A Igreja, esta grande sociedade religiosa dos homens que vivem na mesma Fé e no mesmo amor sob a guia suprema do Romano Pontífice, tem um objetivo superior e bem diferente do da sociedade civil. Esta procura obter na terra o bem-estar temporal, enquanto a Igreja visa a perfeição das almas para a eternidade.
Ela é um reino que reconhece somente a Deus por Senhor. A sua missão é tão elevada que transcende qualquer limite e reúne numa só família todos os povos, línguas e nações. Não se pode, portanto, sequer supor que o reino das almas esteja sujeito ao dos corpos, que a eternidade possa se transformar em instrumento do tempo, ou que o próprio Deus venha a Se tornar escravo do homem.
Importa obedecer a Deus antes que aos homens
Jesus Cristo, Filho do Eterno Pai, a quem foi dado todo poder no Céu e na terra, impôs aos primeiros ministros da Igreja, aos Apóstolos, esta missão: “Como o Pai Me enviou, assim também Eu vos envio” (Jo 20, 21). “Ide, pois, e ensinai a todas as nações, batizando-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, ensinando-as a observar tudo quanto vos prescrevi. Eis que estou convosco todos os dias, até o fim do mundo” (Mt 28, 19-20).
São Pio X - Coleção de retratos da divisão Miriam and Ira D. Wallach, Biblioteca Pública de Nova York |
A Igreja recebeu do próprio Deus sua missão de ensinar. Sua palavra, portanto, deve ser transmitida a todos sem obstáculos que a detenham ou imposições que a refreiem. Cristo não a mandou se dirigir apenas aos pobres, aos ignorantes e às turbas, mas sim a todos, sem distinção, porque na ordem espiritual ela é superior a todas as soberanias da terra.
É missão da Igreja governar as almas e administrar os Sacramentos. E como não cabe a mais ninguém, por nenhum motivo, penetrar no santuário divino, é obrigação dela opor-se a qualquer um que, com ingerências arbitrárias ou usurpações injustas, pretenda invadir esse campo.
Ela tem também o encargo de ensinar a observância dos preceitos e de exortar à prática dos conselhos evangélicos. Ai de quem ensinar o contrário, provocando desordem e confusão na sociedade.
Cabe-lhe, além do mais, o direito de possuir bens, pois está composta por homens, não por Anjos. Necessita conservar os recursos materiais doados pela piedade dos fiéis para o cumprimento de seus ministérios, o exercício exterior do culto, a construção de templos, as obras de caridade a ela confiadas, e para viver e perpetuar-se até a consumação dos séculos.
Tão sagrados são os direitos acima mencionados que a Igreja sempre considerou seu dever sustentá-los e defendê-los, sabendo bem que, se cedesse um pouco às pretensões de seus inimigos, falharia no mandato recebido do Céu e cairia na apostasia.
A História consigna uma série de protestos e reivindicações feitos pela Igreja contra aqueles que pretendiam escravizá-la. O primeiro se deu quando Pedro e os outros Apóstolos disseram ao judaísmo: “Importa obedecer antes a Deus do que aos homens” (At 5, 29). Estas sublimes palavras foram perpetuamente repetidas pelos seus sucessores e o serão até o fim do mundo, ainda que seja preciso um batismo de sangue para confirmá-las.
Há liberdade para todos, menos para a Igreja
Disso estão persuadidos até os nossos próprios adversários, que repetem uma e outra vez estarem acolhidas à sombra de sua bandeira todo tipo de liberdades. Na realidade, há ali liberdade – ou, melhor, permissividade – para todos, menos para a Igreja.
Liberdade para qualquer um professar seu próprio culto e defender suas próprias doutrinas, mas não para o católico enquanto tal, que é objeto de zombarias e perseguições, e não promovido àqueles cargos aos quais tem um direito sagrado ou deles privado. Há liberdade de ensino, mas sujeita ao monopólio de governos que permitem a propagação e a defesa de toda doutrina e de qualquer erro nas escolas, enquanto proíbem aos meninos estudar o catecismo.
Liberdade de imprensa significa para eles dar rédeas soltas para que o mais furioso jornalismo estimule formas de governo em afronta contra a lei, incite a plebe à sedição, fomente ódios e inimizades, impeça por meio de greves o bem-estar dos trabalhadores e a vida tranquila dos cidadãos, vitupere as coisas mais sagradas e as pessoas
mais veneráveis. O jornalismo católico, porém, que defende os direitos da Igreja e propugna os princípios da verdade e da justiça, deve ser vigiado, repreendido e apresentado diante de todos como adverso às instituições livres e inimigo da pátria.
Permitem-se para todas as associações, até para as mais subversivas, manifestações públicas e clamorosas; mas as procissões católicas não podem sair das igrejas porque seria uma provocação para o partido contrário, a ordem pública seria perturbada e os cidadãos pacíficos, incomodados.
Há liberdade de ministério para todos, cismáticos e dissidentes; mas no caso dos católicos, pretende-se que, quando um ministro da Igreja seja mandado a qualquer população, não se comporte como um “prepotente”, querendo se impor ao governo que lhe impede o ingresso no seu destino e o exercício de sua missão.
Todos têm liberdade de possuir, mas não a Igreja e as Ordens Religiosas, cujos bens são, com arbitrária violência, requisitados, desapropriados e entregues pelos governos às instituições laicas.
O Senhor vos sustentará nesse combate
Como bem sabeis, esta é a liberdade da qual goza a Igreja, inclusive em países católicos! Temos, pois, boas razões para nos consolarmos convosco, que a reivindicais lutando por ela no campo de ação que vos foi concedido até agora.
Portanto, caros filhos, coragem! Quanto mais a Igreja for hostilizada de todos os lados e as falsas máximas do erro e da perversão moral infectarem o ar com seus pestíferos miasmas, tanto maior será vosso mérito perante Deus, se fizerdes todo o esforço possível para evitar o contágio e não deixardes arrancar nenhuma de vossas convicções, permanecendo fiéis à Igreja. Com vossa firmeza fareis muito frutífero apostolado, persuadindo adversários e dissidentes de que a liberdade da Igreja acarretará de modo admirável a saúde e a tranquilidade dos povos, porque, exercendo o Magistério divinamente confiado a ela, conservará intactos e em vigor os princípios de verdade e de justiça nos quais se apoia toda ordem e dos quais germinam a paz, a honestidade e toda cultura civil.
Por certo, nessa luta não vos faltarão dificuldades, incômodos e fadigas: cuidai, porém, de não perder o ânimo, porque o Senhor vos sustentará nesse combate, com o abundante socorro dos favores celestes. (Excerto de: SÃO PIO X. Discurso aos fiéis reunidos em Roma por ocasião do XVI centenário da promulgação do Edito de Constantino, 23/2/1913)(Revista Arautos do Evangelho, Fevereiro/2020, n. 218, p. 6-7).