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Voz dos Papas


O verdadeiro farol da libertação do homem
 
PUBLICADO POR ARAUTOS - 04/12/2019
 
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Se Deus não existe ou não é acessível ao homem, só o consenso da maioria permanece como suprema instância. E este consenso – sabemo-lo da História do século passado – pode ser também um “consenso no mal”.

A palavra, a frase que gostaria de propor à meditação comum é esta grande afirmação de São Pedro: “Importa mais obedecer a Deus do que aos homens” (At 5, 29). São Pedro está diante da suprema instituição religiosa, à qual normalmente se deveria obedecer, mas Deus está acima desta instituição e Deus conferiu-lhe outro “ordenamento”: deve obedecer a Deus. A obediência a Deus é a liberdade, a obediência a Deus dá-lhe a liberdade de se opor à instituição.

Bento XVI, dando a bênção Urbi et Orbi em 4/4/2010

E aqui os exegetas chamam a nossa atenção para o fato de que a resposta de São Pedro no Sinédrio é quase ad verbum idêntica à resposta de Sócrates ao juízo no tribunal de Atenas. O tribunal oferece-lhe a liberdade, a libertação, porém com a condição de que não continue a procurar Deus.

Mas procurar Deus, a busca de Deus é para ele uma ordem superior, vem do próprio Deus. E uma liberdade comprada com a renúncia ao caminho para Deus já não seria liberdade. Portanto, não deve obedecer a estes juízos – não deve comprar a sua vida, perdendo-se a si mesmo – mas deve obedecer a Deus. A obediência a Deus tem a primazia.

A obediência a Deus é a liberdade

Aqui é importante ressaltar que se trata de obediência e que é precisamente a obediência que dá liberdade. O tempo moderno falou da libertação do homem, da sua plena autonomia, portanto também da libertação da obediência de Deus.

A obediência já não deveria existir, o homem é livre, é autônomo: nada mais. Mas esta autonomia é uma mentira: é uma mentira ontológica, porque o homem não existe por si mesmo, para si próprio, e é também uma mentira política e prática, porque a colaboração, a partilha da liberdade é necessária.

E se Deus não existe, se Deus não é uma instância acessível ao homem, só o consenso da maioria permanece como suprema instância. Por conseguinte, o consenso da maioria torna-se a última palavra à qual temos que obedecer. E este consenso – sabemo-lo da História do século passado – pode ser também um “consenso no mal”.

Assim, vemos que a chamada autonomia não liberta verdadeiramente o homem. A obediência a Deus é a liberdade, porque é a verdade, é a instância que se põe diante de todas as instâncias humanas.

Na História da humanidade, estas palavras de Pedro e de Sócrates são o verdadeiro farol da libertação do homem, que sabe ver Deus e, em nome de Deus, pode e deve obedecer, não tanto aos homens, mas a Ele, e assim libertar-se do positivismo da obediência humana.

Hoje existem formas sutis de ditadura

As ditaduras foram sempre contrárias a esta obediência a Deus. A ditadura nazista, como a marxista, não pode aceitar um Deus que esteja acima do poder ideológico; e a liberdade dos mártires, que reconhecem Deus precisamente na obediência ao poder divino, é sempre o gesto de libertação mediante o qual nos é conferida a liberdade de Cristo.

Hoje, graças a Deus, não vivemos sob ditaduras, mas existem formas sutis de ditadura: um conformismo que se torna obrigatório, pensar como todos pensam, agir como todos agem, e as sutis agressões contra a Igreja, ou até as menos sutis, demonstram que este conformismo pode realmente ser uma verdadeira ditadura.

Para nós vale isto: deve-se obedecer mais a Deus do que aos homens. Mas isto supõe que conheçamos verdadeiramente a Deus e que deveras desejemos obedecer-lhe. Deus não é um pretexto para a própria vontade, mas é realmente Ele quem nos chama e nos convida, se for necessário, até ao martírio.

Por isso, confrontados com esta palavra que dá início a uma nova história de liberdade no mundo, oremos sobretudo para conhecer Deus, para conhecer humilde e verdadeiramente Deus e, conhecendo a Deus, para aprender a verdadeira obediência que é o fundamento da liberdade humana.

O seguimento de Jesus termina à direita do Pai

Escolhamos uma segunda palavra da primeira leitura: São Pedro diz que Deus elevou Cristo à sua direita como Chefe e Salvador (cf. At 5, 31). Chefe é tradução do termo
grego archegos, que implica uma visão muito mais dinâmica: archegos é aquele que indica a estrada, que precede, é um movimento, um movimento rumo ao outro.

Deus elevou-O à sua direita, portanto, falar de Cristo como archegos quer dizer que Cristo caminha diante de nós, que nos precede e nos mostra o caminho. E estar em comunhão com Cristo é estar a caminho, subir com Cristo, é seguimento de Cristo, é esta elevação, é seguir o archegos, Aquele que já passou, que nos precede e nos indica o caminho.

Evidentemente, aqui é importante que se nos diga aonde Cristo chega e aonde também nós devemos chegar: hypsosen – nas alturas – subir à direita do Pai. Seguimento de Cristo é apenas imitação das suas virtudes, não é só viver neste mundo, na medida do que nos é possível, mas é um caminho que tem uma meta. E a meta é a direita do Pai. Há este caminho de Jesus, este seguimento de Jesus que termina à direita do Pai. Ao horizonte de tal seguimento pertence todo o caminho de Jesus, também a chegada à direita do Pai.

Neste sentido, a meta deste caminho é a vida eterna à direita do Pai, em comunhão com Cristo. Hoje, nós temos muitas vezes um pouco de medo de falar da vida eterna. Falamos das coisas que são úteis para o mundo, mostramos que o Cristianismo ajuda a melhorar o mundo, mas não ousamos dizer que a sua meta é a vida eterna e que de tal meta derivam depois os critérios da vida.

Da vida eterna vem a luz que ilumina este mundo

Temos que compreender de novo que o Cristianismo permanece um “fragmento”, se não pensarmos nesta meta, que queremos seguir o archegos à altura de Deus, à 
glória do Filho que nos faz filhos no Filho, e temos que reconhecer de novo que o Cristianismo revela todo o sentido só na grande perspectiva da vida eterna. Temos que
ter a coragem, a alegria, a grande esperança de que a vida eterna existe, é a verdadeira vida, e é desta vida autêntica que vem a luz que ilumina também este mundo.

Se se pode dizer que, mesmo prescindindo da vida eterna, do Céu prometido, é melhor viver segundo os critérios cristãos, porque viver segundo a verdade e o amor, apesar das numerosas perseguições, é em si mesmo um bem e é melhor que todo o resto, é precisamente esta vontade de viver segundo a verdade e em conformidade com o amor que deve abrir também toda a vastidão do desígnio de Deus para nós, à coragem de ter já a alegria na expectativa da vida eterna, da elevação seguindo o nosso archegos. E Soter é o Salvador, que nos salva da ignorância, procura as últimas coisas.

O Salvador salva-nos da solidão, salva-nos de um vazio que permanece na vida sem a eternidade, salva-nos conferindo-nos o amor na sua plenitude. Ele é o guia. Cristo, o archegos, salva-nos dando-nos a luz, concedendo-nos a verdade, dando- -nos o amor de Deus. (Revista Arautos do Evangelho, Dezembro/2019, n. 216,  p. 6-7). 

Excerto de: BENTO XVI. Homilia na Concelebração Eucarística com os membros da Pontifícia Comissão Bíblica, 15/4/2010

 
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