontrar alguém que nunca tenha comprovado a consonância da sonoridade obtida através de cristais harmônicos. Basta um simples golpe, em um só deles, para os outros ressoarem em concomitância. É, até, uma prova para se conhecer a autenticidade destas ou daquelas taças.
Assim, também, no campo das almas. Discernimos a que é entranhadamente católica e com facilidade a diferenciamos da tíbia, atéia ou herética, quando fazemos “soar” uma simples nota: o amor ao Papado, seja quem for o Papa. Tornam-se encandescidas as almas fervorosas, indiferentes as tíbias, indispostas algumas, etc.
Pois esta é a matéria do Evangelho de hoje. A fim de nos prepararmos para contemplar as perspectivas que ele nos manifesta, ocorreu-nos reproduzir as considerações transcritas a seguir. Poderemos, assim, ter uma noção da qualidade do “cristal” de nossa alma:
“Tudo quanto na Igreja há de santidade, de autoridade, de virtude sobrenatural, tudo isto, mas absolutamente tudo sem exceção, nem condição, nem restrição, está subordinado, condicionado, dependente da união à Cátedra de São Pedro. As instituições mais sagradas, as obras mais veneráveis, as tradições mais santas, as pessoas mais conspícuas, tudo enfim que mais genuína e altamente possa exprimir o Catolicismo e ornar a Igreja de Deus, tudo isto se torna nulo, maldito, estéril, digno do fogo eterno e da ira de Deus, se separado do Romano Pontífice. Conhecemos a parábola da videira e dos sarmentos. Nessa parábola, a videira é Nosso Senhor, os sarmentos são os fiéis.
Mas como Nosso Senhor Se ligou de modo indissolúvel à Cátedra Romana, pode-se dizer com toda segurança que a parábola seria verdadeira entendendo- se a videira como a Santa Sé, e os sarmentos como as várias Dioceses, Paróquias, Ordens Religiosas, instituições particulares, famílias, povos e pessoas que constituem a Igreja e a Cristandade. Isto tudo só será verdadeiramente fecundo na medida em que estiver em íntima, calorosa, incondicional união com a Cátedra de São Pedro.
“‘Incondicional’, dissemos, e com razão. Em moral, não há condicionalismos legítimos. Tudo está subordinado à grande e essencial condição de servir a Deus. Mas, uma vez que o Santo Padre é infalível, a união a seu infalível magistério [só] pode ser incondicional.
“Por isto, é sinal de condição de vigor espiritual, uma extrema susceptibilidade, uma vibratilidade delicadíssima e vivaz dos fiéis por tudo quanto diga respeito à segurança, glória e tranqüilidade do Romano Pontífice. Depois do amor a Deus, é este o mais alto dos amores que a Religião nos ensina. Um e outro amor se confundem até. Quando Santa Joana d’Arc foi interrogada por seus perseguidores que a queriam matar, e que para isto procuravam fazê-la cair em algum erro teológico por meio de perguntas capciosas, ela respondeu: ‘Quanto a Cristo e à Igreja, para mim são uma só coisa’.
E nós podemos dizer: ‘Para nós, entre o Papa e Jesus Cristo não há diferença’. Tudo o que diga respeito ao Papa diz respeito direta, íntima, indissoluvelmente, a Jesus Cristo”1.
II – O Evangelho: “Tu es petrus”
Pergunta de Jesus e circunstância em que foi feita
Ao chegar à região de Cesaréia de Filipe, Jesus fez a seguinte pergunta aos seus discípulos: “Quem dizem os homens que é o Filho do Homem?”.
A cidade na qual se desenvolve o Evangelho de hoje havia sido construída pelo tetrarca Filipe que, para angariar a simpatia do imperador César Augusto, deu-lhe o nome de Cesaréia. Desconhece a História o exato percurso empreendido pelo Senhor e pelos Apóstolos àquela altura dos acontecimentos; a hipótese mais provável é a de que tenham atravessado a via de Damasco a Jerusalém, perto da ponte das Filhas de Jacó. O território onde nasce o rio Jordão, compreendido entre Julias e Cesaréia, é rochoso, solitário e acidentado. Foi nessa localidade montanhosa e pétrea que Herodes, o Grande, erigiu um vistoso templo de mármore branco em homenagem ao imperador César Augusto. Calcando as pedras da região, e talvez à vista do tal templo sobre o alto das rochas, foi que se estabeleceu o diálogo durante o qual se tornaram explícitas para os Apóstolos a natureza divina de Jesus e a edificação da Santa Igreja.
Convém não esquecermos o quanto a divina pedagogia de Jesus escolhia os acidentes da natureza sensível para efeito didático, e assim poderem seus ouvintes ter melhor compreensão das realidades invisíveis do universo da Fé. A esse respeito, seriam inúmeros os casos a serem citados, mas basta-nos lembrar o modo pelo qual Ele convocou os dois irmãos pescadores, Pedro e André: “Segui-me e Eu farei de vós pescadores de homens” (Mt 4, 19). Não se trata, portanto, de nos basearmos em razões meramente poéticas para supor que o desenrolar dessa conversa verificou- se sobre as pedras; há por detrás, um elevado teor simbólico. Ali estavam rochas que deviam perpetuar- se, e a contemplação dessas criaturas minerais, fruto de sua onipotência, tornava mais bela a solene profecia da edificação de sua indestrutível Igreja.
Alguns autores ressaltam outro importante aspecto: o fato de Jesus ter escolhido uma região pertencente à gentilidade para manifestar- Se como Filho de Deus e fundar o primado de sua Igreja. Eles interpretam como sendo um prenúncio da rejeição do reino messiânico, pelos judeus, e sua definitiva transferência para os gentios.
“Aconteceu que estando a orar, em particular…” (Lc 9, 18). Conforme nos relata São Lucas, toda a conversa narrada no Evangelho de hoje realizou- se depois de Jesus ter-Se recolhido e deixado “perder-Se”, com suas faculdades humanas, nas infinitudes de seu Pai eterno. Utilizou-Se desse meio infalível de ação, a prece, para conferir raízes e seiva imortais à obra que lançaria.
Segundo a Glosa, “querendo confirmar seus discípulos na Fé, o Salvador começa por afastar de seus espíritos as opiniões e os erros que outros poderiam ter infundido neles” 2; ou seja, convidando-os a terem clara consciência dos equívocos da opinião pública a respeito da identidade dEle, fortificava- lhes as convicções. É curioso o comentário de São João Crisóstomo sobre o caráter “sumamente malicioso” 3 do juízo emitido pelos escribas e fariseus a respeito do Divino Mestre, muito diferente daquele da opinião pública que, apesar de errôneo, não era movido por nenhuma malícia.
Jesus não pergunta o que pensam os outros a respeito dEle, mas sim do Filho do Homem, “a fim de sondar a Fé dos Apóstolos e dar-lhes ocasião de dizer livremente o que sentiam, embora Ele não ultrapassasse os limites daquilo que poderia lhes sugerir sua santa Humanidade” 4. Por todos os conhecimentos que Lhe eram próprios, do divino ao experimental, Jesus sabia quais eram as opiniões que circulavam com relação à Sua figura, não necessitava, portanto, informar-Se; desejava, isto sim, levá-los a proclamar a verdade em contestação aos equívocos da opinião pública.
O povo não considerava Jesus como o Messias
Eles responderam: “Uns dizem que é João Batista; outros, que é Elias; e outros, que é Jeremias ou algum dos profetas”.
Os Apóstolos tinham exata noção do juízo que os “homens” de então faziam a propósito do Divino Mestre. Apesar de todas as evidências, dos milagres, da doutrina nova dotada de potência, etc., o povo não O considerava como o Messias tão esperado. Jesus surgia aos olhos de todos como a ressurreição ou o reaparecimento de anteriores profetas. Não encontravam nEle a eficaz magnificência do poder político, tão essencial para a realização do mirabolante sonho messiânico que os inebriava. Daí imaginarem-No o Batista ressurrecto, ou Elias, enquanto mais especificamente um precursor, ou até mesmo um Jeremias, lídimo defensor da nação teocrática (cf. 2 Mac 2, 1-12). Vêse claramente neste versículo como o espírito humano é inclinado ao erro e como facilmente se distancia dos verdadeiros prismas da salvação. Mas, pelo menos, aqueles seus contemporâneos ainda discerniam algo de grandioso em Jesus. Seria interessante nos perguntarmos como Ele é visto pela humanidade globalizada, cientificista e relativista de nossos dias.
Pedro O reconhece como Filho de Deus
Perguntou-lhes de novo: “E vós, quem dizeis que Eu sou?”
Bem sublinha São João Crisóstomo a essência desta segunda pergunta 5. Sem refutar os erros de apreciação dos outros, Jesus quer ouvir dos próprios lábios de seus mais íntimos o juízo que dEle fazem. Para lhes tornar fácil a proclamação de Sua divindade, não usa aqui o título humilde de Filho do Homem.
Tomando a palavra, Simão Pedro respondeu: “Tu és o Messias, o Filho de Deus vivo”.
Pedro falava como intérprete da opinião de todos, por ser o mais fervoroso e o principal 6, embora não fosse a primeira vez que Jesus era reconhecido como Filho de Deus. Já Natanael (cf. Jo 1, 49), os Apóstolos após a tempestade no mar de Tiberíades (cf. Mt 14, 33) e o próprio Pedro (cf. Jo 6, 69) haviam externado essa convicção.
Sola fides! Aqui não há elemento algum emocional ou sensível, como em circunstâncias anteriores. Em meio às rochas frias de um ambiente ecológico, longe de acontecimentos arrebatadores e da agitação das turbas ou das ondas, só a voz da Fé se faz ouvir.
“Certíssimo argumento é que Pedro chamou a Cristo de Filho de Deus por natureza, quando O contrapôs a João, a Elias, a Jeremias e aos profetas, os quais foram – claro está – filhos de Deus por adoção” 7. Ademais, como comenta o mesmo Maldonado, Pedro dá a Deus o título de “vivo” para distingui- Lo dos deuses pagãos que são substâncias mortas. E, por fim, o artigo – como sói acontecer na língua grega – antecedendo o substantivo “filho”, designa “filho único” segundo a natureza, e não um entre vários.
A ciência humana não tem força para atingir a união hipostática
Jesus disse-lhe em resposta: “És feliz, Simão, filho de Jonas, porque não foi a carne nem o sangue que to revelou, mas o meu Pai que está no Céu”.
Ao felicitar seu Apóstolo, Jesus avalia a afirmação de Pedro a respeito de sua filiação e, portanto, de sua natureza divina e consubstancialidade com o Pai. Sobre este particular são unânimes os comentaristas. Era um costume judaico indicar a filiação da pessoa para ressaltar sua importância; neste caso concreto havia a intenção de manifestar o quanto “Cristo é tão naturalmente o Filho de Deus como Pedro é filho de Jonas, quer dizer, da mesma substância daquele que o engendrou”8.
As palavras de Pedro não são fruto de um raciocínio com base num simples conhecimento experimental. Não haviam sido poucas as curas logo após as quais os beneficiados conferiam com exclamações ao Salvador o título de “Filho de Davi” (cf. Mt 15, 22; Mc 10, 47, etc.), conhecido como um dos indicativos do Messias. Os próprios demônios, ao se encontrarem com Ele, proclamavam-No “o Santo de Deus” (Lc 4, 34), “o Filho de Deus” (Lc 4, 41), “Filho do Altíssimo” (Lc 8, 28; Mc 5, 7). Ele mesmo declarara ser “dono do sábado” (Mt 12, 8), e após a multiplicação dos pães a multidão queria aclamá-Lo “Rei” (Jo 6, 15). Assim como estas, muitas outras passagens poderiam facilmente nos indicar as profundas impressões produzidas por Jesus sobre seus discípulos9. Porém, em nenhuma ocasião anterior Pedro recebeu tal elogio saído dos lábios do Salvador. Nesta passagem, ele “é feliz porque teve o mérito de elevar seu olhar além do que é humano e, sem deter-se no que provinha da carne e do sangue, contemplou o Filho de Deus por um efeito da revelação divina e foi julgado digno de ser o primeiro a reconhecer a Divindade de Cristo”10.
Portanto, a afirmação de Pedro se realizou com base num discernimento penetrante, luzidio e abarcativo da natureza divina do Filho de Deus. A ciência, a genialidade ou qualquer outro dom humano não têm força suficiente para atingir os páramos da união hipostática realizada no Verbo Encarnado. É indispensável ser revelada pelo próprio Deus e aceita pelo homem. Mas o homem sem Fé aferra-se às suas próprias idéias, tradições e estudos, rejeitando, às vezes, as provas mais evidentes, como o são os milagres. Para este, Jesus não passa – e quando muito – de um sábio ou de um profeta. Haverá também aqueles que não O verão senão como “o filho do carpinteiro” (Mt 13, 55).
Essa é a nossa Fé ensinada pela Igreja, revelada pelo próprio Deus, anunciada pelo Filho, o enviado do Pai, e confirmada pelo Espírito Santo, enviado pelo Pai e pelo Filho. As verdades da Fé não são fruto de sistemas filosóficos, nem da elaboração de grandes sábios.
Jesus edifica Sua Igreja sobre Pedro
Também Eu te digo: “Tu és Pedro, e sobre esta Pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do inferno nada poderão contra ela”.
Foi indispensável e excelente ter afirmado Orígenes inspiradamente: “Nosso Senhor não precisa se é contra a pedra sobre a qual Cristo construiu sua Igreja ou se é contra a própria Igreja, construída sobre a pedra, que as portas do inferno não prevalecerão. Mas é evidente que elas não prevalecerão nem contra a pedra nem contra Igreja”11. Sim, porque para destruir essa pedra, ou seja, o Vigário de Jesus Cristo na Terra, muitos esforços e diligências de um considerável número de hereges têm sido empregados, na tentativa de abalar o sagrado edifício da Igreja a partir de seu fundamento, o qual é a alegria, consolo e triunfo dos verdadeiros católicos. Nesse “edificarei” se encontra o real anúncio do Reino de Jesus. O grande e divino desígnio começa a se delinear nesse nome, até então nunca usado: “minha Igreja”.
O plano de Jesus é proclamado sobre as rochas de Cesaréia, pelo próprio Filho de Deus, que Se apresenta como um divino arquiteto a erigir esse edifício indestrutível, grandioso e santíssimo, a sociedade espiritual, constituída por homens: militante na Terra, padecente no Purgatório, triunfante no Céu. O conjunto de todos aqueles que se unem debaixo da mesma Fé, nesta Terra, chama-se Igreja. Desta, o fundamento é Pedro e todos os seus sucessores, os romanos pontífices, pois, caso contrário, não perduraria a existência do edifício. Eis um ponto vital de nossa Fé: “o fato da Igreja estar edificada sobre o próprio Pedro” que aliás – “é admitido por todos os autores antigos, excepto os hereges”12.
Um só corpo e um só espírito em torno do Sucessor de Pedro
“Há na Igreja muitas pessoas constituídas em autoridade, às quais devemos estar unidos pela obediência. No entanto, toda essa variedade precisa reduzir- se a um prelado primeiro e supremo, em quem principalmente se concentre o principado universal sobre todos. Deve reduzir-se não só a Deus e a Cristo, mas também a Seu vigário; e isto não por estatuto humano, mas por estatuto divino, mediante o qual Cristo constituiu São Pedro príncipe dos Apóstolos, estabelecidos estes, por sua vez, como príncipes na Terra. E Cristo fez isso convenientissimamente, por assim o exigirem a ordem da justiça universal, a unidade da Igreja e a estabilidade, tanto dessa ordem, quanto dessa unidade” 13.
O “Tu es Petrus …” será aplicado a todos os escolhidos em conclave para se sentarem na Cátedra da Infalibilidade. Assim, morreu Pedro, mas não o Papa; e é em torno dele que a Igreja mantém a sua unidade.
“Fácil é a prova que confirma a Fé e compendia a verdade. O Senhor fala a São Pedro e lhe diz: ‘Eu te digo que tu és Pedro’ (Mt 16, 18). E noutro lugar, depois de Sua ressurreição: ‘Apascenta minhas ovelhas’ (Jo 21, 17). Somente sobre ele edifica Sua Igreja, e o encarrega de apascentar seu rebanho. E embora confira igual poder a todos os Apóstolos e lhes diga: ‘Como meu Pai Me enviou, assim Eu vos envio’ (Jo 20, 21), sem embargo, para manifestar a unidade, estabeleceu uma Cátedra, e com sua autoridade dispôs que a origem dessa unidade se fundamentasse em um. Por certo, todos os Apóstolos eram o mesmo que Pedro, adornados com a mesma participação de honra e poder; mas o princípio dimana da autoridade, e a Pedro foi dado o Primado para demonstrar que uma é a Igreja de Cristo e uma a Cátedra. Todos são pastores, mas há um só rebanho apascentado por todos os Apóstolos de comum acordo […].
“Pode ter Fé quem não crê nessa unidade da Igreja? Pode pensar que se encontra dentro da Igreja quem se opõe e resiste à Igreja, quem abandona a Cátedra de Pedro, sobre a qual ela está fundada? São Paulo também ensina o mesmo, e manifesta o mistério da unidade, ao dizer: ‘Há um só corpo e um só espírito, como também só uma esperança, a de vossa vocação. Só um Senhor, uma Fé, um batismo, um Deus’ (Ef 4, 4-6)” 14.
Jurisdição plena, suprema e universal
Se lermos os Atos dos Apóstolos, encontraremos Pedro exercendo esse supremo poder, ao falar em primeiro lugar nas reuniões dos Apóstolos, ao propor o que se deve fazer, inaugurando a missão apostólica, encerrando discussões com sua palavra, etc. E assim se têm perpetuado, ao longo de dois milênios, a jurisdição e o magistério dos Papas.
Todo sucessor de Pedro possui verdadeira jurisdição, pois tem o poder de promulgar leis, julgar e impor penas, de forma direta, em matéria espiritual, e indireta, no campo temporal, sempre que se apresente como necessária para obter bens espirituais. Essa jurisdição é plena: não há poder na Igreja que não resida no Papa. É universal, ou seja, todos os membros da Igreja (fiéis, sacerdotes e bispos) a ele estão submetidos. É, ademais, suprema: o Papa acima de todos, e ninguém acima dele. Até mesmo os Concílios Ecumênicos não podem se realizar sem ser por ele convocados e presididos.
Os próprios estatutos conciliares não o obrigam, tendo ele o poder de mudá-los ou de derrogá-los.
Magistério infalível
Outro tanto se pode afirmar sobre uma análoga e grande função de Pedro e de seus sucessores: o supremo Magistério que, como coluna que sustenta a Igreja, não pode equivocar-se. O Papa é infalível ao falar ex cathedra, ou seja, enquanto doutor de todos os cristãos, ao definir com autoridade apostólica doutrinas sobre Fé e moral, que devem ser admitidas por toda a Igreja universal.
Aí está o motivo pelo qual “as portas do inferno” não poderão se sobrepor a um edifício construído sobre a pedra que é Pedro.
“Doce Cristo na Terra”
“São Paulo” – Praça de São Pedro |
“Dar-te-ei as chaves do Reino do Céu; tudo o que ligares na Terra ficará ligado no Céu e tudo o que desligares na Terra será desligado no Céu”.
Cristo retornaria ao Pai, deixando nas mãos de Pedro as chaves de Sua Igreja. “Quem tem o uso legítimo e exclusivo das chaves de uma casa ou de uma cidade, este é o administrador, o intendente supremo que recebeu os poderes de seu senhor. A Igreja é o reino dos Céus neste mundo; a Igreja Triunfante será o reino definitivo e eterno dos Céus, prolongamento desta mesma Igreja da Terra, já purificada de toda impureza. Pedro terá poder de abrir e fechar a entrada nesta Igreja temporal e, conseqüentemente, na eterna” 15.
A cabeça desse corpo místico sempre será Cristo Jesus. Durante a História da humanidade, Ele será o chefe invisível, mas deixa entre nós um Pedro acessível, o “doce Cristo na Terra” – segundo expressão usada por Santa Catarina de Sena -, a quem todos devemos amar como bom pai, obedecer até às suas mais leves insinuações e conselhos, honrar como a um supremo monarca, rei de reis.
III – Nasce uma obra indestrutível
É de pasmar o desenrolar desse acontecimento histórico ocorrido na “região de Cesaréia de Filipe”. Um simples pescador da Betsaida proclama que o filho de um carpinteiro é realmente Filho de Deus, por natureza. Este, em seguida, anuncia que edificará uma obra indestrutível e deixará em mãos de seu administrador, com plenos poderes de jurisdição e magistério, “as chaves do Reino do Céu”. O ambiente que os cerca é pobre, árido mas com certa grandeza. Ali é plantado “o grão de mostarda”, do qual nasceriam as igrejas, as catedrais, as cerimônias, os vitrais, as universidades, os hospitais, os mártires, os confessores, as virgens, os doutores, os santos, enfim, a Santa Igreja Católica Apostólica e Romana.
Passaram-se dois milênios e, depois de tantas e catastróficas procelas, inabalável continua essa “nau de Pedro”, tendo Cristo, com poder absoluto, em seu centro. Nenhuma outra instituição resistiu à corrupção produzida pelos desvios morais ou pela perversão da razão e do egoísmo humano. Só a Igreja soube enfrentar as teorias caóticas, opondo-lhes a verdade eterna; arrefecer o egoísmo, a violência e a volúpia, utilizando as armas da caridade, justiça e santidade; pervadir e reformar os poderes despóticos e materialistas deste mundo, com a solene e desarmada influência de uma sábia, serena e maternal autoridade. Não podiam mãos meramente humanas erigir tão portentosa obra, só mesmo a virtude do próprio Deus seria capaz de conferir santidade e elevar à glória eterna homens concebidos no pecado.
São Paulo, o Apóstolo das Gentes
Nem a vida nem a morte podiam separar a Paulo do amor de Cristo. Por isso, dois mil anos depois do início de sua peregrinação terrena, a monumental obra apostólica do Apóstolo das Gentes continua viva e produzindo abundantes frutos para a Igreja
A vocação é um dom concedido liberalmente por Deus. E, por vezes, compraz-se o Senhor em chamar alguém aparentemente contrário à missão para a qual Ele o destina, a fim de manifestar com maior fulgor o poder de Sua Graça e a gratuidade do Seu chamado. Nesses casos, apesar dos aparentes paradoxos e à revelia do próprio interessado, cujas aspirações parecem entrar em choque com os desígnios Divinos, o Senhor vai preparando os caminhos, servindo-Se até dos próprios obstáculos para fazer cumprir sua Santa Vontade.
Jovem fariseu de Tarso
Nada parecia indicar que aquele jovenzinho de rosto vivo e inteligente, de nome Saulo, viesse a transformar-se num intrépido defensor de Jesus Cristo. Nascido em Tarso, na Cilícia, no seio de uma família judaica, o pequeno Saulo esteve, desde muito cedo, sujeito a duas fortes influências que pesariam grandemente na formação de seu caráter.
De um lado, as convicções religiosas que aprendera de seus pais não tardaram em fazer dele um autêntico fariseu, apegado às tradições, anelante pela chegada de um Messias vitorioso e libertador do povo eleito, então submetido ao jugo estrangeiro, e zeloso cumpridor da Lei até em suas mínimas prescrições.
De outro lado, o ambiente de sua cidade natal marcou profundamente a personalidade do jovem fariseu. Tarso – metrópole grega, súdita do Império Romano – tornarase, por sua localização privilegiada, um dos centros de comércio mais importantes daquele tempo. Regurgitava de gente, proveniente das nações mais diversas, cujas línguas e costumes misturavam-se sob o fator preponderante da cultura helênica. A Providência começava a preparar o jovem fariseu para sua futura missão de Apóstolo das Gentes.
Discípulo de Gamaliel
Apenas saído da adolescência, Saulo abandonou sua pátria para instalar-se na cidade-berço da religião de seus antepassados: Jerusalém. Ali tornou-se assíduo estudioso das Escrituras, instruído pelo douto Gamaliel, um dos mais destacados membros do Sinédrio. Também aqui podemos notar a mão de Deus intervindo em sua vida, pois o conhecimento dos Livros Sagrados, que adquiriu ao longo desses anos, servir-lhe-ia mais tarde para abrir seus horizontes a respeito da realidade messiânica de Jesus Cristo.
Entretanto, se Saulo progredia a passos rápidos nas doutrinas farisaicas, sob o olhar vigilante de Gamaliel, em nada pareceu assimilar a prudência que caracterizava seu mestre, sempre cauto em seus juízos e comedido nas apreciações. Pelo contrário, o jovem aluno dava mostras de um exaltado fanatismo religioso, como ele mesmo confessaria em sua epístola aos Gálatas: “Avantajava-me no judaísmo a muitos dos meus companheiros de idade e nação, extremamente zeloso das tradições de meus pais” (Gl 1, 14).
No interior do discípulo de Gamaliel latejava um coração sincero, à procura da verdade. Buscava-a ardorosamente, desejoso de alcançar o pleno conhecimento dela. Não sabia que o termo desses seus anseios encontravase nAquele que, de Si mesmo, dissera: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida; ninguém vem ao Pai senão por Mim” (Jo 14, 6).
Sim, Saulo não poderia chegar ao Pai, Suprema Verdade, sem passar por Jesus, o Mediador entre Deus e os homens. A afirmação proferida pelo Divino Mestre, momentos antes de Sua Paixão, ele a veria cumprir-se em sua vida, ainda que contra a sua vontade e apesar de suas relutâncias. E a ocasião se haveria de apresentar justamente quando as convicções de Saulo, chocadas ante o Cristianismo que surgia, haviam-se convertido em ódio profundo contra este.
Encontro de Saulo com o Cristianismo
Saulo passara alguns anos fora de Jerusalém, que coincidiram com o período da vida pública de Jesus. Quando voltou, verificou uma grande mudança. A Cidade Santa não era a mesma que ele conhecera em seus tempos de estudante: após a tragédia da Paixão, pesava sobre a consciência do povo e, sobretudo, das autoridades a figura ensangüentada da Vítima do Gólgota, que eles em vão procuravam lançar no esquecimento. E mais: os discípulos daquele Homem não temiam pregar sua doutrina no próprio Templo, proclamando que esse Jesus a quem haviam matado ressuscitara dos mortos (cf. At 3, 11ss.).
Tais acontecimentos não podiam deixar indiferente um fariseu convicto como Saulo. Não compreendia que aqueles simples galileus se levantassem impunemente contra a religião de seus antepassados, arrastando atrás de si tamanha multidão de seguidores. Sua irritação chegou ao auge quando, estando na sinagoga chamada dos Libertos, onde semanalmente se reuniam judeus de todas as comunidades da Diáspora, deparou- se com um jovem chamado Estêvão, que anunciava denodadamente as glórias do Crucificado.
Momentos mais tarde, tendo sido apresentado Estêvão ao tribunal do Grande Conselho, Saulo escutou atentamente o longo discurso no qual este demonstrou, por meio de exemplos históricos e de profecias, ser Jesus o Messias esperado. O jovem fariseu sentia-se incomodado: as palavras de Estêvão eram tão inspiradas e convincentes, que não se lhe podia resistir (Cf. At 6, 10); de outro lado, a imagem desse Jesus Nazareno, que ele não conhecera, parecia perseguilo, e constantemente via-se obrigado a ouvir falar a respeito, de tal modo os seus adeptos se espalhavam por Jerusalém. Duro lhe era recalcitrar contra o aguilhão (cf. At 26, 14). E, entretanto, Saulo recalcitrava!
Indignado diante da coragem de Estêvão, aprovou entusiasticamente sua morte (cf. At 8, 1) e considerou como uma honra a missão de custodiar os mantos dos apedrejadores, uma vez que sua idade não lhe permitia levantar a mão contra o condenado.
Surge o perseguidor dos cristãos
A partir daquele dia, o exaltado discípulo de Gamaliel não pôs mais freio à sua fúria. Acreditando “que devia fazer a maior oposição ao nome de Jesus de Nazaré” (At 26, 9), entrava nas casas dos fiéis e arrancava delas homens e mulheres para entregálos à prisão (cf. At 8, 3); chegava a maltratá-los para obrigá-los a blasfemar (cf. At 26, 11). Não contente com devastar apenas a Igreja de Jerusalém, foi apresentar-se ao príncipe dos sacerdotes, pedindo-lhe cartas para as sinagogas de Damasco, com o fim de prender, nessa cidade, todos os que se proclamassem seguidores da nova doutrina (cf. At 9, 2).
Mas, esse Jesus a quem ele teimava em perseguir (At 9, 5), viria a atravessar- Se de novo em seu caminho, desta vez de modo definitivo e eficaz.
No caminho de Damasco
O jovem sentia-se incomodado: as palavras de Estêvão eram tão inspiradas, que não se lhe podia resistir “Martírio de Santo Estêvão Juan de Juanes Museu do Prado, Madri |
Podemos imaginar a ânsia do jovem Saulo ao aproximar-se de Damasco, antegozando a hora de saciar sua cólera no cumprimento da missão que se propunha. Mas eis que, subitamente, uma luz fulgurante vinda do Céu envolveu-o e a seus companheiros, derrubando-o do cavalo. Ali, caído por terra e cegado pelo resplendor dos raios divinos, o orgulhoso fariseu não pôde mais resistir ao poder de Cristo e declarou-se vencido: “Senhor, que queres que eu faça?” (At 9, 6).
De perseguidor que era, poucos instantes antes, passava a servo fiel, pronto para obedecer aos mandatos do Divino Perseguido. Quanta glória para o Crucificado! Por um simples toque de Sua graça, transformara em Seu Apóstolo um dos mais ferventes discípulos daqueles que haviam sido seus principais contendores, durante sua vida pública.
Ajudado por seus companheiros, Saulo ergueu-se do chão. Entretanto, mais do que levantar-se do solo, surgiu em sua alma “o homem novo, criado à imagem de Deus, em verdadeira justiça e santidade” (Ef 4, 24). O blasfemador de outrora permaneceria para sempre prostrado num amoroso reconhecimento de sua derrota: “Jesus Cristo veio a este mundo para salvar os pecadores, dos quais sou eu o primeiro. Se encontrei misericórdia, foi para que em mim primeiro Jesus Cristo manifestasse toda a sua magnanimidade e eu servisse de exemplo para todos os que, a seguir, nEle crerem, para a vida eterna” (I Tm 1, 15-16).
Saulo converte-se em Paulo
Com a mesma radicalidade com que outrora se apegara ao judaísmo, Saulo abraçava agora a Igreja de Cristo. A graça respeitara a natureza, conservando as características próprias de sua personalidade que viriam mais tarde a contribuir na formação da escola paulina de vida espiritual. A partir desse momento, o Saulo convertido, o novo Paulo, só se moveria por um único ideal, que tomava todas as fímbrias de sua alma e dava verdadeiro sentido à sua existência: “Quanto a mim, não pretendo, jamais, gloriar-me, a não ser na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, pela qual o mundo está crucificado para mim, e eu para o mundo” (Gl 6, 14).
Doravante essa Cruz – na qual Paulo não apenas considerava os sofrimentos do Salvador, mas via, sobretudo, os esplendores da Ressurreição – seria para ele o rumo de sua vida, a luz dos seus passos, a fortaleza de sua virtude, o seu único motivo de glória. Esse amor, que num instante operara a sua transformação, o impelia agora a falar, a pregar, a percorrer os confins do mundo a fim de conquistar almas para Cristo, arrancando-lhe, do fundo do coração, este gemido: “Ai de mim se eu não evangelizar!” (I Cor 9, 16).
Por esse amor estava disposto a enfrentar todas as tribulações, a suportar os piores tormentos, fossem de ordem natural, como também os de ordem moral: “Muitas vezes vi a morte de perto. Cinco vezes recebi dos judeus os quarenta açoites, menos um. Três vezes fui flagelado com varas. Uma vez apedrejado. Três vezes naufraguei, uma noite e um dia passei no abismo. Viagens sem conta, exposto a perigos nos rios, perigos de salteadores, perigos da parte de meus concidadãos, perigos da parte dos pagãos, perigos na cidade, perigos no deserto, perigos no mar, perigos entre falsos irmãos! Trabalhos e fadigas, repetidas vigílias, com fome e sede, freqüentes jejuns, frio e nudez! Além de outras coisas, a minha preocupação cotidiana, a solicitude por todas as igrejas!” (II Cor 11, 23-28).
Ele havia se proposto, antes de tudo, à glorificação de Jesus Cristo e da Sua Igreja, e isto constituía para ele o suco essencial, o norte de sua vida. A este respeito comenta São João Crisóstomo: “Cada dia ele subia mais alto e se tornava mais ardente, cada dia lutava com energia sempre nova contra os perigos que o ameaçavam. […] Realmente, no meio das insídias dos inimigos, conquistava contínuas vitórias, triunfando de todos os seus assaltos. E em toda parte, flagelado, coberto de injúrias e maldições, como se desfilasse num cortejo triunfal, erguendo numerosos troféus, gloriava-se e dava graças a Deus, dizendo: ‘Graças sejam dadas a Deus que nos fez sempre triunfar’ (II Cor 2, 14).”
Apóstolo das Gentes
Assim, pouco a pouco, por meio de suas viagens apostólicas e das numerosas cartas através das quais sustentava na Fé seus filhos espirituais, Paulo ia assentando os fundamentos da Esposa Mística de Cristo. Nem mesmo internamente havia de lhe faltar adversários: por vezes, entre os próprios cristãos, surgiam conceitos errôneos, como o de querer obrigar os pagãos convertidos a praticar os costumes da Lei Mosaica. A esse respeito Paulo levou sua ousadia até o ponto de discutir com o próprio Apóstolo Pedro, “resistindo-lhe francamente, porque era censurável” (Gl 2, 11).
Pedro aceitou com humildade o ponto de vista de Paulo e apressou-se em colocá-lo em prática. Mas os cristãos que haviam espalhado suas idéias pelas igrejas da Galácia não o imitaram, acrescentando ainda que a justificação provinha estritamente do cumprimento da Lei. Nada poderia ser tão nocivo para a Igreja nascente do que tais enganos, e Paulo logo o percebeu. Decidiu deixar por escrito toda a doutrina sobre esse ponto, e o fez com tanta segurança e clareza que deduz-se têla recebido dos lábios do próprio Jesus.
Assim, a epístola dirigida aos Gálatas é um escrito polêmico, sem receios de apresentar a verdade tal como ela é: “Ó insensatos gálatas! Quem vos fascinou a vós, ante cujos olhos foi apresentada a imagem de Jesus Cristo crucificado? […] Todos os que se apóiam nas práticas legais estão sob um regime de maldição” (Gl 3, 1.10). E pouco antes, afirmava: “Nós cremos em Jesus Cristo, e tiramos assim a nossa justificação da fé em Cristo, e não pela prática da lei” (Gl 2, 16).
São Paulo e os gregos
O orgulhoso fariseu não pôde mais resistir “A conversão de São Paulo”, por Murillo |
Se Paulo teve de enfrentar oposições dentro de seu próprio povo, viuse também contestado pelos gregos, que apresentavam objeções de teor completamente diferente, mas não menos perigosas. A Grécia, principal centro da cultura naqueles tempos, orgulhava-se da fama de seus pensadores e de ser o berço da filosofia. Ora, a palavra e a pregação trazidas por Paulo, “longe estavam da eloqüência persuasiva da sabedoria” (I Cor 2, 4), como ele mesmo afirmava.
Assim, não raras vezes tornavase ele alvo do desprezo ou objeto de vergonha para os convertidos. Ele pouco se importava com as ofensas feitas à sua pessoa, mas receava que seus discípulos fizessem eco a idéias tão vãs ou viessem a sucumbir, por medo das humilhações. Por isso, escrevia ele aos fiéis de Corinto, cidade onde principalmente essas falsas doutrinas haviam encontrado aceitação: “A linguagem da Cruz é loucura para os que se perdem, mas para os que foram salvos, para nós, é uma força divina” (I Cor 1, 18).
Não era esse, porém, o pior dos obstáculos encontrados por Paulo na Grécia. Afundados na devassidão e na desordem moral, os gregos haviam elaborado, ao longo dos tempos, uma justificativa para os seus maus costumes, negando a ressurreição dos mortos. Alguns mesmo, como Epicuro de Samos (†270 a.C.), chegaram a afirmar que a alma humana é material e mortal.
No próprio Evangelho percebemos lampejos dessa candente temática quando os saduceus – que, por influência helênica, não acreditavam na ressurreição – se aproximaram de Jesus para pô-lo a prova, mediante uma pergunta capciosa (cf. Lc 20, 27-39). A discussão, como vemos, vinha de longa data e se erguia como principal empecilho para o desenvolvimento do apostolado paulino.
Talvez Paulo, em seus tempos de fervor fariseu, já tivera de enfrentar os mesmos saduceus a esse propósito. gora, porém, como cristão, possuía o argumento da Ressurreição de Cristo e contava com o poderoso auxílio da graça.
Grande Apóstolo da Ressurreição
As dúvidas expostas pelos gregos, quando não a oposição aberta, servirlhe- iam de estímulo para aprofundarse mais na doutrina da ressurreição e deixá-la explicitada para os séculos futuros. Assim escreveu ele aos coríntios: “Ora, se se prega que Jesus ressuscitou dentre os mortos, como dizem alguns de vós que não há ressurreição? Se não há ressurreição dos mortos, nem Cristo ressuscitou. Se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação, e também é vã a vossa fé. […] Se é só para esta vida que temos colocado a nossa esperança em Cristo, somos, de todos os homens, os mais dignos de lástima. Mas não! Cristo ressuscitou dentre os mortos como primícias dos que morreram!” (I Cor 15, 12-14; 19-20).
Custoso era, para aqueles gregos de vida desregrada, ter de assimilar esses princípios. Aceitando a ressurreição da carne, ver-se-iam forçosamente convidados a uma mudança de costumes e a abraçarem um modo de pensar e de comportar-se condizente com essa esperança. Mas até mesmo suas relutâncias contribuiriam para o bem, como afirma o próprio Paulo: “Oportet et haereses inter vos esse” (I Cor 11, 19) – é necessário que haja partidos, ou heresias, entre vós. Impelido pelas circunstâncias, Paulo se transforma no grande Apóstolo da Ressurreição.
Cordeiro e leão ao mesmo tempo
Nem tudo, porém, eram combates para o incansável Paulo. Se face ao erro e à falta de fé ele mostrava todo o seu ardor combativo e sua intransigência, em relação aos bons deixava entrever um fundo de alma extremamente afetuoso e compassivo, ordenado segundo a caridade de Cristo. Nesta admirável conjugação de virtudes, na aparência opostas, Paulo assemelhava-se ao Divino Mestre, sempre disposto a perdoar ou pronto a repreender, a ser Cordeiro e Leão ao mesmo tempo.
Em sua carta aos fiéis de Filipos, que se inquietavam por seus sofrimentos e suas necessidades, assim escreve: “Deus me é testemunha da ternura que vos consagro a todos, pelo entranhado amor de Jesus Cristo!” (Fil 1, 8). E ainda, aos mesmos gálatas, que antes invectivara a respeito de seus desvios, escrevia mais adiante: “Filhinhos meus, por quem de novo sinto dores de parto, até que Cristo seja formado em vós, quem me dera estar agora convosco” (Gl 4, 19).
São Paulo, segundo Bossuet
Difícil é exaltar o Apóstolo das Gentes em espaço tão exíguo. A pluralidade estonteante de seus feitos, o poder de sua voz e o alcance de sua ação apostólica, cujos frutos até hoje alimentam a Igreja, deixam em embaraço qualquer escritor. Por isso recorremos à incomparável eloqüência de Bossuet, que assim descreveu o ímpeto da pregação do Apóstolo:
“Este homem, ignorante na arte do bem-falar, de locução rude e de acento estrangeiro, chegará à esmerada Grécia, mãe de filósofos e oradores, e, apesar da resistência mundana, fundará mais igrejas do que Platão teve discípulos. Pregará a Jesus em Atenas, e o mais sábio dos oradores passará do Areópago para a escola deste bárbaro. Continuará mais adiante em suas conquistas, e abaterá aos pés do Senhor a majestade das águias romanas na pessoa de um prócônsul, e fará tremer em seus tribunais os juízes diante dos quais fora citado. Roma ouvirá sua voz, e um dia aquela velha mestra sentir-se-á mais honrada com uma só carta do estilo bárbaro de São Paulo, dirigida a seus cidadãos, do que por todas as famosas arengas que outro dia escutara de Cícero.”
A prisão em Jerusalém
Algemado, Paulo é levado de Jerusalém a Roma. Durante a viagem, não perdia a oportunidade de anunciar o Evangelho em todos os lugares por onde passava. |
Sim, Roma, haveria de ouvir sua pregação e suas ruas calçadas de grandes pedras seriam pisadas pelos pés do Apóstolo. Esses pés, entretanto, arrastariam pesadas correntes que lhe tolheriam a liberdade dos movimentos. Acusado pelo ódio de seus concidadãos, por causa de sua fidelidade a Cristo, Paulo fora entregue à justiça romana. Se seu corpo suportava as cadeias e os grilhões, sua alma sentia pesar sobre si o suave jugo de Cristo. Prisioneiro do Espírito (cf. At 20, 22), Paulo recebera, à noite, esta revelação: “Coragem! Deste testemunho de Mim em Jerusalém, assim importa também que o dês em Roma” (At 23, 11).
Obediente à inspiração recebida, Paulo exclamará no tribunal do governador Festo: “Estou perante o tribunal de César. É lá que devo ser julgado. […] Apelo para César!” (At 25, 10-11). Querendo desfazer-se de caso tão complicado, que envolvia assuntos da religião judaica, Festo apressou- se em satisfazer o desejo do preso, mandando-o para Roma, algemado e sob a guarda do centurião Júlio.
O primeiro período de pregação em Roma
Durante a viagem, Paulo não perdia a oportunidade de anunciar o Evangelho em todos os lugares por onde passava. Após várias dificuldades ao longo da travessia e enfrentar um naufrágio, fez escala em Siracusa, na Sicília, e dali foi conduzido a Reggio (cf. At 28, 12-13).
Uma vez chegado à capital do Império e instalado em prisão domiciliar, Paulo realizava um anseio que havia tempos acalentava no coração, como ele mesmo o expressara aos cristãos de Roma: “Daí o ardente desejo que eu sinto de vos anunciar o Evangelho também a vós, que habitais em Roma” (Rm 1, 15). Dois anos haveria de durar seu doloroso cativeiro, mas ele, como afirma São João Crisóstomo, “considerava como brinquedo de criança os mil suplícios, os tormentos e a própria morte, desde que pudesse sofrer alguma coisa por Cristo”. Aproveitou o tempo para pregar o Reino de Deus (cf. At 28, 31), escrever numerosas cartas às comunidades da Grécia e da Ásia, as chamadas Epístolas do cativeiro.
Mas a Providência pedia de seu Apóstolo ainda mais alguns anos de abnegação e fadigas, a ele que suspirava pela morte, considerando-a um lucro para ganhar a Cristo (cf. Fl 1, 21).
Novas viagens e retorno à capital do Império
Libertado por um decreto jurídico, Paulo ainda visitaria Creta, Espanha e novamente as conhecidas igrejas da Ásia Menor, pelas quais tanto se dedicara. Afinal voltaria a Roma para onde se sentia atraído, talvez por um secreto pressentimento da proximidade da “coroa da justiça” (II Tm 4, 8) que ali o aguardava.
Sobre o trono dos césares sentavase então o terrível Nero, cuja crueldade, aliada a um orgulho patológico, já fizera sua fama. Era conhecido o ódio que votava aos cristãos, e Paulo não passou despercebido à perspicácia dos espiões do tirano.
Acusado como chefe da seita, foi preso pela polícia imperial e lançado no Cárcere Mamertino, onde, segundo uma antiga tradição, já se encontrava Pedro. Nesse escuro subterrâneo, de estreitas dimensões e teto baixo, o Pontífice da Igreja de Cristo e o Apóstolo das Gentes estiveram acorrentados a uma mesma coluna. Assim, unidos numa mesma Fé e esperança, estavam ambos amarrados pelas cadeias do amor ao Rochedo, que é Cristo (cf. I Cor 10, 4).
O martírio de São Paulo
O sublime imitador de Jesus Cristo sela seu testemunho com o próprio sangue. “Martírio de São Paulo” Paróquia de Maroggia (Itália) |
Chegou por fim o dia em que Paulo deveria “ser imolado” (II Tm 4, 6). Para ele a morte pouco significava, pois já se achava morto para o pecado e vivo para Deus (cf. Rm 6, 11). Uma entranhada e exclusiva união o ligavam a seu Senhor. Não era ele mesmo que vivia, mas sim Cristo quem nele habitava (cf. Gl 2, 20) e operava.
Condenado à morte, Paulo, por ser cidadão romano, não podia, como Pedro, sofrer a pena ignominiosa da crucifixão, mas sim a da decapitação, e esta devia dar-se fora dos muros da cidade. Conduzido por um grupo de soldados, o Apóstolo arrastou seus pesados grilhões ao longo da Via Ostiense e, depois, pela Via Laurentina, até alcançar um distante vale, conhecido pelo nome de Aquæ Salviæ.
Ali, entre a vegetação daquela região pantanosa, o sublime imitador de Jesus Cristo selava seu testemunho com o próprio sangue. Sua cabeça, ao cair no solo sob o golpe fatal da espada, saltou três vezes, fazendo brotar em cada um dos pontos uma fonte de água borbulhante. Este fato, se não comprovado pela História, baseia- se numa piedosa tradição confirmada pelo nome de Tre Fontane, que ostenta o mosteiro trapista construído naquele local.
“Combati o bom combate”
Paulo morrera, mas sua monumental obra apostólica, fundamentada na caridade que consumira sua vida, continuava viva e produziria ao longo dos tempos abundantes frutos para a Igreja. Até o último alento, sua vida não fora senão uma grande luta. Luta de entusiasmo e de entrega, de desprendimento e de heroísmo; luta para levar o Evangelho a todas as gentes, confiando sempre na benevolência de Cristo.
Os piores vagalhões da vida não puderam atingir o seu tabernáculo interior. Sua firmeza, semelhante à imobilidade de um rochedo batido pelas ondas do mar, mantinhase inalterável em meio às maiores angústias e agonias, certo de que nem a vida nem a morte o poderiam separar do amor de Cristo (cf. Rm 8, 38-39).
E uma vez concluído o combate, percorrida toda a sua carreira e chegado ao termo de sua peregrinação terrena (cf. II Tm 4, 7), o Apóstolo apareceu ante o olhar admirado da humanidade, em toda a sua estatura de gigante da Fé, transmitindo para os séculos futuros esta mensagem: “Por ora subsistem a fé, a esperança e a caridade – as três. Porém, a maior delas é a caridade. A caridade jamais acabará!” (I Cor 13, 13.8). (Revista Arautos do Evangelho, Jun/2008, n. 78 e Jul/2008, n. 79)